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TEORIA

Karl Marx contra a “Sagrada Família” (1844-5)

Wesley Carvalho, de Niterói, RJ

Friedrich Engels (à esquerda) e Bruno Bauer

“Que riqueza monstruosa da História essa que se esgota

 nas relações entre a humanidade e o senhor Bauer” (1)

Depois de passarem alguns dias juntos entre agosto e setembro de 1844, em Paris, Marx e Engels iniciaram uma amizade e uma colaboração intelectual que durariam por toda a vida. O primeiro fruto dessa parceria veio à luz apenas alguns meses depois: um livro chamado “A Sagrada Família ou a crítica da Crítica crítica. Contra Bruno Bauer e consortes.” Marx o escreveu na França, mas o teve publicado quando de seu exílio em Bruxelas no início de 1845. Engels contribuiu apenas com uma pequena parte do material, que deveria ser um panfleto, e se surpreendeu com a importância que Marx deu à polêmica quando viu o tamanho do livro. (2)

O alvo da dupla eram intelectuais alemães intitulados “Livres” ou “Críticos”, que vinham se expressando principalmente no periódico Gazeta Geral Literária (1843-4). (3) O título “Sagrada Família” é uma referência debochada aos irmãos Bauer (Bruno, Edgar, Egbert), expoentes principais daquela corrente. Até pouco tempo antes da escrita do livro, os agora adversários de Marx e Engels eram amigos muito próximos.

Bauer e seus aliados entendiam-se como a vanguarda intelectual capaz de promover uma transformação profunda do mundo. Partindo da concepção de que os conceitos criados pela filosofia são a principal força para a mudança, explicitamente proclamavam a si próprios como “o elemento criador exclusivo da história”. Os seres humanos reais seriam apenas um suporte para a história, movida sobretudo pela criação intelectual (a Crítica) de alguns indivíduos especiais que, naquele momento, seriam Bauer e seus seguidores: “O destino poderá decidir conforme quiser; nós agora sabemos que ele é obra nossa”. (4) Em consonância com essa visão nada modesta que tinham de si próprios, chegaram a pensar que, quando Bauer foi demitido de seu cargo de professor universitário por conta de suas posições ateias, se iria inaugurar uma crise que desencadearia a revolução. O elitismo dos “Críticos” se vê também na concepção de que a “massa” é um entrave para o desenvolvimento de uma forma superior de consciência. Mais que isso, ela pode contaminar os ideais filosóficos mais elevados. A massa é inimiga do “espírito”, e essa tensão, que é a luta entre a estupidez e a sabedoria, é justamente um dos aspectos centrais do desenrolar histórico. O socialismo, que havia há pouco tempo se tornado objeto de reflexão na Alemanha, era, para Bauer, apenas uma expressão da massa. O verdadeiro caminho para a emancipação é a Crítica, e ela tem na luta contra a religião, advogando o ateísmo, a sua principal faceta, a fim de derrubar o “Estado cristão”. Os bauerianos entendiam aqueles dias como o cenário de um confrontamento épico capaz de pôr fim à alienação humana. Mas não tinham senso político prático, explicitamente colocando que a tarefa era negar tudo sem pretender colocar nada no lugar. Como diz o próprio Bauer: “a crítica deixou de ser política. Se antes ela opunha opiniões a opiniões, sistemas a sistemas e visões a visões, ela agora não tem nenhuma opinião, nenhum sistema, nenhuma visão”. Era o “terrorismo da teoria pura” (5)

Mas por que os Críticos pensavam dessa forma, que a atividade crítica seria suficiente, que a prática fosse justamente a teoria? Um dos motivos era a situação política da Alemanha onde nenhum grupo social agitava a política em sentido revolucionário. Os trabalhadores alemães tinham apenas acabado de fazer uma grande revolta em 1844 (6), mas suas organizações e projetos eram ainda muito incipientes quando comparados aos que havia na França e na Inglaterra. A burguesia alemã, por sua vez, sofrendo com a censura, demonstrara sua incapacidade de conquistar constituição,liberdade de expressão, religiosa, poderes parlamentares e princípios de igualdade social que lhe permitissem arrancar posições políticas da nobreza. O início dos anos 1840 viu o recrudescimento do absolutismo na Alemanha, o aumento da repressão e da ideologia teocrática. Parecia não haver saída concreta para os problemas políticos do país, o que certamente explica a força que os “Críticos” conferiam às suas ideias, ou seja, sua “deformação dos problemas históricos reais em problemas filosóficos”. (7) Outro elemento é que aqueles intelectuais vinham de uma tradição filosófica que entendia que o resultado do desenvolvimento histórico seria a afirmação da Razão, ou seja, de uma certa ordem política positiva marcada por liberdades. O futuro estaria a favor deles. Então, “Eis por que essa “prática” se reduz, em definitivo, à crítica filosófica e à propaganda teórica: é bastante denunciar as desrazões para que elas cedam e dizer a razão para que ela triunfe.” “…se a Razão é o fim da História e a sua essência, então é bastante torná-la reconhecida…”(8).

