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Marighella, enfim, nos cinemas

Seu Jorge e Wagner Moura
Reprodução

Carlos Zacarias

Carlos Zacarias é doutor em História e pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades (CRH) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde leciona desde 2010. Entre 1994 e 2010 foi professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), onde dirigiu a Associação Docente (ADUNEB) entre 2000 e 2002 e entre 2007 e 2009. Colunista do jornal A Tarde de Salvador, para o qual escreve artigos desde 2006, escreve às quintas-feiras, quinzenalmente, sobre temas de história e política para o Esquerda OnLine. É autor de Os impasses da estratégia: os comunistas, o antifascismo e a revolução burguesa no Brasil (1936-1948) (São Paulo, Annablume, 2009) e no ano passado publicou De tédio não morreremos: escritos pela esquerda (Salvador, Quarteto, 2016) e ainda organizou Capítulos de história dos comunistas no Brasil (Salvador, Edufba, 2016). É membro da Secretaria de Redação da Revista Outubro e do Conselho Editorial das revistas Crítica Marxista, História & Luta de Classes, Germinal, entre outras.

Atualizado em 03/11/2021 às 13:30h

Após três anos de expectativas, Marighella, filme de Wagner Moura produzido em 2019, entra no circuito comercial no Brasil. A demora na estreia não foi por culpa da pandemia, mas da gestão da Ancine, que desde a eleição de Bolsonaro dificulta a distribuição da obra nos cinemas brasileiros. Não obstante, o primeiro filme dirigido pelo ator baiano vir sendo apresentado em vários festivais, sendo saudado pela sua grande qualidade, o desejo manifestado pelo presidente eleito em 2018, e depois confirmado em várias circunstâncias, determinou a não-distribuição para os cinemas, como pretendia o realizador. Em 2021, entretanto, Moura finalmente lança seu filme no mês da Consciência Negra, na exata data de morte do guerrilheiro, abatido pelas forças da Ditadura em 1969.

As expectativas em torno da exibição de Marighella não arrefeceram e nem mesmo seu vazamento para a internet em fins de 2020 retiraram a aura de “filme proibido” que ele veio adquirindo ao longo desses anos de contendas com a burocracia que assumiu a direção da Ancine e que criou toda sorte de obstáculos para a distribuição da película, feita para ser vista na sala escura.

Assisti Marighella em novembro de 2020 num cinema em Salvador, onde a obra foi exibida em sessões especiais para que estivesse elegível a concorrer ao Oscar. Na ocasião fui ao tradicional cine Glauber Rocha e adquiri o último ingresso de uma das sessões que passaram nas três semanas em que o filme permaneceu em cartaz. O cinema estava com sua capacidade máxima permitida (50% da sala) toda ocupada e, segundo me informaram, havia sido assim em todos os dias. Havia muita expectativa de minha parte quanto ao filme e certamente do público que permanecia em silêncio na sala de exibição. Nos dias anteriores, os jornais locais haviam dado boa cobertura ao evento, inclusive nomeando as personalidades políticas e do meio artístico que haviam desfilado pelo cine Glauber Rocha, como Maria Marighella, neta do guerrilheiro, eleita vereadora de Salvador para o primeiro mandato poucos dias antes. Maria é dessas personagens a quem o filme diz muita coisa, pois além de neta de Marighella, também interpreta a mãe de Carlinhos, filho do comunista, na película.

Cobrindo a última fase da vida do valente militante baiano, Marighella, de Wagner Moura, é digno de todos os elogios, pois é dirigido com esmero pelo realizador estreante e parte do tempo, muito especialmente nas cenas de ação, com a opção de uso do recurso de carregar a câmara na mão, o que dá a sensação de agilidade, tensão e nervosismo pretendidos.

Todavia Marighella não é um filme de ação, apesar das cenas de explosão, dos tiroteios, das prisões e tortura. O que move o filme de Moura é o convite à reflexão sobre a conjuntura política (de ontem e de hoje) e a possibilidade de se enfrentar um regime (a Ditadura) instaurado pela força (o golpe de 1964) de outro modo que não seja também pelas armas. Por conta disso, não são poucas as cenas em que as escolhas de Marighella são trazidas à cena, muito especialmente nos muitos momentos em que o líder da ALN discute com seus companheiros as possibilidades de enfrentamento da Ditadura nas circunstâncias em que qualquer participação política tinha sido interditada e a única alternativa de luta parece ser empunhar um fuzil, uma metralhadora ou uma pistola. Da mesma forma, o espectador também acompanha o solilóquio do guerrilheiro, que decidiu por deixar para trás o filho Carlinhos (Renato Assunção e Francisco Matheus de Araújo) e sua esposa Clara (Adriana Esteves) e enveredar pelo caminho incerto da guerrilha, alternando o otimismo quanto à possibilidade do “povo” vir em socorro dos lutadores, com a pungente constatação de que os revolucionários estão no mais profundo isolamento.

