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OPRESSÕES

Anticapacitismo: uma luta que deve ter seu protagonismo na sociedade

Marcela Almeida*, da Resistência Paraná
Educa+ Brasil

“De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual segundo suas necessidades.” Karl Marx et al.; (1881)

Dados epidemiológicos da United Nations apontam que mais de 650 milhões de pessoas em todo o mundo vivem com algum tipo de deficiência. De acordo com a Constituição Federal (Lei n° 13.146/2015, Art. 2°), “considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.” Contemporaneamente, tem-se um olhar biopsicossocial da Pessoa com Deficiência (PCD). Isso significa que o indivíduo é visto para além da alteração na estrutura e função do seu corpo, considerando-se relevantes aspectos socioambientais, psicológicos e pessoais que podem acabar limitando ou restringindo a sua participação no meio social.

A condição da deficiência está presente em todas as regiões do mundo, em todos os países, e muitas vezes as pessoas com deficiência encontram-se à margem da sociedade. Dia a dia testemunhamos inúmeras dificuldades e até mesmo impedimentos desses indivíduos em terem acesso a escolas, empregos, a oportunidade de constituir família, de exercer seu direito cívico (por exemplo, votar), adquirir a própria moradia, enfim, de usufruir uma vida social plena. Em comunhão a tal realidade, há informações preocupantes, que revelam que as pessoas com deficiência compõem a maior e a mais desfavorecida minoria do mundo. Aproximadamente 20% das pessoas mais pobres do mundo são deficientes; 98% das crianças com deficiência nos países em desenvolvimento não frequentam escolas; estima-se que a taxa de alfabetização para adultos com deficiência é abaixo de 3% enquanto para as mulheres esse percentual é ainda menor (1%).

No Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) Censo-2019, consta-se que 17.8 milhões de pessoas possuam algum tipo de deficiência, o que representa 8.4% da população. É sabido que a população com deficiência tende a aumentar, à medida que a população cresce. Isso é ainda mais evidente em países em desenvolvimento, como o Brasil. Devido a prevalência de doenças infecciosas, desastres naturais, conflitos armados e acidentes de trânsitos, conclui-se que a taxa de lesões incapacitantes tende a aumentar em jovens-adultos. Da mesma forma, na população pediátrica é possível prever um cenário semelhante. Uma das razões está relacionado aos cuidados pré, peri e pós-natais insuficientes que podem levar a situações de risco. A outra explicação está relacionada ao advento dos recursos tecnológicos das Unidades de Terapias Intensivas Neonatais, que possibilitaram a sobrevivência de crianças de risco, que em outras condições, não resistiriam.

O fato de que a incidência de pessoas com deficiência vem aumentando ao longo dos anos, nos leva a vislumbrar uma conjuntura em que devemos reafirmar os direitos, cessar com a injustiça e a discriminação dessa população, a fim de garantir sua ampla participação na sociedade. No entanto, ainda é possível encontramos muitas barreiras que impossibilitem ou dificultem sua inserção como estudantes, trabalhadores, familiares e cidadãos, e a isso damos o nome de capacitismo. Capacitismo “é a discriminação de pessoas por motivos de deficiência e tem sido compreendido como um eixo de opressão na intersecção com o racismo e sexismo produz como efeito a ampliação dos processos de exclusão social.” O capacitismo é estrutural e estruturante, visto que ele influencia e torna-se a parte principal do sujeito, de organizações e de instituições; também estabelece formas de se relacionar baseadas em um ideal de sujeito que é regido pelas capacidades normativas.

As capacidades normativas fazem alusão aos corpos classificados como “capazes”, sendo que aqueles que estão fora dos padrões ditos como “normais” devem ser excluídos. Além disso, há uma associação entre o capacitismo e as práticas eugênicas, que em nome da corponormatividade se chancelaram práticas como encarceramento, esterilização involuntária e até mesmo a eliminação de pessoas com deficiência. Somado a isso, existe uma relação entre o capacitismo e o aperfeiçoamento do sistema capitalista: a determinação de um padrão de corpo cujo intuito é manter e aperfeiçoar o sistema econômico então vigente. Segundo uma visão marxista, o capacitismo está sustentado em uma cultura da eficiência e do desempenho, ou seja, na imagem do “homem produtivo”. De acordo com a lógica salarial, a sociedade capacitista reconhece as pessoas com deficiência como “corpos não-produtivos.”

