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BRASIL

Carlos Marighella: em “Preto” e negro

Edson Teixeira*, de Rio das Ostras, RJ

Canto para atabaque (Carlos Marighella)

(…) Ei Brasil-africano!
Minha avó era nega haussá,
ela veio foi da África,
num navio negreiro.
Meu pai veio foi da Itália,
operário imigrante.
O Brasil é mestiço,
mistura de índio, de negro, de branco.

(…) Quem fez o Brasil
foi trabalho de negro,
de escravo, de escrava,
com banzo, sem banzo,
mas lá na senzala,
o filão do Brasil
veio de lá foi da África

(MARIGHELLA apud SAFATLE, 2019, p. 167-168).

O baiano Carlos Marighella nasceu em 5 de dezembro de 1911, em Salvador. Na década de 1930, ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em 1967, rompeu com o PCB e liderou a Ação Libertadora Nacional (ALN), organização de luta armada de resistência à Ditadura Empresarial-Militar (1964-1985).  Foi emboscado e assassinado em 4 de novembro de 1969, em São Paulo, pelos agentes da repressão ditatorial. 

O filme “Marighella”, dirigido por Wagner Moura (2019), antes mesmo de lançado nas salas de cinema país, gerou algumas polêmicas. Para Genestreti (2019): “reúne elementos para ser recebido no país como um libelo de esquerda, carregado até de certa discussão racial. Filho de italiano e neto de escrava, o personagem ganhou as feições de um ator negro”.  Na mesma reportagem, a Folha de São Paulo destacou: “desde que Seu Jorge foi anunciado no papel do guerrilheiro, o jornalista [Mário Magalhães] afirma ter visto setores da direita questionarem a escolha – dizendo que Marighella, na verdade, era branco” (MAGALHÃES, 2019). 

No início da década de 1960, período de tensão de sua militância no PCB, Marighella e Ana Montenegro tiveram uma conversa significativa:

– Outra coisa de Marighella era que a gente queria saber quem era ele. É uma coisa que nunca esqueci na minha vida, é a simplicidade com que ele se autodefinia. 

Eu disse uma vez: -Marighella, você que foi torturado, que sofreu tanto, você que está dando sua vida, tudo isso, sendo ameaçado – foi nas vésperas de quando eu fui embora do Brasil – quero lhe perguntar uma coisa: quem é você?

Ele disse: – Olha Ana, eu me considero um mulato baiano! Como é que você não me vê como um mulato baiano?

Eu disse: – Eu vejo, fisicamente.

Ele disse: – Não, dentro de mim também, porque eu não sou uma pessoa diferente dos outros, você não pode me considerar uma pessoa diferente dos outros (…)  (MONTENEGRO, 2009, p. 214).

 A “autodeclaração” de mulato baiano talvez possa revelar a força da ideologia do embranquecimento que sobre sua trajetória. Clóvis Moura assinala que a ideologia do branqueamento é um mecanismo das classes dominantes para “tentarem negar que somos um país de negros e mestiços, com um passado que é muito mais africano do que ‘ocidental’, mais negro do que branco e mais proletário do que aristocrático” (MOURA, 2021, p. 90). Porém, o depoimento citado evidencia um Marighella mais interessado em desmitificar a sua ascendência e protagonismo político diante dos demais companheiros e companheiras de luta. A sua trajetória – seja no PCB ou na ALN –  foi pautada por uma relação humana que não era cultivada pela empáfia.  

É significativa a narrativa de Mário Magalhães sobre aproximação de Marighella com o candomblé:ao romper a década de 1960, Marighella achegou-se aos orixás e foi consagrado filho de Oxóssi (…)” (MAGALHÃES, 2012, p. 344). Esta aproximação, embora seja “provável que Marighella tenha incursionado pelo universo sedutor dos orixás sem abdicar do ateísmo” (Idem, p. 345), é significativa porque revela um movimento de aproximação com sua ancestralidade. É um movimento que delineia uma desconstrução dessa obsessiva cultura de embranquecimento e a não menos obsessiva patologia de impor a falaciosa democracia racial. Florestan Fernandes já nos advertia que: 

A democracia só será uma realidade quando houver, de fato, igualdade racial no Brasil no Brasil e o negro não sofrer nenhuma espécie de discriminação, de preconceito, de estigmatização e de segregação, seja em termos de classe, seja em termos de raça (…) (FERNANDES, 2017, p. 41). 

No poema “Canto para Atabaque”, Marighella mencionou a descendência italiana do pai, Augusto Marighella, e de negros haussás da mãe, Maria Rita; reconheceu a composição étnica brasileira de índios, negros e brancos, mas destacou que é do trabalho do negro escravo e escrava que o país foi construído. Além disso, o protagonismo africano: “o filão do Brasil/ veio de lá foi da África”. O mesmo poema contém uma singela homenagem ao presidente e liderança da República Democrática do Congo, Patrice Lumumba, assassinado em 1961. 