Ora, o governo de Frederico Guilherme IV, que começara em 1840, ia justamente no sentido contrário ao da “Razão”. Nesse caldo, é possível caracterizar o cenário intelectual alemão de que participavam os Críticos como “…o mais distanciado possível das realidades efetivas da história, o mundo mais mistificado, mais alienado que então existia na Europa das ideologias.” (9)

Já em 1842, Marx se queixava de que os “Livres” não empreendiam análises concretas. No livro lançado em 1845, Marx e Engels passaram a retratar seus antigos parceiros como figuras ridículas. Eles estavam justamente seguindo movimentos contrários ao dos Críticos. Passaram a enxergar em trabalhadores “embrutecidos” os criadores de um novo mundo. E isto não da perspectiva de que as massas deveriam meramente seguir a “teoria” de filósofos – como era àquele momento a posição de Arnold Ruge e como fora a própria posição de Marx e Engels até pouco tempo antes. O sentido da evolução intelectual da dupla era o de ter na classe trabalhadora a agência da transformação (10). Na esfera artística, as “classes inferiores”, diziam Marx e Engels, também não dependiam em nada do “Espírito Santo da Crítica Crítica” (11).

Foi também assumindo a perspectiva da classe trabalhadora – e sempre com ironia – que Marx e Engels rebateram a superdimensão que a “Crítica Crítica” atribuía às atividades do pensamento (12). “Segundo a Crítica crítica, todo o mal reside apenas no modo de “pensar” do trabalhador” (13). Argumentaram que os operários de Manchester ou Lyon sabiam muito bem que jamais se livrariam de seus patrões e de sua miséria através do “pensamento puro”: coisas como dinheiro, propriedade privada e trabalho assalariado não são meras criações da mente humana. Ao contrário dos “Críticos”, os trabalhadores percebiam a existência de uma dolorosa diferença entre ser e pensar, entre a consciência e a vida. Marx e Engels estavam aqui reavivando o pensamento de filósofos materialistas do século XVIII: são as condições reais e exteriores que devem mudar, e não a consciência ou o “eu” (14). Ao que acrescentaram: “Se o homem é formado pelas circunstâncias, é preciso formar as circunstâncias humanamente.” (15). Marx e Engels destacam que a humanidade faz a história, que as pessoas concretas são os reais sujeitos dela. Rejeitam aqui a visão dos Críticos de que a História é um sujeito abstrato que se “utiliza [d]o homem como meio para alcançar seus fins” (16). Sempre enfatizando que ideias por si nunca mudariam a situação presente, destacaram que o triunfo ou derrocada delas tinha a ver com as lutas das classes sociais que as empunhassem. Enquanto o irmão de Bruno, Edgar Bauer, dizia explicitamente que a filosofia não deveria se envolver com nenhuma ação política, mas justamente se livrar dela, Marx e Engels apostavam no levante revolucionário de massas. Para os Críticos, a mudança no mundo é atrapalhada pelas massas que se movem não por elevados ideais, mas por interesses. Para Marx e Engels, são justamente os reais interesses das massas o que deve guiá-las. (17)

Em “A Sagrada Família”, Marx retoma alguns temas teóricos que vinha desenvolvendo há cerca de um ano (e que abordamos em outro momento) (18). Um deles é deslocar o olhar do Estado para a sociedade civil-burguesa, entendendo que uma reforma política ou a conquista de direitos (“revolução política”, “emancipação política”), como, por exemplo, a laicidade, são insuficientes. As dinâmicas da sociedade-civil é que precisariam ser transformadas, afinal, “O Estado […] não exclui ninguém […] que se acomode em seu desenvolvimento. Em sua perfeição, ele inclusive faz vista grossa e declara não políticos os antagonismos reais que não o perturbam.”. A sociedade civil-burguesa, por sua vez, “…procede de maneira tão exclusiva quanto o Estado, apenas o faz de maneira mais cortês, não lançando ninguém porta afora, preferindo fazer com que te sintas tão desconfortável em seu seio a ponto de procurares sozinho o caminho da porta.” (19). Marx também retoma a polêmica que já havia iniciado com Bauer, apontando que este enxerga o problema da religião como estritamente religioso: “Ele combate a consciência religiosa como se fosse uma entidade autônoma.” (20)

