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BRASIL

O que muda com o novo licenciamento ambiental?

Novo licenciamento é a “mãe de todas as boiadas”, aquela que abrirá caminho para todas as outras.

Matheus Hein Souza*, de Porto Alegre, RS
MUlher com colete amarelo, escrito IBAMA Emergência Ambiental nas costas. Ela fotografa o mar de lama em Brumadinho
IBAMA / Fotos Públicas (29/02/2019)

Funcionária do IBAMA em Brumadinho, após vazamento da barragem da mineradora Vale.

Na última quinta-feira (13/05) a Câmara dos Deputados aprovou com confortável maioria (300 votos sim contra 122 não) o PL 3729/2004, que, se aprovado no Senado, modificará profundamente o atual licenciamento ambiental no Brasil. O projeto, que é debatido há 17 anos, foi posto em pauta e votado com extrema celeridade. Segundo informado, a oposição teve apenas uma semana para conseguir ler as modificações ao texto e se preparar para a votação. (1) A pressa é uma demonstração da característica fortemente anti-ecológica presente nos mais diversos âmbitos da política brasileira, do legislativo ao executivo. 

O que muda?

As modificações no licenciamento tem como objetivo desregulamentar uma série de atividades com impacto ambiental. O discurso é o mesmo que encontramos em diversas áreas: o setor tem muitas regras, está burocratizado, dá prejuízo. Na prática, agora o setor privado terá imensa facilidade em operar sem qualquer tipo de fiscalização por parte do poder público, que se exime de responsabilidade quanto aos impactos dos projetos.

O PL prevê, entre outras coisas, a “flexibilização” de regras nas seguintes atividades: a) obras de serviço público de distribuição de energia elétrica até o nível de tensão de 69 kV; b) sistemas e estações de tratamento de água e de esgoto sanitário; c) obras em rodovias que não levem ao aumento da capacidade, como no caso do recapeamento asfáltico; d) usinas de triagem de resíduos sólidos, mecanizadas ou não; e) pátios, estruturas e equipamentos para compostagem de resíduos orgânicos; f) usinas de reciclagem de resíduos da construção civil; g) ecopontos e ecocentros; h) manutenção e melhoramento da infraestrutura em instalações pré-existentes ou em faixas de domínio e de servidão, incluindo dragagens de manutenção; i) cultivo de espécies de interesse agrícola, temporárias, semiperenes e perenes pecuária extensiva, semi-intensiva e pecuária intensiva de pequeno porte; j) pesquisa de natureza agropecuária, que não implique risco biológico. (1)

As modificações são propositalmente vagas, cabendo a interpretação no momento da aplicação. De modo a melhor entendermos os riscos e impactos catastróficos que as alterações terão, centraremos em três aspectos:

1) Autolicenciamento como norma:

Na prática, as alterações liberam a Licença por Adesão e Compromisso (LAC) para qualquer atividade de baixo ou médio risco. A LAC é também chamada de “autolicenciamento”, pois se trata de um compromisso formal do requisitante em obedecer as leis e regras ambientais, sem que haja qualquer responsabilidade de fiscalização efetiva após firmar o compromisso. Segundo uma análise feita por um conjunto de ex-ministros do Meio Ambiente, atividades de pequeno e médio porte (pavimentação, ampliação de estradas, ampliação de hidrelétricas, entre outros) são responsáveis, historicamente, por 95% do desmatamento na Amazônia. (2)Trata-se de atividades que individualmente podem aparentar ter um impacto pequeno, mas que são numerosas e se estendem por longos territórios da Amazônia.

A liberação da LAC para a ampla maioria das atividades com algum impacto ambiental, somada ao desmonte, perseguição e precarização das agências e órgãos de fiscalização, abre as portas para um processo de avanço catastrófico nos níveis de desmatamento e destruição não só da Amazônia, colocando em risco absoluto todos os biomas do Brasil.

2) Estadualização e municipalização da fiscalização e aplicação de regras

Na mesma análise dos ex-ministros mencionada anteriormente, eles identificam uma série de artigos que passam a responsabilidade aos estados e municípios, permitindo também que estes atribuam juízo para cada requerimento a partir dos seus próprios interesses, sem necessitar responder diretamente a um órgão federal. Existe certa autonomia para estados e municípios atuarem no tocante ao licenciamento ambiental, mas agora o governo se exime de grande parte da fiscalização e responsabilidade, o que tende a enfraquecer a proteção ambiental a depender dos interesses de cada governo local e suas relações com o interesse econômico da região. Assim, regiões que sofrem maior assédio de empresas com projetos exploratórios e extrativistas, estarão mais suscetíveis e liberadas para permitirem atividades com dano ambiental, já que caberá a estas unidades atribuírem o risco destes projetos.

Outro fator é que estados e municípios competirão por estes projetos, negociando o afrouxamento das restrições em vista de atrair tais empreendimentos para suas regiões. É válido lembrar que em 2016 o estado de Minas Gerais autorizou que a Vale atribuísse à mina de Brumadinho o nível 4 de risco, que corresponde a risco médio. (3) Com as modificações do licenciamento, ao liberar a LAC a projetos de médio risco e ao atribuir aos estados e municípios maior autonomia nas decisões, podemos ver Brumadinhos se espalhando pelo Brasil.