O filme de Wagner Moura se inspira em alguns dos últimos capítulos do livro do jornalista Mário Magalhães, Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo. Magalhães também assina o roteiro enxuto, junto com Felipe Braga e o próprio Wagner Moura. O filme faz jus à narrativa frenética contida no livro, mas obviamente não se propõe a substituir a verdadeira história de Marighella, que tem uma longa trajetória de militante comunista antes de incursionar pelo caminho da luta armada. Por conta disso o filme é, também, um convite à leitura da obra de Mário Magalhães e de outros títulos que abordam os caminhos da guerrilha, dos comunistas e das lutas do povo brasileiro.

A propósito das escolhas feitas pelo diretor, que não se cansa de repetir que seu filme é sobretudo sobre as lutas do presente, algumas polêmicas deram vazão ao fato de que Wagner Moura optou por valorizar a condição racial de Marighella, que era um homem que hoje se diria negro sem nenhuma dúvida, mas que se assumia como um “mulato baiano”, como se vê pela documentação conhecida. A escolha de Seu Jorge para interpretar o personagem, que aliás, surgiu no projeto depois que Mano Brow não pôde assumir a tarefa, tem este aspecto. Há, aqui, a intenção manifesta em enfatizar a negritude de Marighella, o que contrasta também com o personagem de Luis Carlos Vasconcelos, companheiro de Marighella, certamente a figura histórica de Joaquim Câmara Ferreira (codinome de Toledo), que é chamado de “Branco” no filme. A opção por escalar Seu Jorge como protagonista vem causando polêmica, em função da perspectiva colorista assumida por muitos segmentos, principalmente à direita, que alega “racismo”, posto que Moura optou por um negro para representar um “terrorista” e “marginal”.

Marighella era um homem negro e este fato, no filme, e também no livro de Magalhães, parece ter mais importância do que a historiografia sobre o personagem sugere. Todavia é absolutamente legítimo que as pessoas se indaguem sobre o significado de ser negro na trajetória de Marighella, pois é por perguntas como esta que a pesquisa histórica avança. Do que se deduz pela documentação histórica conhecida, contudo, até aqui não foram encontrados elementos suficientes que permitam aos historiadores afirmarem que essa questão tenha assumido centralidade na história que se pode contar sobre Marighella.

 

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Em que pese o fato de que o comunista não ignorasse que era negro (como poderia?), e mesmo se admitindo que essa questão possa ter pesado em algumas de suas escolhas e também representar muito em diversos momentos de sua vida, não é possível trazer a questão senão como algo permitido pela liberdade de criação, o que diz muito sobre as referências e os combates travados pelo diretor da película. Ou seja, Marighella, embora se visse como um homem negro, ou como um mulato, filho de um italiano com uma descendente de escravizados vinda do Recôncavo, não achava que isso era mais importante para a sua vida como revolucionário comunista.

Marighella, que começou sua militância no PCB no início dos anos 1930 na Bahia, sofreu sua primeira prisão em 1936, quando já estava no Rio. Seria novamente preso em 1939, já no Estado Novo, que os comunistas inicialmente caracterizavam como fascista, permanecendo na cadeia até 1945, sendo beneficiado pela anistia. Nesse mesmo ano, foi eleito deputado federal constituinte pela Bahia, tendo destacado papel na Assembleia Nacional Constituinte de 1946, onde atuou ao lado de outros 13 deputados do seu partido, mais o senador Luiz Carlos Prestes, formando a quarta força eleitoral da época, atrás apenas do PSD, da UDN e do PTB. Como deputado Marighella se destacou pelas intervenções qualilficadas e pela imensa capacidade de dialogar com o pensamento divergente. Em maio de 1947 o PCB teve seu registro suspenso por decisão do TSE e no ano seguinte, em janeiro, todos os parlamentares que haviam sido eleitos pela legenda foram arbitrariamente cassados. Vivia-se sob a Guerra Fria e uma imensa ofensiva anticomunista tinha sido desencadeada no Brasil.