Marighella gostava de samba, futebol e carnaval.  Além de poemas, fazia paródias e prosseguia a sua saga por transformar o Brasil. A capoeira e o jongo foram inspiração do poeta e revolucionário. Assim escreveu, no trecho destacado do poema “Capoeira”: 

(…) Luta africana
que o mestiço encampou,
que os guerreiros da mata,
quilombos, palmares,
souberam jogar.
Que o angolano nos trouxe,
que o mestre Pastinha nos soube ensinar.

Coreografia. Jongo do povo.

Zum, zum, zum
capoeira mata um (MARIGHELLA, 1994).

Em “A Alma do Samba” (MARIGHELLA apud SAFATLE, 2019, p. 165), deixaria à posteridade:

(…) o Brasil é um vasto terreiro

Das filhas de santo, 

Oguns, orixás…

Terreiro de festa

Do carnaval. 

 

E, em homenagem ao também poeta baiano Castro Alves, a quem nutria grande admiração, Marighella registrou em duas estrofes:

Eu queria era ver Castro Alves na rua

vivinho da silva, 

fazendo comício, falando pras massas, 

dizendo que o negro é também ser humano

e que pode viver como outro qualquer (…).

Eu queria era ver Castro Alves na rua

vivinho da silva, 

porque hoje seria um chicote vibrando

chicotadas mortais no focinho do fascismo (Idem, p.249). 

Não obstante, Marighella era um revolucionário que não desconhecia as lutas de libertação nacional que estavam ocorrendo no mundo nas décadas de 1950 e 1960. Ação Libertadora Nacional (ALN) é um nome emblemático.  Mas a ênfase na ação revolucionária não pode ser instrumento que suprima o que compreendia como  libertação nacional no contexto mais amplo daquelas lutas. A ALN é muitas vezes reduzida como foquista. Em que pese a influência da Revolução Cubana, não se deve ocultar, e ele não oculta, a dinâmica daquele período. A análise que elaborou da política externa do Brasil sobre a África, sob domínio colonial da ditadura salazarista, é reveladora:

 […] O governo brasileiro de Costa e Silva reforçou a aliança com a ditadura salazarista e é isso que é necessário denunciar, sobretudo por entender que uma organização como a OSPAAAL [Organização de Solidariedade dos Povos da Ásia, África e América Latina] tem toda sua razão de ser na unificação dos povos dos três continentes contra as posições imperialistas (MARIGHELLA Apud RIBEIRO, 2018, p. 31). 

Em pertinente artigo, Tiago Coelho sugere que:

Ainda sobre a polêmica do Marighella negro, é preciso dizer que isso é sim uma ‘invenção’, na medida em que a temática racial não foi um tema central em sua biografia, nem em suas lutas políticas e que o próprio se definia, com certa dose de autoironia como ‘um mulato baiano’. Mas é uma invenção mais que legítima, uma releitura histórica mais que válida a partir dos debates contemporâneos (COELHO, 2019).

De fato, durante todo período da vida de Marighella não é possível determinar suas premissas teóricas e pronunciamentos pautados na centralidade da questão racial. Mas isso não permite, em hipótese nenhuma, desconhecer que na sua concepção de luta de classes, havia uma intensa interlocução com perspectiva teórica racial. 

Por fim, dentre os vários “nomes de guerra” que utilizou na clandestinidade, Preto era coerente com as suas “mil faces”. O incômodo de Seu Jorge interpretar Carlos Marighella tem uma explicação, entre outras: o racismo. Além disso, o fato é que Marighella não caiu nas armadilhas da identidade.

Referências bibliográficas 
COELHO, Tiago. Marighella, Oxóssi da Revolução Brasileira. In https://medium.com/@coelhotiago/marighella-ox%C3%B3ssi-da-revolu%C3%A7%C3%A3obrasileirac8e069cf4de9?fbclid=IwAR033zAMWFw41IplvNnDwayS6JGMaAhtmU9Dg_DEYRQr6efpkTNHGsIvG70
FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro. São Paulo: Expressão Popular co-edição Editora da Fundação Perseu Abramo, 2017.
GENESTRETI, Guilherme. MEIRELLES, Maurício. Na pele de um rebelde. In Caderno Ilustrada, Folha de São Paulo, 15 de fevereiro de 2019, p. C1.
MAGALHÃES, Mário. Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
_________. In MEIRELLES, Maurício. Na pele de um rebelde. In Caderno Ilustrada, Folha de São Paulo, 15 de fevereiro de 2019, p. C1.
MARIGHELLA, Carlos. Por que resisti à prisão. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1965.
__________. CEDEM – Guerriglia in Brasile, 1968. In RIBEIRO, Maria Cláudia Badan. Mulheres na luta armada: protagonismo feminino na ALN: São Paulo: Alameda, 2018. 
__________. Rondó da Liberdade. São Paulo: Brasiliense, 1994.
MONTENEGRO, Ana Montenegro. In SILVA JUNIOR, Edson Teixeira. Carlos, a face oculta de Marighella. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
MOURA, Clóvis. O negro, de bom escravo a mau cidadão? São Paulo: Editora Dandara, 2021. 

Filme:

MARIGHELLA. Direção de Wagner Moura, Brasil, 2019.

*Edson Teixeira é Professor Associado II do curso de Serviço Social do campus da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Rio das Ostras. Centro Universitário de Rio das Ostras – CURO