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OPRESSÕES

O direito à maternidade e Kathlen Romeu

Juliana Bimbi* e Thais Santos*, de Porto Alegre, RS
Kathlen Romeu posa para fotos em um estúdio, com a mão na barriga com a gravidez
Reprodução

Na última terça-feira, dia 8 de junho, foi morta pela PM do Rio de Janeiro aos 24 anos Kathlen Romeu. Designer de interiores, moradora da comunidade do Lins e que carregava além da sua uma outra vida, pois estava grávida e não disfarçava em suas redes sociais a felicidade de estar se tornando mãe. A perda de uma jovem negra no estado mais pleno de reprodução da vida não pode ser naturalizada como “mais uma” dentro de um estado de genocídio. Kathlen e seu filho não eram números, eram mãe e filho, filha e neto, tinham um companheiro e um pai. 

No contexto brasileiro de 2021, logo após a maior chacina da história do Rio de Janeiro ocorrida no bairro do Jacarezinho em maio, não restam dúvidas dos motivos por trás da morte de Kathlen. A jovem mãe foi vítima de um genocídio que ocorre há mais de 500 anos e que tem sido cada vez mais incrementado em sua forma de tirar vidas. Seja pela fome, pela bala ou pelo covid, todos os dias conhecemos mães, filhos, irmãos, avós negros e negras por conta de mortes causadas pelo estado. 

A ferramenta de análise da interseccionalidade, que entende a construção mútua dos problemas de gênero e raça na construção da classe trabalhadora, nos faz deixar de lado uma visão unilateral e universal sobre o problema da maternidade. Enquanto muitas mulheres, majoritariamente brancas, reclamam da pressão psicológica para serem mães – a chamada “maternidade compulsória”, outras como Kathlen são privadas do direito de sonhar serem mães, pois a maternidade na sua forma romantizada nunca chegou nas periferias brasileiras. O Brasil já liderou os casos de esterilização de mulheres negras e indígenas, muitas delas sendo submetidas a procedimentos cirúrgicos sem autorizar ou saber. Ao mesmo tempo, durante a escravização, eram vistas como reprodutoras de mão de obra para os senhores. Esse tema só pode ser entendido aliado à uma compreensão de raça, que coloca a humanidade de alguns corpos sobre outros. O capitalismo, que tem em sua gênese o machismo e o racismo, age de forma conjunta para animalizar corpos negros e submeter mulheres negras à um papel de reprodutoras conforme o seu interesse imediato – seja de produção de mão de obra barata, seja a partir de uma política de embranquecimento e genocídio. 

O assassinato de Kathlen abre o importante debate de gênero no que é quem tem direito à maternidade no Brasil. O povo preto, pobre e periférico vem sofrendo  ataques racistas, de todos os lados, que atingem centralmente mulheres negras. São as mulheres negras que passaram e infelizmente ainda passam por negligências obstétricas, seja com uma ampla esterilização forçada, que atingiu essas mulheres principalmente no século passado – mas que ainda acontece de forma velada – seja com a violência obstétrica na hora do parto, ou com a criminalização do aborto, que só criminaliza corpos pretos e favelados. Mesmo assim, muitas mulheres negras, como Kathlen, sonham com a maternidade, mas tem as vidas interrompidas pelas mãos do Estado, através da polícia. De 2019 pra cá, o aprofundamento da violência e a militarização das polícias, principalmente no Rio de Janeiro, que é um laboratório de experiências militares no Brasil, foram muitas crianças como Ágatha Félix, como João Pedro, que tiveram suas vidas, seus sonhos arrancados pela violência racista do Estado. Foram muitas mães que perderam o direito de serem mães sem nenhum pressuposto, e que não tiveram até hoje algum tipo de auxílio do estado, como indenização ou mesmo respostas.

O vírus que matou Kathlen Romeu tem nome: racismo. Mas sua condição, a de ser uma mulher gestante, gera questionamentos que devem ser feitos para o interior do feminismo. No Brasil, país onde 54% da população é autodeclarada negra, a maioria das mulheres pode se identificar com Kathlen, não só pela sua condição de gênero, mas também de raça, classe e CEP. Esses atravessamentos são indivisíveis e se materializam em conjunto na maioria da nossa população. Portanto, pensar na melhoria da condição das mulheres em nosso país é pensar, não só em Kathlen Romeu, mas nas mães do jacarezinho que testemunharam a morte dos seus filhos na véspera de dia das mães, ou nas que 15 anos antes se organizaram a partir de um ataque muito parecido na cidade de São Paulo. Por mais que o imaginário social da maternidade nos remete à ideia romantizada de comerciais de margarina, a condição de maternar no Brasil está muito mais próxima à essas mulheres.

Que a vida de Kathlen seja honrada, por todas as mulheres que não privadas de escolha sobre seus próprios corpos, não só pelo trabalho de reprodução que é nos imposto, mas pelo racismo que é um dos principais inimigos da vida e da maternidade no Brasil. Ao mesmo tempo que é sobre as mulheres que recai o papel da reprodução da vida, esse próprio trabalho é exercido sem a garantia de direitos mínimos e dignidade. A prioridade do movimento feminista nesse momento deve ser a luta pelo direito à vida, seja o de simplesmente existir, seja o de cultivar outas existências com dignidade, plenitude e escolha. 

*do Afronte RS