A compreensão de que a deficiência é uma experiência social compartilhada, que traz a luz questionamentos quantos aos aspectos sociais que compõem a segregação. Para elucidar essa problemática, referências do marxismo, são a principal influência dos primeiros estudos do modelo social da deficiência. Diniz (2010) in Gesser et al.; (2020) faz um importante relato: “o modelo médico, ainda hoje hegemônico para as políticas de bem-estar voltadas para deficientes, afirmava que a experiência e a segregação, desemprego e baixa escolaridade, entre outras variações de opressão, era causada pela inabilidade do corpo lesado para o trabalho produtivo.” Assim sendo, se o modelo médico apontava o problema para a lesão, o modelo social entendia a deficiência como uma condição de opressão, que tem como alicerce uma política fundamentada na economia capitalista. A deficiência está intimamente ligada ao homem produtivo. Estudos recentes visam distinguir entre a opressão e a exploração, mostrando dessa forma, a ordenação capitalismo-lesão-deficiência. Isso quer dizer, a deficiência é uma consequência social decorrida em detrimento de um produtivismo capitalista.

O capitalismo inferioriza e segrega os corpos considerados atípicos, os que não são produtivos segundo seus padrões de normatizações de eficiências. O que se observa é que o corpo com algum tipo de lesão é colocado em posição oposta ao da identidade social dominante. As pessoas com deficiência são julgadas como “menos capazes” ou “incapazes”. A justificativa se dá pela moral burguesa, que é desenvolvida por meio do paradigma da produtividade, especialmente, o lucro. A partir dessa premissa, constrói-se uma estrutura que define essas pessoas como inaptas e desabilitadas, tanto para a produção material, quanto para a produção intelectual e até mesmo no que diz respeito a sua autodeterminação. Ao adotar tal concepção é comum observarmos alguns comportamentos, como por exemplo: 1. responsabilizar as pessoas com deficiência pela sua condição; 2. construir estratégias direcionadas à adequação do corpo às normatividades para torná-los reconhecidos como humanos; 3. tornar as suas condições de vida precárias, devido à ausência do Estado na garantia de adequação dos espaços de acordo com as necessidades corpóreas; 4.pressupor que as pessoas com deficiência são inteligíveis para ocupar posições de destaque no meio laboral.

A maternidade e a deficiência

“A família é o primeiro grupo no qual o indivíduo é inserido” (Fiamenghi Jr; Geraldo; Messa; 2007). Ela é uma importante unidade social pertencente a sociedade, que atua de maneira interdependente, ou seja, os relacionamentos configurados entre os familiares influenciam uns aos outros, e qualquer mudança irá impactar na subjetividade do sujeito ou na sociedade como um todo. No momento em que acontece o nascimento de um filho, há transformações tanto na vida emocional, financeira e no cotidiano dos seus progenitores, quanto na sua estruturação psíquica. O desejo de um filho eficiente e com saúde é um sentimento recorrente no sistema socioeconômico vigente (capitalismo). Quando o filho tão almejado dentro da corponormatividade não vem, seus progenitores são levados a rever seus projetos e a ressignificar seus sonhos. A presença de um filho com deficiência demanda cuidados e reponsabilidades que podem modificar o estilo de vida e o cotidiano dos progenitores. Alguns pais não suportam tal condição e acabam abandonando seus filhos em instituições, desencadeiam conflitos conjugais, têm dificuldades em manter uma qualidade de vida saudável e podem se privar de momentos de lazer e amizades e por vezes renegam suas famílias.

Segundo dados do IBGE (2019), no Brasil há mais de 11 milhões de mães solo. Ser mãe solo engloba as seguintes atribuições: responsabilidade por cuidar dos filhos, conciliar o trabalho e garantir o suporte financeiro. Em um estudo publicado por Figueiredo, Cardoso e Amorim (2022), em que os autores traçaram um perfil socioeconômico das mães de pessoas com deficiência, observou-se que 40% destas são classificadas como mãe solo, em um cenário em que se constata a ausência paterna. Além disso, constatou-se que apenas 2.5% das mães concluíram o ensino superior e 75% delas tem a profissão de doméstica. A situação é complexa, pois a função da mãe de pessoas com deficiência no contexto familiar é proporcionar o cuidado integral, sem medir esforços para garantir o que há de melhor e adequado para o seu filho. É sabido que elas sofrem uma imposição social para que exerçam essa função de maneira singular, abdicando muitas vezes da sua vida pessoal, social e profissional com o intuito de se dedicar exclusivamente ao seu filho.

