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OPRESSÕES

O gesto do assessor, o supremacismo racial e o governo Bolsonaro

Gabriel Santos, de Maceió, AL
Reprodução

Filipe Martins, assessor do Planalto, faz gesto supremacista.

“Um boy branco, me pediu um high five
Confundi com um Heil, Hitler”
Gustavo Marques

Um gesto feito por Felipe Martins, assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência da República, durante sessão no Senado na tarde de quarta-feira, 24/03, gerou indignação e debates. O gesto, que aparentemente parece um simples sinal de “OK”, na verdade é carregado de simbolismo para grupos de extrema direita e que defendem a supremacia racial. O uso dos dedos formando a letra p com o indicador e o polegar e os demais se assemelhando a um “w”, passou a ser usado por supremacistas raciais no significado de white power, ou seja, poder branco. O mesmo sinal feito por Felipe Martins foi feito por Brenton Tarrent, que assassinou 51 pessoas em uma mesquita na Nova Zelândia, e pelo grupo Proud Boys, que ajudou na invasão ao Capitólio em janeiro deste ano. 

No processo de crescimento mundial, a extrema-direita buscou criar novos símbolos e ressignificou antigos. Fóruns e sites online são parte deste operativo, onde supremacistas raciais passam a usar linguagens codificadas e memes que podem parecer vazios, mas que têm seu significado. Este movimento é a tática de trolagem. O “ok” de Felipe Martins, de acordo com a Liga Anti Difamação (ADL), organização norte-americana que busca mapear símbolos e a linguagem de supremacistas raciais, é um dos sinais mais usados por grupos racistas. 

O fato de um assessor de um presidente da República ter feito um sinal de Poder Branco deveria ser o suficiente para gerar um debate e denúncias por parte da mídia tradicional e ligar o sinal de alerta sobre o momento que vivemos. Porém, não foi o que ocorreu. O sinal racista foi tratado por parte da imprensa como “suposto símbolo”, “gesto polêmico”, “atitude obscena”, mas não foi dito o que realmente é: um gesto de supremacia racial e de ódio ao povo negro. 

Essa não foi a primeira vez que membros do governo fizeram ações de supremacismo branco. Ao longo do último ano foram diversos casos. Em junho de 2020, durante o crescimento de atos e protestos antifascistas pelo país, o próprio Bolsonaro postou em suas redes sociais um senhor de idade gritando em italiano: “é melhor viver um dia de leão, do que cem dias de ovelha”. Na legenda do vídeo ele escreveu: “o velho italiano resumiu o que passamos nestes dias.” A frase dita pelo italiano do vídeo foi usada diversas vezes em discursos do líder fascista Benito Mussolini. 

No mesmo ano, em 29 de maio, o presidente tomou um copo de leite em uma de suas lives. Bolsonaro argumentou que se tratava de uma homenagem a produtores rurais, porém por “coincidência”, o mesmo gesto é mais um adotado por supremacistas brancos. O influencer bolsonarista Allan Santos, no dia seguinte, gravou um vídeo no qual repetia o gesto de Bolsonaro, aos risos, afirmando que “entendedores entenderão a mensagem subliminar”. 

Em janeiro de 2020, o então secretário de Cultura Roberto Alvim divulgou um discurso que parafraseava o ministro de Propaganda da Alemanha Nazista, Joseph Goebbels. Além de trechos idênticos do discurso, a trilha sonora de fundo era do compositor Richard Wagner, preferido de Adolf Hitler. Em seguida, em abril, foi a vez do ainda ministro da Educação Abraham Weintraub despojar seu racismo e pensamento supremacista, quando em reunião ministerial declarou que odeia os termos “povos indígenas” e “povo cigano”.

Outra declaração por parte de figuras ou órgãos do governo que trazem recordações ou estranhas semelhanças com simbolismos e frases de grupos neonazistas, foi em maio, quando a Secretaria de Comunicação Social soltou uma nota no qual afirmava que “o trabalho, a união e a verdade vão libertar o Brasil” – impossível não recordar da frase que os nazistas fixavam nas entradas dos campos de concentração, “o trabalho liberta”. 

