Chegamos na metade do ano de 2021 e é importante fazermos um balanço do processo de vacinação que temos até agora no Brasil. Apesar dos boicotes de Jair Bolsonaro e de outros governantes, a estrutura estatal organizada em torno do SUS e construída nos últimos 30 anos garantiu que cerca de 45% da população adulta brasileira já tenha tomado a primeira dose da vacina até o final do mês de junho.
A campanha de vacinação contra a Covid-19 no Brasil começou de forma tumultuada e atrasada. Isso fica ainda mais evidente quando lembramos que o Brasil tem um dos melhores programas de imunização do mundo. Apesar desse começo atrasado, ela melhorou muito nos últimos meses. O reconhecimento dessa melhora não apaga o atraso que já aconteceu nem vai recuperar as vidas perdidas. E, vale sempre lembrar: a campanha de vacinação acontece apesar do presidente.
De 17 de janeiro até 31 de março foram vacinados 10,94% da população adulta brasileira com a primeira dose do imunizante. A situação era desalentadora e parecia que demoraríamos mais de 1 ano para chegar na imunização de toda a população. Porém, as coisas começaram a mudar no mês de abril: nos 30 dias desse mês, mesmo com os feriados, conseguimos vacinar cerca de 10% da população adulta com a primeira dose.
Esse foi um momento de mudança de patamar na vacinação, visto que as entregas de vacinas passaram a ter regularidade e foi possível começar a ter projeções mais precisas. Na época, demonstramos no twitter que se mantivéssemos essa média (10% ao mês), poderíamos chegar no final de julho de 2021 com 50% dos brasileiros adultos vacinados com pelo menos a primeira dose (e até o final do ano com a primeira dose em toda essa população-alvo).
Essa projeção parecia demasiado otimista naquele momento. Até então, a maioria das notícias na imprensa sobre o tema apenas reproduzia informes sobre atrasos e entregas de vacina e concluía que “a vacinação estava lenta”. Uma visão mais otimista tomava como base os números daquele mês e também uma entrevista de Gonzalo Vecina (médico sanitarista e ex-presidente da Anvisa), onde ele explicava a capacidade de produção de vacinas no Brasil e nossa capacidade de vacinação por dia.
De lá pra cá, o mês de maio foi uma chuva de água fria no otimismo: depois de vacinarmos 10% em abril, vacinamos apenas 8% em maio. A pontinha de esperança foi ver os números de vacinas em estoque naquele momento e perceber que a diminuição do número de vacinados havia sido por conta da complexidade do processo de vacinação no grupo das “comorbidades”, o que será abordado mais pra frente nesse texto.
Agora chegamos ao final do mês de junho com 45,7% dos brasileiros adultos com a primeira dose. Isso significa que em junho foram vacinados cerca de 17% da população, bem acima dos meses anteriores. Com a antecipação dos calendários de vacinação em várias cidades, essa média de vacinação (acima dos 10%) deve se manter no mês de julho.
Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, fechamos o mês de junho com mais de 3 milhões de vacinados (57,7% da população adulta) com a primeira dose e mais de 1 mi (19,4%) vacinados com a segunda dose/dose única.
Mas sabemos que a imunização para a Covid-19 prevê a segunda dose para a maioria das vacinas disponíveis. E nesse quesito ainda estamos bem devagar: apenas 16,3% de brasileiros adultos já tomaram a segunda dose ou tomaram a vacina de dose única. Esse número tão distante do índice de primeira e segunda dose se deve especialmente ao fato de termos utilizado majoritariamente, a partir do mês de abril, as vacinas AstraZ e Pfizer, cujo intervalo para a segunda dose é de 3 meses.
Agora, no mês de julho, temos o desafio de manter o ritmo de primeira dose e dar conta da procura pela segunda dose, que deve aumentar bastante. No Rio de Janeiro a prefeitura já anunciou que tem essa condição, pois ainda não estaríamos utilizando toda a capacidade instalada de vacinação (segundo a Prefeitura, a cidade tem condição de vacinar 70.000 pessoas por dia e está vacinando cerca de 30.000).
Erros e acertos
Uma das marcas gritantes da sociedade brasileira é a sua desigualdade, uma das maiores do mundo. É evidente que o processo de vacinação não iria eliminar isso; porém, ele não poderia ter sido usado para aumentá-la.
