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As palavras e as coisas (ou a farsa da crítica)

Reprodução Globo News

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

“Ó meu Deus! Mas e a crítica, a santa crítica? – perguntou Luciano imbuído das doutrinas do cenáculo
– Meu caro – respondeu Losteau -, a crítica é uma escova que não pode ser empregada em tecidos delicados, pois arrasaria tudo”

(Balzac, em “Ilusões perdidas”)

O grande capital parece envidar mais esforços em delimitar até onde, e por que caminho, podem ir as críticas ao governo do que propriamente em criticá-lo de verdade. A dita oposição liberal a Bolsonaro teme mais a verdadeira crítica ao seu governo do que a este último. Uma eventual volta ao cenário político das forças populares, animadas pela real crítica a Bolsonaro, seria, aos olhos das pessoas da sala de jantar, mais danosa do que a continuidade no poder do próprio Bolsonaro. O governo, decerto, incomoda o andar de cima, mas a emergência da esquerda na cena social e política seria para ele bem mais do que um incômodo, não nos enganemos.

Mais reformas, mais austeridade, mais eficiência e mais polidez – eis o que propõem excruciantemente nossos sábios críticos dos grandes jornais. Um pouco mais de Hayek, de Friedman e até de Mises, um pouco menos de preconceito verbal e, quem sabe, um curso de etiqueta, daqueles de antanho, poderiam deixar tudo tranquilo, ao menos até 2022, quando talvez o ar – ou a falta dele – seja insuportável para milhões – mas não é isso que tira o sono dos donos dos milhões. Nas eleições, tal qual prescrevem as egrégias instituições, finalmente algum homem de berço e sapatênis poderia sentar na cadeira hoje ocupada por um homem que se tornou inconveniente à burguesia não propriamente pelo seu conteúdo, mas pela sua forma, não tanto pelo que faz, mas pelo que fala, menos pelo prato principal que oferece do que pelo seu tempero destemperado, mais pelas suas palavras do que pelas suas coisas, por assim dizer.

Toda a crítica da oposição liberal a Bolsonaro se assemelha, assim, menos à crítica propriamente dita do que a uma espécie de orientação profissional, algo que, talvez, um bom coach poderia fazer com sucesso caso conseguisse tirar o genocida da sua “zona de conforto”  e “mudar seu mindset” – se é que há ali alguma mind… A classe dominante parece disposta, portanto, a atacar Bolsonaro apenas com os espinhos das rosas que oferece a Paulo Guedes.

Em uma palavra: uma imprensa que se recusa a falar em genocídio ao “criticar” o governo Bolsonaro não é senão cúmplice desse mesmo genocídio, e suas mãos estão tão limpas do sangue que corre no país quanto estiveram, outrora, as de Pilatos do sangue que descia no Monte Gólgota. Mas nós, diferentemente do Pai, não lhes perdoaremos, pois vocês sabiam o que faziam quando abriram as portas do inferno, e seguem sabendo o que fazem quando insistem em mantê-las abertas, escoradas por inúmeros pedidos de impeachment e notas de repúdio.

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Bolsonaro