Em diferentes ocasiões, assessores, ministros e até o próprio presidente protagonizaram gestos e referências a símbolos supremacistas. Bolsonaro já mostrou ter conhecimento sobre o que significam símbolos do supremacismo racial, como o de white power, feito pelo assessor. Há pouco mais de um mês, no dia 20 de fevereiro, um homem pediu uma foto para o presidente na porta do Palácio da Alvorada. Este simpatizante tira uma selfie com Jair e faz um inusitado símbolo de “ok” com a mão. Bolsonaro ao ver a cena, se mostrou desconfortável e pediu para o rapaz apagar a foto: “Esse gesto aí, é até bacana, mas desculpa, pega mal, pega mal pra mim”, disse ele na ocasião. Bolsonaro, sua família e muitos de seus apoiadores, sabem o que a maioria da população não observa, que é o significado da supremacia racial por parte de certos símbolos. É preciso afirmar sempre: eles sabem e não são apenas casos isolados. 

A ideologia racial de Bolsonaro e o tema da segurança pública 

Em 2011, no vão livre do MASP, na Avenida Paulista, um protesto em apoio ao então deputado federal Jair Bolsonaro foi organizado por usuários de um dos maiores sites de divulgação de ideias neonazistas do mundo, o StormFront. Anos depois, durante a campanha presidencial de 2018, entre os diversos apoiadores de Bolsonaro, uma fala que chamou atenção foi a de David Duke, que chegou a ser um dos mais importantes dirigentes da Ku Klux Klan. “Ele soa como nós”, disse o líder racista norte-americano.

Bolsonaro teve inúmeras declarações racistas ao longo dos anos de vida pública. Durante a campanha, todas elas foram relativizadas ou esquecidas pela grande imprensa, assim como por partidos da direita brasileira. Para estes, a ligação entre o PT e partidos de esquerda da América Latina era algo muito mais perigoso do que a ligação de um candidato militar com grupos supremacistas brancos. Isto diz muito sobre nossa elite. 

Por outro lado, acredito que as forças da esquerda, tanto do campo democrático popular como do anticapitalista, demoraram para observar (ou ainda não o fizeram) o papel central que o racismo tem no projeto de poder do neofascismo brasileiro. 

Posso citar como um exemplo, entre tantos possíveis, um artigo de Michel Lowy: “ao contrário da maioria da extrema direita europeia, Bolsonaro não faz do racismo sua principal bandeira. Certo, algumas de suas declarações tinham claro caráter racista, mas não foi o tema central, mobilizador, de sua campanha.” 

Diferentemente de Lowy, acredito que o tema racial está presente de forma adjacente ao pensamento bolsonarista. Um dos motores de Bolsonaro em sua campanha eleitoral foi o tema da segurança pública. Em suas falas, o capitão buscava gerar uma divisão entre cidadãos de bens e marginais. Entre mocinhos e bandidos. Entre vítimas encurraladas e criminosos. Para Bolsonaro estes marginais, bandidos, criminosos, têm local de moradia e cor de pele: são os negros que moram nas favelas e periferias do país. São estes corpos negros que Bolsonaro enxerga como uma ameaça a nação e precisam ser combatidos por meio da violência e fazem necessário que exista o armamento destes cidadãos de bem. Este pensamento expresso por Bolsonaro não é somente dele, mas é algo intrínseco às elites brancas de nosso país. Os corpos negros sempre foram vistos como perigosos e maliciosos. Desde o período da escravização que estes corpos foram colocados como uma ameaça que precisava ser repreendida por meio da violência. É por meio da ótica racial que se organiza o discurso de militarização de Bolsonaro, e se este tema da militarização é um dos fundamentais do pensamento bolsonarista, não é possível falar que o racismo está presente com força fundante nas ações da extrema direita. O próprio discurso anticomunista de Bolsonaro bebe da ótica racial. Pois, o capitão acusa de forma constante e enérgica os partidos de esquerda de serem protetores de marginais, estes que na visão de Jair são justamente jovens negros. 