3) Ameaças para indígenas e quilombolas

Um último fator de extremo risco é a posição no qual as modificações colocam as terras não demarcadas e não tituladas de povos indígenas e quilombolas. Os artigos 39 e 40 do novo licenciamento retiram a obrigatoriedade da realização de análise de impacto e adoção de medidas protetivas em terras indígenas e quilombolas que estejam em processo de demarcação e titulação. Hoje, 40% do total das terras indígenas e 84% das terras quilombolas se enquadram nesta nova catalogalização. (4) Assim, indígenas e quilombolas estariam postos à própria sorte, sem qualquer garantia de proteção do poder público.

No contexto de pandemia estamos presenciando de forma acentuada o racismo estrutural no Brasil no que diz respeito a estas populações tradicionais, com um lento e discriminatório processo de vacinação,(5) ao mesmo tempo que vemos ações de garimpeiros rolarem livremente em territórios indígenas já demarcados.(6) Com as alterações no que diz respeito a estes povos, a tendência é que o cenário de violações se aprofunde radicalmente somado ao enfraquecimento sistemático da fiscalização e proteção destas áreas e da ação ilegal de madeireiros e garimpeiros.

Um não-licenciamento ambiental

Analisando estes fatores fica claro que o novo licenciamento ambiental se trata na verdade da extinção de qualquer licenciamento. Uma leitura aprofundada permite encontrar ainda mais fatores de riscos além dos supracitados: dispensa de análise em áreas de conservação; entraves à Política Nacional de Recursos Hídricos; enfraquecimento de medidas de contenção ao desmatamento; isenção da responsabilidade dos empreendedores… a lista é longa.

Não é difícil entender o cenário político que nos encontramos e que possibilita este tipo de patrolagem, já que temos o poder político absolutamente entregue aos ruralistas, às mineradoras e às madeireiras. Infelizmente, esta não é uma realidade de hoje, já que estes setores vem há décadas construindo seu peso político, fazendo parte de todos os governos desde a redemocratização e progressivamente pautando a política ambiental do país. Mesmo nos momentos mais progressistas após a ditadura, a tensão entre os interesses divergentes em relação a proteção ambiental sempre pendeu para o lado das forças destrutivas. No atual cenário, entretanto, a situação atinge o nível da calamidade.

Sessão de votação. Foto: Pablo Valladares / Agência Câmara.

Atualmente a Frente Parlamentar da Agropecuária – braço legislativo dos interesses ruralistas – possui 245 deputados alinhados ao seu programa e interesses. (7) Para termos noção em termos de proporção, a Câmara dos Deputados é composta por 513 assentos. Isto é, apenas a bancada ruralista forma praticamente metade da Câmara. Dessa forma, Câmara e Executivo – através da pasta de Meio Ambiente – caminham em perfeita consonância no seu projeto de afrouxamento nas medidas de proteção ambiental. Afinal, Salles defende há bom tempo que se use a pandemia para “passar a boiada”, o que de fato o anti-ministro tem feito com excelência ao possibilitar todo tipo de ações ilegais na Amazônia, enfraquecendo os órgãos de fiscalização e trabalhando em conjunto com grupos com projetos escusos. O novo licenciamento ambiental, entretanto, é a “mãe de todas as boiadas”, aquela que abrirá caminho para todas as outras.

A aprovação do projeto ainda depende da decisão do Senado, mas a tendência é ratificar a decisão dos deputados. A boiada está passando com extrema liberdade. É preciso interromper esta marcha com extrema urgência, antes que só reste terra arrasada.

*Pós-graduando em Filosofia pela PUC-RS e militante do Afronte e da Resistência/PSOL do Rio Grande do Sul.

NOTAS

1 – https://g1.globo.com/natureza/noticia/2021/05/13/nova-lei-do-licenciamento-ambiental-entenda-quais-sao-os-proximos-passos-e-o-que-esta-em-jogo.ghtml

2 – https://www.terra.com.br/noticias/ciencia/sustentabilidade/nove-ex-ministros-do-meio-ambiente-protestam-contra-projeto-da-lei-geral-do-licenciamento,63b0ad7ade7294ea077848f502146659pf8cy47h.html

3 – https://brasil.mongabay.com/2020/01/governo-de-minas-favoreceu-25-projetos-de-alto-risco-da-vale-brumadinho-e-apenas-um-deles/

4 – http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/609247-camara-aprova-texto-principal-de-projeto-que-praticamente-acaba-com-licenciamento-ambiental

5 – https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Saude/noticia/2021/03/vacinacao-contra-covid-19-e-mais-lenta-para-indigenas-da-amazonia.html

6 – https://oglobo.globo.com/brasil/yanomami-justica-federal-manda-governo-manter-forcas-de-seguranca-de-forma-permanente-em-aldeia-atacada-por-garimpeiros-25015916

7 – https://revistagloborural.globo.com/Noticias/Politica/noticia/2020/12/bancada-ruralista-tem-peso-para-definir-eleicoes-na-camara-e-senado.html