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BRASIL

Escolas abertas e UTIs lotadas: a face do genocídio docente no Brasil

Rafael Rabelo*, de Fortaleza, CE
Filipe Araujo / Fotos Públicas

Ato público em 2020, contra a volta às aulas presenciais em SP.

O debate sobre a reabertura das escolas, públicas e privadas, durante a pandemia de COVID-19 no Brasil está contaminado pelo vírus do bolsonarismo, com sintomas de negacionismo, notícias falsas e desprezo pelas estatísticas tendo como consequência um aumento na incidência de contaminação e mortes entre trabalhadores da educação desde o início de 2021. Neste texto serão apresentados três elementos que baseiam essa afirmativa e se buscará um tratamento para o vírus neofascista, no sentido de descontaminar o debate.

Em primeiro lugar, é necessário colocar os argumentos no seu devido lugar. A educação remota durante a pandemia, em qualquer formato, é emergencial e não substitui o ensino presencial. Na Educação Pública, é consenso que a Escola é muito mais do que as salas de aula, sendo um espaço de socialização, fuga da violência e do trabalho infantil, bem como uma possibilidade de superar as deficiências nutricionais. Em resumo, “Educação à Distância”, principalmente na Escola Pública, é uma ilusão, não se sustenta na realidade.  

Assim sendo, é muito importante reafirmar que não é o “medo de contágio” dos professores que estendeu a utilização desse modelo por mais de um ano, mas devido ao problema crônico no Brasil da falta de investimento em infraestrutura escolar e no acesso à educação. Desta forma, não é justo comparar a quantidade de dias em que as escolas ficaram fechadas no último ano no Brasil e em países europeus, já que, para usar apenas um indicador (1), a média de alunos por sala no Ensino Médio na União Europeia é de 22,5, nos países membros da OCDE 23,8, nos EUA  24,9, enquanto no Brasil é de 33,4. As salas de aula brasileiras são superlotadas porque historicamente existem em número insuficiente para a demanda de estudantes e professores e este não foi um problema criado pela pandemia. O retorno, mesmo em formato híbrido, de 35% ou 50% dos estudantes, para a escola tem que ser contabilizado sobre estas bases. 

Além do que, é fácil constatar que são os teóricos neoliberais, os empresários da chamada “economia do conhecimento” e seus governos auxiliares que defendem a ampliação do modelo de “Educação à Distância”, fartamente utilizado no ensino superior desde a abertura do setor à iniciativa privada nos anos 90 e com constantes ameaças de implementação na educação básica. Também vale lembrar do recente lobby pela regulamentação do homeschooling no Brasil. Em geral, professores, trabalhadores da educação, sindicatos, organizações, coletivos da sociedade e teóricos progressistas somos os que, constantemente, temos lutado e defendido a necessidade e importância do ensino presencial e da ampliação do acesso à Educação no processo de formação integral dos indivíduos. Os defensores de momento das “escolas abertas” têm utilizado nossos argumentos contra nós mesmos, sem moderação.

Em segundo lugar, é preciso afirmar que existem critérios científicos para a reabertura das escolas e se elas não estão abertas ou se os professores estão em greve sanitária, é porque estes critérios não estão sendo seguidos. Em 28 de fevereiro deste ano a Fiocruz publicou uma nota técnica (2) em que define Sete Indicadores Recomendados para a Abertura Segura do Atendimento Presencial nas Escolas, são eles: 

 

  1. Casos por 100.000 habitantes por semana epidemiológica. Uma taxa superior a 100 novos casos por 100.000 habitantes é considerada pelo CDC/EUA como de altíssimo risco de transmissão. Em 20 de maio, a média diária no Brasil foi de 65.962 novos casos. (3)
  2. Medidas sanitárias não farmacológicas. Uso de máscara constantemente, distanciamento social, higiene respiratória e rastreamento de contatos por testagem. O Brasil não tem uma política nacional que centralize a aplicação medidas sanitárias e o presidente constantemente desrespeita as medidas estaduais e municipais, como recentemente no Maranhão (4) e no Rio de Janeiro (5). Da mesma forma, não existe testagem em massa e muito menos rastreamento de contatos. 
  3. Taxa de contágio R < 1 por semana epidemiológica, o ideal é que seja 0,5 para a reabertura das escolas.   Em 20/05, a média de reprodução do vírus no Brasil era de 1,04 (6). Em estados que já autorizaram o retorno presencial este número também é elevado, como em SP (1,03), Rio de Janeiro (1,07) e Paraná (1,23). 
  4. Disponibilidade de leitos de UTI. Pelo menos 25% livres. Na semana de 01 a 07 de maio, 10 capitais estavam com 90% de ocupação de leitos ou mais e a ocupação média no Brasil era de 82,2% segundo o painel (7) da Fiocruz. 
  5. Redução de 20% ou mais do número de óbitos por semana epidemiológica. Entre o final de abril e a atual semana epidemiológica, o número de óbitos não apenas não caiu, como aumentou dentro do limite do que se considera estabilidade, de 1.910 óbitos para 1.971 (8).  
  6. Taxa de positividade dos testes RT-PCR menores do que 5%. Qualquer indicador referente à testagem no Brasil está de antemão comprometido, visto que o governo federal não apostou nesta estratégia de controle da pandemia e negligenciou a compra e distribuição de testes. A subnotificação por falta de testagem no Brasil chega a ser 2,5 vezes em relação aos óbitos e de 10 vezes em relação aos casos. (9)
  7. Capacidade de detectar, testar, isolar e monitorar pacientes e contactantes. Diagnosticar pelo menos 80% dos casos por região, Estado, Município ou território. Como dito anteriormente, a situação da testagem no Brasil não permite que este indicador seja efetivo. 

