Faz parte constitutiva da psique do opressor o mecanismo de atribuição da responsabilidade da existência da opressão ao próprio oprimido, da mesma maneira que é frequente a prática de culpabilização daquele que sofre algum tipo de violência por parte do seu algoz, pois que, tendo como base tal mecanismo, o opressor/algoz consegue reproduzir a sua violência em termos estruturais, mantendo sua consciência tranquila.
Não se faz necessário recorrer outra vez mais aos inúmeros exemplos de violação às liberdades individuais e coletivas cometidas durante os sombrios anos da ditadura militar instaurada em 31 de março de 1964 a fim de atestar a longevidade da prática da inversão da culpa com propósitos de absolvição do verdadeiro culpado pela imposição de uma determinada violência, que nada mais é do que uma violação de direitos.
Pois bem, numa atitude contorcionista guiada por uma razão cínica, fui alvo do mecanismo acima descrito colocado em prática pelo Magnífico Reitor da Universidade Federal de Pernambuco, que, depois de tentar censurar a referência ao nome de Jair Bolsonaro num vídeo produzido pela coordenação de jornalismo da TV Universitária do Recife (sabe-se lá por quais motivações) em um texto de ficção política denominado “Nota da UFPE sobre o NTVRU”, expressa estranhamento por eu ter colocado o cargo de diretor à disposição “sem procurar dialogar”.
Não buscarei aqui argumentar que pratico a arte do diálogo há mais de trinta anos dentro e fora da sala de aula, e que implantei no Núcleo de TV e Rádios Universitárias da UFPE uma lógica colegiada, com a criação de conselhos, grupos de trabalho, reuniões ampliadas e audiências públicas – em meio à pandemia, diga-se de passagem –, porque a acusação de falta de diálogo nada mais foi do que um instrumento de busca de transferência de responsabilidade do violador de direitos (o censurador) para aquele que teve seus direitos violados (o censurado).
De outra parte, não imaginem que o episódio da solicitação da retirada da referência ao nome de Bolsonaro do vídeo produzido pela coordenação de jornalismo do NTVRU tenha sido um caso isolado respondido de maneira intempestiva por um diretor radical fechado ao diálogo.
Em duas ocasiões, durante o ano de 2020, pude atestar que algo de errado acontecia dentro da UFPE. Na primeira, por ocasião da não publicação de um release, no Boletim diário da Ascom da UFPE, sobre a edição do Trilhas da Democracia intitulado “Um novo golpe em curso?”, com a participação do ex-deputado federal e professor da universidade Paulo Rubem Santiago e do presidente da CUT em Pernambuco. Questionado por mim, o responsável pelo Boletim, visivelmente constrangido, disse que havia uma orientação para que tais temas não fossem noticiados. Nessa ocasião, o radical e intempestivo que aqui escreve essas linhas contou até dez e seguiu seus trabalhos de professor da UFPE.
Na segunda ocasião, já na condição de diretor do NTVRU, fui aconselhado a dialogar – sempre o diálogo – com as coordenadoras do programa Fora da Curva, veiculado pela Rádio Paulo Freire AM, a fim de que o programa se tornasse mais plural e menos explicitamente crítico a Bolsonaro. O responsável pela sugestão deve se lembrar do fato, mas tomará conhecimento agora de que o meu diálogo com as responsáveis pelo Fora da Curva nunca ocorreu (e nunca ocorreria enquanto estivesse à frente do Núcleo, obviamente), porque não seria eu a fazer uso do diálogo para fins de censura disfarçada de sugestão. Nessa ocasião, o radical e intempestivo que aqui escreve essas linhas contou até dez e seguiu seus trabalhos de diretor do NTVRU.
Todos/as aqueles/as que militam pela causa da democracia e dos direitos humanos em geral e das liberdades de expressão e imprensa em particular são conscientes do fato de que não existe censura “soft” e censura “hard”. A censura não pode ser disfarçada com eufemismos do tipo “foi apenas uma solicitação, uma simples sugestão”. A censura, quando esta se insinua, deve ser denunciada prontamente, venha de onde vier, porque ela é um mal em si mesmo – é uma prática abominável.
Com a censura, não há diálogo!
já que estamos numa universidade pública federal, por que não aproveitamos o momento para debatermos o tema da censura? Gostaria muito de debater o assunto com o Magnífico Reitor. Vamos?
*Marco Mondaini é professor titular da UFPE
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