Boa parte do livro “A Sagrada Família” é dedicada ao romance “Mistérios de Paris”, que vinha fazendo muito sucesso em vários círculos políticos, inclusive entre os Críticos. Não se trata de uma produção do grupo de Bauer, mas de um francês chamada Eugene Sue. Por retratar a vida e a miséria de operários da cidade, o livro ganhou a simpatia entre pessoas de esquerda. Entre a direita, ele teve apelo porque apontava como saída para os problemas sociais a filantropia e a generosidade. O que Marx criticou em “Mistérios de Paris”, que analisou muito detidamente, foi o apelo sentimental que afastava as soluções revolucionárias dos problemas dos trabalhadores. Deixava as causas da miséria intocadas e dava protagonismo aos ricos, potenciais salvadores através de suas ações de caridade. (21)

Quando “A Sagrada Família” foi lançado, em fevereiro de 1845, o movimento de Bauer já estava morto com o fechamento de seu jornal e o fim de suas reuniões. Engels, quando viu pronta a publicação, notou a atenção desproporcional que Marx deu a Bauer e a escrita pouco acessível para o grande público. Expressou também sua preocupação com o título da obra, que lhe geraria problemas com sua religiosa família. Arnold Ruge, intelectual alemão sem ligação com Bauer e recente desafeto de Marx, fez articulações para que o livro não fosse publicado e o classificou como expressão do ódio de Marx. Bruno Bauer respondeu à “Sagrada Família” de forma curta, afirmando que a dupla de autores não o haviam compreendido (22).

Na década de 1850, relendo o que havia publicado, Marx manifestou satisfação com o resultado. Muitos marxistas, entretanto, pensam diferente. Não é incomum acharmos na literatura menções como má redação, dispersão dos temas, ininteligibilidade, e perda de relevância para discussões presentes (23). Da nossa parte, pensamos que o exercício de ridicularização e a atenção a minúcias dos Críticos acabaram por comprometer o potencial do texto, e suas melhores partes ficaram diluídas.

Posteriormente ao período que abordamos, Bruno Bauer se tornaria conservador politicamente. Já Edgar Bauer, preso em 1846 por três anos por escrever panfletos em defesa de seu irmão, se tornaria um cristão ortodoxo (24).

Marx e Engels, por sua vez, logo após a publicação de “A Sagrada Família”, passaram a ter uma inserção mais orgânica no movimento de trabalhadores. Nos meses seguintes mantiveram filósofos alemães como alvo de suas reflexões, mas logo teriam também novos adversários teóricos. Nos anos de 1845 e 1846, os dois rapazes de vinte e tantos anos deram passos decisivos na construção de uma nova teoria social.

Este é o décimo-quarto texto de uma série que aborda a vida e o pensamento de Karl Marx.

NOTAS

(1) MARX, Karl; ENGELS, Friedrich, A sagrada família: ou a crítica da Crítica crítica: contra Bruno Bauer e consortes, São Paulo: Boitempo, 2003, p. 112.

(2) CORNU, Auguste, Carlos Marx. Frederico Engels. Del idealismo al materialismo historico., Buenos Aires: Editoriales Platina Stilcograf, 1965, p. 652.

(3) NETTO, José Paulo, Karl Marx: Uma biografia, São Paulo: Boitempo, 2020, p. 196.

(4) MARX; ENGELS, A sagrada família, p. 117.

(5)  Ibid., p. p.21-2;27-9, 49, 95-7, 99-104, 180-2. NETTO, Karl Marx, p. pp.198-9. LÖWY, Michael, A teoria da revolução no jovem Marx, Petrópolis: Vozes, 2002, p. pp.155-7; 160.  CORNU, Carlos Marx, p. 654–690.DRAPER, Hal, Karl Marx’s theory of revolution 1 state and bureaucracy., New York: Monthly Review Press, 1977, p. 224–6. MCLELLAN, David, The Young Hegelians and Karl Marx, London, Melbourne etc.: Palgrave Macmillan, 1969, p. 30–2;39, 62,66. Bruno Bauer, em certo momento defendeu o republicanismo, mas no período em tela a revolução que preconizava não tinha fins políticos imediatos. Também não se pode depreender com maiores precisões sua visão de Estado. Ibid., p. 50;55;69..  Para uma exposição de Bruno Bauer atenta às nuances de seu pensamento, bem como a diferenças com seus aliados mais próximos ver Ibid., p. 62–3.