É lamentável reconhecer que nenhum indicador recomendado pela FIOCRUZ seja seguido no Brasil ou esteja dentro dos parâmetros necessários para garantir uma reabertura segura das escolas. Da mesma forma, é importante destacar que nenhum deles é de responsabilidade de professores ou trabalhadores da educação. 

Em terceiro lugar, existe um elemento da realidade que é inconteste. Nós, professores e professoras, estamos morrendo devido ao contágio pela COVID-19, e onde as escolas já reabriram as taxas de infecção e mortalidade são maiores.      

Segundo estudo publicado na revista Science pela Escola de Saúde Pública Johns Hopkins em 29 de abril (10), com cerca de 2 milhões de voluntários em 50 estados norte-americanos, o retorno às aulas presenciais aumentou a incidência das infecções por SARS-COV2 tanto na comunidade escolar quanto em casa, com pais e familiares. Apesar da transmissão dentro das salas ser baixa, caso as medidas sanitárias sejam seguidas, ela se intensifica nas atividades relacionadas à escola presencial, como a retirada e entrega de alunos, interações com os professores e mobilidade dos profissionais. Segundo a FIOCRUZ, só na cidade de São Paulo, a retomada do ensino presencial aumenta a circulação de pessoas nas ruas em 32%. (11)

Outro estudo (12), este da REPU (Rede Escola Publica e Universidade), ligada a professores das universidades públicas e do Instituto Federal de São Paulo, realizado entre 07 de fevereiro e 06 de março (após a determinação de retorno presencial) em 299 escolas da rede estadual, constatou que a incidência de COVID entre os professores é 2,92 vezes maior do que a média da população em geral, o que significa um nível de infecção 192% maior. O período estudado coincide com a chamada “segunda Onda” de COVID no Brasil, mas, mesmo assim, enquanto o aumento do número de casos na população em geral foi na ordem de 81%, entre os docentes foi de 138%. 

Os dados podem ser sentidos pela categoria docente e pelos outros trabalhadores da educação. O SEPE (Sindicato dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro), criou um memorial para lembrar das vítimas da pandemia entre os trabalhadores da educação que já conta com 77 nomes. Em Niterói, o subsecretário de Educação, de 36 anos, infelizmente, faleceu em decorrência da COVID, após realizar visitas em escolas para preparar o retorno às aulas. O SEPE Niterói, que tem divulgado os óbitos na categoria, declarou greve pela vida e divulgou um relatório com a situação em cada unidade de ensino. 

 Em São Paulo, a APEOESP (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo) tem feito um levantamento próprio, no qual contabiliza 2.485 casos em 1.124 escolas. O que levou a 90 óbitos de profissionais da educação vítimas da pandemia. Os professores estaduais paulistas estão em uma heroica greve sanitária há mais de 100 dias. 

No Ceará, cedendo a pressões da iniciativa privada, o governador Camilo Santana (PT) liberou a abertura da educação infantil e ensino fundamental na rede privada desde abril. Há incontáveis relatos de descumprimento das medidas sanitárias nas escolas particulares e exigências abusivas em relação às aulas remotas para os profissionais, chegando ao ponto de, em uma delas, seis profissionais falecerem vítimas da pandemia em pouco mais de um mês.  

Para concluir, a educação por modelo remoto é falha, insuficiente e reforça as desigualdades estruturais da educação brasileira. Quando o governo neofascista de Bolsonaro escolheu como estratégia de enfrentamento da pandemia a imunidade de rebanho, a distribuição de medicamentos ineficientes e a displicência com a compra e distribuição de vacinas, se conformou não apenas um genocídio programado da população, mas também o fechamento das escolas e o modelo remoto emergencial como regra, o que, de fato, tem o potencial para causar danos no desenvolvimento de crianças e adolescente por décadas, bem como aumentar os índices de evasão escolar, violência doméstica e trabalho infantil. 

Mas é um erro colocar professores e outros profissionais da educação nesta encruzilhada. Ela é responsabilidade de Bolsonaro e parte de um projeto genocida de poder que hoje, infelizmente, controla o poder executivo.

 

*Mestre em Políticas Públicas e professor da Educação Básica.

NOTAS

(1) https://www.apagina.pt/?aba=7&cat=160&doc=11852&mid=2
(2) https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/documentos/contribuicoes_para_o_retorno_escolar_28_fev2021.pdf
(3) https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/05/22/media-movel-mortes-covid.htm
(4) https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,no-mesmo-dia-em-que-bolsonaro-aglomera-ministro-da-saude-vai-ao-maranhao-entregar-testes,70003724182
(5) https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/05/23/bolsonaro-faz-passeio-de-moto-com-apoiadores-no-rio-de-janeiro.ghtml
(6) https://covid19analytics.com.br/reproducoes/numero-efetivo-de-reproducao-22-de-maio-de-2021/
(7) https://www.poder360.com.br/coronavirus/ocupacao-media-das-utis-no-brasil-e-de-822-indica-fiocruz/
(8) https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/05/22/media-movel-mortes-covid.htm
(9) https://covid19analytics.com.br/reproducoes/numero-efetivo-de-reproducao-22-de-maio-de-2021/
(10) https://science.sciencemag.org/content/early/2021/04/28/science.abh2939
(11) https://saude.abril.com.br/familia/o-dilema-das-escolas-diante-da-covid-19/#:~:text=Segundo%20o%20m%C3%A9dico%2C%20estudos%20que,o%20pat%C3%B3geno%20para%20o%20lar.
(12) https://www.repu.com.br/notas-tecnicas