O Brasil de Bolsonaro e o Mito da Democracia Racial 

Grupos supremacistas brancos tiveram grande crescimento durante o governo Bolsonaro, e admiradores destas ideologias integram o governo. O bolsonarismo tem diversos aspectos destas ideias supremacistas, porém, elas podem se expressar de diversas formas em momentos diferentes. Uma delas é a partir do mito da democracia racial e da identidade brasileira. 

Para Bolsonaro, assim como para a alta cúpula militar, o Brasil é um país ocidental e isto precisa ser exposto em nossa cultura, em especial na religião. É preciso afirmar uma cultura que seja “brasileira”, e isto perpassa por um falso discurso de que somos todos iguais. Que brancos, negros, indígenas são iguais e partes dos mesmo processo que é o povo brasileiro. É a afirmação desta identidade brasileira sobre todas as demais, o que na prática serve como forma de mascarar o racismo. 

Esta identidade brasileira defendida como universal seria decorrência da criação portuguesa, um luso-tropicalismo, que é na prática uma aceitação do processo colonial e manutenção de seus resquícios. É uma outra forma de funcionamento do racismo. Igualmente violenta. Afinal, afirmam estes, se somos um país ocidental, onde não existem diferenças entre o povo brasileiro, e se nossa cultura também é ocidental, tendo o cristianismo como fator basilar, outras tradições e ideias merecem ser combatidas pois geram uma divisão social. 

Os sujeitos não brancos são aceitos dentro da sociedade desde que assumam a identidade e a cultura trazida pelos brancos europeus. A afirmação de suas identidades étnicas por parte destes não brancos, é vista como uma tentativa de divisão do país e como algo negativo. Uma ideia forte e potente que tem lugar inclusive dentre parcelas da população não branca. Pelo lado oposto a afirmação da identidade europeia e branca é vista como positiva e bela. Podemos usar como exemplo o Sul do país, onde existe a valorização de uma cultura e identidade específica vista como tradicional, um tradicionalismo europeu, e o apagamento por completo da diversidade. Assim temos uma construção identitária destes estados pautados na branquitude, e na ideia de descendência europeia. Algo visto como positivo inclusive por pessoas de outras regiões. 

Voltando para a identidade brasileira que vem com o mito da democracia racial. Podemos afirmar que ela é de fato e na prática o apagamento de identidades do povo negro, de sua luta e história, é seu embranquecimento e assimilação. É uma forma de apagar o passado de luta, resistência e vitórias do povo negro, para impedir que estes modifiquem o presente. Ao contrário de promover uma igualdade racial, ela termina por reforçar o ideário de branqueamento. É a legitimação histórica do supremacismo branco no processo cultural e de formação da Nação. 

Esta suposta identidade defendida por Bolsonaro, e o mito da democracia racial, servem também para o processo de naturalização da violência que atinge a população negra. Primeiro, porque trabalha para impedir que os sujeitos se vejam como tal. Se o processo de desalienação para Marx passa pelo reconhecimento de classe em si, para classe para si. O processo de desalienação e formação da negritude ocorre a partir do reconhecimento de seu papel como negro parte desta população, localizando as mazelas sociais que o atingem por isto. Ou seja, é desenvolver do negro em si, para o negro para si. O mito da democracia racial trabalha como um entrave para esse reconhecimento, logo impede a auto organização negra. 

Bolsonaro utiliza o mito da democracia racial para afirmar que “nossa cor é o Brasil”, indo de sentido contrário do fortalecimento de movimentos negros e ao crescimento de pessoas que se identificam como negras. Este discurso serve ao seu projeto político de combater políticas afirmativas para sujeitos não brancos, como as cotas por exemplo, e políticas sociais específicas para esta mesma parcela da sociedade. Mantendo desta forma o status quo de domínio cultural e político da branquitude.