Em seguida ao golpe, no dia 9 de maio, Marighella foi preso pela polícia num cinema do Rio, após resistir bravamente a um cerco e à imensa brutalidade da repressão, quando, inclusive, foi baleado. Solto em 31 de julho do mesmo ano, apenas em função da repercussão do caso, dirigiu-se à redação do Jornal do Brasil para dar o testemunho da brutalidade a que foi submetido e da exposição de civis que ficaram na linha de tido dos agentes da Ditadura. No ano seguinte, Marighella publica Por que resisti a prisão, uma obra em que descreve o episódio de sua detenção num cinema na Tijuca e em que inicia suas críticas ao PCB, o que o levaria a romper com o partido que militara por mais de 30 anos, em 1967. Em fevereiro de 1968, se juntaria a outros militantes para fundar a Ação Libertadora Nacional (ALN), a mais importante organização da guerrilha no Brasil nos tempos da Ditadura.

Marighella, o filme, retrata os últimos momentos do guerrilheiro baiano atuando pela ALN. A película começa pelo assalto ao trem pagador e retrata também uma ação de “expropriação” a um banco. Em tais ações os revolucionários levantavam recursos para criar as condições para partirem para o campo e de lá desencadearem a ofensiva contra a Ditadura, inspirados no modelo de revolução cubana e nos feitos de Che Guevara, Fidel Castro e seus companheiros. Nem a ALN ou qualquer organização guerrilheira chegou a ir para o campo, como pretendia, para iniciar a guerrilha. Antes todas os grupos guerrilheiros, que tinham sido criados para combater a Ditadura no seu momento mais duro, depois do AI-5, decretado em dezembro de 1968, foram desbaratados. Isso ocorreu enquanto reuniam esforços para iniciarem a guerrilha no campo e ao mesmo tempo lutavam pela libertação dos presos políticos, que eram barbaramente torturados nas prisões do Estado terrorista. Como decorrência dessa conjuntura, as organizações terminaram por empreender sequestros de diplomatas para trocá-los por prisioneiros, inclusive do embaixador estadunidense Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969, numa ação que envolveu um comando da ALN e do MR-8, ação esta que era desconhecida de Marighella, mas que é retratada no filme.

Dois meses após o vitorioso sequestro de Elbrick, que também é enredo do filme O que é isso companheiro?, de Bruno Barreto, inspirado na obra homônima de Fernando Gabeira, Marighella foi morto numa emboscada promovida pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury (personagem Lúcio no filme, interpretado de magistralmente por Bruno Gagliasso). O episódio deu ensejo a uma fake news que circulou em 2019 a partir do artigo do investigador de polícia, Aurílio Nascimento, publicado no jornal Extra, do Rio. No texto, o articulista reproduziu uma versão falsa da morte de Marighella, que circula nos livros de Ustra e nos grupos de extrema direita, como se o guerrilheiro, que morreu seu poder reagir, tivesse atirado, junto com seus “seguranças” (que não existiam) contra as forças da repressão. No suposto tiroteio, a agente Estela Borges Morato foi morta, o que faz com que a extrema direita inclua a policial no rol das “vítimas do terror”.*

As questões trazidas pelo filme de Wagner Moura, como é incontornável numa obra cinematrográfica, referem-se muito mais ao presente do que ao passado, mas isso não constitui de modo algum num problema. Quem quiser aprofundar no conhecimento de Marighella, e o filme serve como incentivo para isso, deve buscar a historiografia sobre o personagem, que é relativamente vasta e consistente. Quem procura, entretanto, uma obra de cinema que lhe inspire resistência, o filme do ótimo ator baiano, que estreia como diretor, é uma excelente pedida. Tanto pela qualidade da obra, que traz intepretações convincentes, como pelo fato de que Marighella (o filme e o personagem) suscita debates, sugere caminhos, aponta alternativas, expõe os erros e eventuais acertos de escolhas que foram feitas no passado e que devem servir para que todos sejamos capazes de aprender com a história, ainda que partindo de uma obra feita para o cinema, Marighella é um programa imperdível. Eu, que vi no cinema, não vejo a hora de ver novamente, desejoso de que as salas encham, como ato político contra a censura, o fascismo e toda forma de ditadura.

Veja o trailer oficial do filme

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Marighella entre o fato, a fake news e a ficção