Um agravante de tal circunstância, é o desafio dessas mães em ingressarem no mercado de trabalho, uma vez que seus filhos podem requerer demandas como tratamentos, atenção e cuidados intensivos. A assistência está centrada na criança, portanto, todo o foco está direcionado a melhora do seu quadro clínico, e dessa forma, a mãe acaba sendo negligenciada. A ela resume-se a função de cuidadora. A partir desse contexto, evidencia-se que essas mães estão em situação de elevada vulnerabilidade social. Para tanto, criaram-se políticas públicas como o Benefício de Prestação Continuada (BPC)- previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS): “é a garantia de um salário-mínimo por mês ao idoso com idade igual ou superior a 65 anos ou à pessoa com deficiência de qualquer idade. No caso da pessoa com deficiência, esta condição tem de ser capaz de lhe causar impedimentos de natureza física, mental, intelectual ou sensorial de longo prazo (com efeitos por pelo menos 2 anos), que impossibilite de participar de forma plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com os demais.” Recentemente elaborou-se um Projeto de Lei 2859/20, em que se institui a Semana Nacional da Maternidade Atípica (terceira semana do mês de maio). O objetivo deste Projeto de Lei é proporcionar maior visibilidade as mães de pessoas com deficiência afim de fomentar políticas públicas, visando assistência aos cuidados com a saúde mental (visto que há um elevado índice de suicídio entre as mães atípicas) e prover condições para que as mães trabalhem mesmo recebendo o BPC. No ano de 2021 foi proposto um Projeto de Lei 4/2021 que pretende assegurar cotas para essas mães em concurso público, cujo intuito é minimizar os impactos vividos pelas mesmas, de maneira a assegurar a concorrência de vagas dentro das cotas destinadas as pessoas com deficiência.

Anticapacitismo- Construção emancipatória

A deficiência é uma questão política, de direitos humanos e de luta, portando devemos mudar o olhar a respeito da deficiência. Mudarmos no sentido de parar de procurar as supostas limitações e sim, buscarmos romper os obstáculos que intrincam sua participação social. Ao refletirmos sobre o pensar emancipatório das pessoas com deficiência, é importante destacar que elas devem ser sujeitos ativos do processo de transformação social, material e sobretudo, da produção de conhecimento. A relevância para produção de conhecimento é justificada pela potencialização do poder emancipatório que essas pessoas podem alcançar ao estarem inseridas em pesquisas de campo dos estudos da deficiência. E como isso acontece? Existem alguns caminhos para que alcancemos tal objetivo, entre eles estão: o aprendizado da realidade das pessoas com deficiência; o desenvolvimento de uma ciência politicamente dedicada e comprometida com as lutas das pessoas com deficiência; a responsabilização do investigador (pessoa com deficiência) frente ao investigado (as organizações) e por fim, metodologias que visem captar a complexa e a real situação dessas pessoas com o intuito de valorizar sua voz.

As lutas anticapacitistas tornam-se cada vez mais urgentes e necessárias. Quando colocamos a deficiência no corpo como uma lesão, imediatamente condicionamos as pessoas com deficiência a buscar tratamentos médicos voltados para a correção dos supostos desvios de seus corpos, e de outro modo, deveríamos incentivá-las a lutar por direitos humanos e pela justiça social. No momento em que compreendemos que deficiência não pode estar atrelada a corponormatividade, iniciamos uma valorosa luta contra a manutenção da opressão das pessoas com deficiência. Ao incorporarmos uma perspectiva anticapacitista, ampliamos o potencial de superar as políticas de opressão, então enraizadas e sustentadas pela lógica do capitalismo cujo ponto central está fundamentado no corponormativo, na branquitude e na hetero-cis-normatividade.

O modelo social da deficiência requer a garantia de direitos a partir da noção de direitos humanos. Dessa forma, a dignidade precisa ser compreendida como uma condição indissociável da humanidade. A liberdade está vinculada a autonomia, sendo o sujeito o agente principal na tomada de decisões que afetem sua vida. E por fim, a igualdade precisa estar ligada à atenção aos direitos fundamentais. Posto isso, o pensamento sobre a luta anticapacitista carece de medidas e ações que reafirme a dignidade e o valor de cada pessoa com deficiência. Agregado a isso, o Estado deve ser capaz de implementar políticas públicas eficazes que acabem com a discriminação, a injustiça e a violação de direitos que confrontam a maioria dessas pessoas. Desse modo, um importante pensador marxista, Faron (1965) in Gesser et al.; (2020), nos aponta uma notável reflexão: se queremos transformar a realidade das pessoas com deficiência, precisamos conhecê-la.

Um agradecimento especial à Kamilla Satre- Co vereadora pelo Psol Belém-Pará.

* Marcela Almeida é Fisioterapeuta e Doutora em Saúde da Criança de do Adolescente pela Universidade Federal do Paraná

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