E foi isso que aconteceu em muitos casos. A escolha de prioridades foi feita, na maioria dos casos, a partir de critérios corporativos. Ao invés de solidariedade de classe, observamos a prevalência da lógica do “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Infelizmente, os parlamentares progressistas e da esquerda não se diferenciaram nesse processo: com honrosas exceções, ou se calaram ou defenderam as corporações na qual tem inserção social. Paralelamente a isso, os trabalhadores precarizados, sem direito a organização sindical ou corporativa, seguiram trabalhando presencialmente sem que ninguém os defendesse.
A escolha de quais vacinas usar em casa grupo social também não veio a partir de critérios epidemiológicos. Isso deu também fruto da demora e inconsistência na chegada das vacinas. Recentemente, por exemplo, chegaram as vacinas Jansen, para a qual são previstas doses únicas. O melhor seria usarmos elas para grupos sociais que teriam dificuldade de comparecer para a segunda dose, como caminhoneiros e população em situação de rua. Diferentemente disso, na maior parte dos locais elas foram alocadas para a fila geral da vacinação.
Associada a desigualdade e fruto de uma combinação entre fetiche da mercadoria e sinofobia, observamos frequentemente relatos de pessoas que têm se recusado a receber doses da Coronavac, chegando a andar de posto de vacinação em posto de vacinação buscando doses da AstraZ ou Pfizer. Uma prática extremamente individualista e que pode atrasar o processo de vacinação.
Ainda no quesito desigualdade, é preciso falar do problema das “comorbidades”. Como vimos acima, o mês de maio teve um atraso no processo de vacinação por conta da maior parte dos municípios estarem vacinando as pessoas com “comorbidade” neste mês. Sem saber a quantidade de pessoas da comorbidade X no local Y, as prefeituras optaram por um planejamento conservador, o que ocasionou um estoque de vacinas. Isso aconteceu porque vivemos no país um “apagão estatístico”, fruto de nosso último censo do IBGE ter sido em 2010 e também da precariedade dos nossos sistemas de vigilância em saúde (escrevemos sobre isso aqui no EOL em 06/10/2020).
E porque esa questão das comorbidades também se insere no âmbito das desigualdades? Isso acontece pois o acesso à saúde em nosso país, apesar do SUS, é ainda desigual. Por conta disso, é mais fácil para os segmentos sociais de maior renda obter laudos e atestados que comprovavam as comorbidades. Se o critério por idade tivesse sido mantido, naturalmente a população com comorbidade já seria vacinada. Um exemplo que confirma isso é que, ao abrir a vacinação para a faixa de 50-59 anos, a prefeitura do RJ estimava que cerca de 40% da faixa da população já estava vacinada.
Vale sempre lembrar que essa é uma crítica estrutural. Diante dos critérios estabelecidos, entendemos que todos aqueles que foram convocados, qualquer tenha sido o motivo, devem sim comparecer para a vacinação.
E daqui pra frente?
É preciso estarmos atentos aos movimentos que acontecem em torno das campanhas de vacinação Brasil afora, para então reivindicarmos melhorias. Sabendo, por exemplo, que temos vacinas em estoque de forma estável há mais de um mês, é preciso materializar a bandeira “vacina no braço já”.
Para garantir uma vacinação ampla, é necessário exigir que as prefeituras garantam transporte gratuito para aqueles que vão se vacinar e que os calendários sejam divulgados com mais antecedência, além de deixar explícito que aqueles que porventura não possam ir no seu dia, poderão comparecer nos dias subsequentes. Em Curitiba, por exemplo, o calendário de quem será vacinado é divulgado às 20h00 do dia anterior, o que inviabiliza o planejamento e a garantia de que todo o público-alvo será devidamente informado. Esse é um exemplo de como não fazer uma campanha de vacinação.
Visando ajudar no acesso, é preciso também ampliar os locais e horários de vacinação. No Rio de Janeiro temos um bom exemplo a ser seguido em outras cidades, com o uso de espaços amplos para a vacinação, como quadras de escolas de samba e blocos de carnaval, o Sambódromo, clubes de bairro, Jockey Club, Museu da República e outros locais de fácil acesso.
Além disso, chegamos a um momento em que precisamos campanhas publicitárias educativas, visando mostrar que todas as vacinas utilizadas no Brasil tem grande eficácia, que toda pessoa vacinada é um muro a mais contra o vírus e que a proteção mesmo se dá com a vacinação (da população) e não com a vacina individual. Outra campanha necessária é sobre a segunda dose, lembrando da importância de tomá-la.
Ao materializarmos as bandeiras gerais que levantamos, nos aproximamos politicamente de mais setores da população e ganhamos sua confiança, além, evidentemente, de lutar por questões bastante justas.
*Bernardo Pilotto é sociólogo e mestre em Saúde Coletiva pela EPM/Unifesp.
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