É fundamental termos em mente que, de uma forma geral, o pensamento dos jovens hegelianos dos primeiros anos da década de 1840, o que inclui Marx e Engels, estava em vertiginosa e constante transição: com grande velocidade, ideias novas eram adotadas e as antigas abandonadas (as alianças e amizades também sofriam essas alterações).  Uma reflexão sobre as dificuldades de generalização do movimento jovem-hegeliano, mas com atenção principal voltada ao final da década de 1830, pode ser encontrada em HEINRICH, Michael, Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna: Biografia e desenvolvimento de sua obra. 1818 1841, São Paulo: Boitempo, 2018, p. 334–9.

A esse cuidado somamos que na literatura sobre Marx muitas vezes outros jovens hegelianos são vistos pelos olhos do protagonista, sem que se tenha realizado um estudo independente com as fontes. McLellan acende um alerta importante: Marx é um guia ruim para que conheçamos o pensamento de seus adversários (ou, pelo menos, seus adversários jovem-hegelianos). Análises detidas sobre Marx e seu círculo intelectual alemão podem ser encontradas nos estudos supracitados de McLellan, Heinrich e Cornu.

(6) Trata-se da revolta dos tecelões da Silésia, mencionada por nós no texto “Karl Marx em Paris”

(7)  ALTHUSSER, Louis, Análise crítica da teoria marxista, Rio de Janeiro: Zahar, 1967, p. 68.

(8) ibid.

(9) Ibid., p. 62.

(10) Um dos pontos principais do estudo de Löwy é entender como Marx pensava a relação entre a teoria e o proletariado. Por volta de 1846, Marx teria atingido uma compreensão dialética dessa relação, deixando para trás concepções como a de que o filósofo é o elemento ativo da transformação através da fecundação sobre o proletariado, o elemento passivo. Sobre o que Marx pensava quando escreveu a Sagrada Família, ainda não a sua posição mais madura, ver LÖWY, A teoria da revolução no jovem Marx, p. 158–62.

(11) Ibid., p. 162. MCLELLAN, The Young Hegelians and Karl Marx, p. 74. MARX; ENGELS, A sagrada família, p. 102;154.

(12) A primazia da criação intelectual para a transformação do mundo não era exclusiva do grupo de Bauer, mas bastante difundida entre a jovem intelectualidade alemã. Da mesma forma, Marx e Engels não eram os únicos pensadores alemães a se oporem a esta postura e valorizarem a ação e a prática. Ver MCLELLAN, The Young Hegelians and Karl Marx.

(13) MARX; ENGELS, A sagrada família, p. 65.

(14) Na definição concisa de CORNU, Carlos Marx, p. 671., o materialismo francês tinha suas bases na ideia de igualdade entre os “homens,” e sublinhava a influência do meio. Na “Sagrada Família”, Marx discute o materialismo nas páginas 144- 52

(15) MARX; ENGELS, A sagrada família, p. 150.

(16) Ibid., p. 111.

(17) Ibid., p. 54,66,137. LÖWY, A teoria da revolução no jovem Marx, p. 158. MCLELLAN, David, Karl Marx: his life and thought, London: Palgrave Macmillan UK, 1973, p. 134. CORNU, Carlos Marx, p. 663,672. DRAPER, Karl Marx’s theory, p. 223–4.

(18) Para um tratamento um pouco mais detido dos temas desse parágrafo, ver os nossos textos “Karl Marx: Estado, revolução e proletariado (1844)” e “Karl Marx: crítica à religião e crítica à crítica à religião (1844)” 

(19) MARX; ENGELS, A sagrada família, p. 114.

(20) Ibid., p. 128–35. 

(21) DRAPER, Karl Marx’s theory, p. 228. CORNU, Carlos Marx, p. 683–8.

(22) DRAPER, Karl Marx’s theory, p. 221. MCLELLAN, The Young Hegelians and Karl Marx, p. p.47. CORNU, Carlos Marx, p. 690–2.

(23) DRAPER, Karl Marx’s theory, p. 222. NETTO, Karl Marx, p. 197.

(24) MCLELLAN, The Young Hegelians and Karl Marx, p. 82.