O Governo Bolsonaro e a proposta de uma nova Constituinte


Publicado em: 6 de janeiro de 2021

Brasil

Euclides Braga Neto, de Fortaleza, CE

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

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“O que importa não é tanto o fato de a Assembleia Constituinte ser ou não ser convocada (com o que o ministro-trapaceiro senhor Witte pode estar de acordo amanhã mesmo), mas o fato dessa assembleia ser realmente popular e realmente constituinte”.
(…).
“A burguesia tem medo da liberdade total e da democracia integral, porque sabe que o proletariado consciente, isto é, o proletariado socialista, utilizará a liberdade para lutar contra o domínio do capital”.
LENIN, A Questão da Constituinte (1)

O deputado federal Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo Bolsonaro na Câmara, em meio à disputa pelas presidências da Câmara e do Senado, começou 2021 defendendo uma nova Constituição. Para levar adiante seu plano, diz que vai apresentar um projeto de decreto legislativo com o objetivo de convocar, através de um plebiscito, uma Assembleia Constituinte.

Os argumentos de Barros não poderiam ser mais nítidos: “A atual Constituição Federal tem 103 vezes a palavra ‘direitos’ e nove vezes a palavra ‘deveres’. Trata-se, claro, de uma conta que não fecha”. Esgrimiu o douto parlamentar em artigo publicado na Folha de S. Paulo, em 03 de janeiro.

A pergunta que fica é: a conta não fecha para quem, cara pálida? Obviamente, a conta não fecha para o capital financeiro e os bancos nacionais e estrangeiros, sobretudo estadunidenses. Daí a necessidade de radicalização absoluta da retirada de direitos sociais assegurados pelas chamadas “cláusulas pétreas” da Constituição de 1988, que só poderiam ser derrubadas por uma ampla reforma constitucional.

Reza ainda o artigo do nobre deputado: “Para garantir a governabilidade a curtíssimo prazo, precisamos neste ano aprovar quatro emendas constitucionais, que vão se somar às atuais 108: as reformas administrativa e tributária, o pacto federativo e a PEC Emergencial de controle de despesas obrigatórias — todas voltadas ao reequilíbrio das finanças públicas”.

Essa posição do líder do governo Bolsonaro na Câmara não é novidade. O termo “desconstitucionalização” já era lugar comum na boca de economistas como Pérsio Arida, principal assessor de Alckmin: “No fundo, é tirar da Constituição, transformando em leis complementares, tudo que envolva gastos e tributos (…). Nesses 30 anos, o Brasil teve mais de três emendas constitucionais por ano”. (2)

A rigor, o que Barros propõe não é nada mais nada menos do que o carreamento dos planos draconianos de Bolsonaro e Paulo Guedes para o mecanismo de uma Assembleia Constituinte e, assim, matar mais de uma centena de emendas constitucionais com uma só cajadada. Em seu artigo, pergunta: “Não seria mais lógico elaborar uma nova Constituição do que promover constantes emendas?”.

Dentre seus objetivos estratégicos está a brutal redução dos gastos públicos e a liquidação, de uma vez por todas, de toda e qualquer vinculação de verbas orçamentárias para a saúde, educação e demais serviços prestados pelo Estado à população. Essa meta vem travestida de combate aos privilégios das chamadas “corporações” do funcionalismo público, visando fundamentalmente o fim da estabilidade no emprego e o achatamento dos salários das camadas proletárias do funcionalismo, sem tocar nos verdadeiros privilegiados que ocupam os cargos das altas cúpulas, como desembargadores, juízes e promotores de Justiça.

Some-se a isso a imposição de uma reforma tributária ainda mais regressiva, que aumentaria os impostos indiretos pagos por toda a população, como o Imposto Sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), e diminuiria ainda mais ou mesmo extinguiria os poucos impostos pagos pelos super-ricos.

Quanto ao Pacto Federativo, fica evidente que o objetivo seria centralizar ainda mais nas mãos do Executivo Federal o conjunto das verbas públicas e a arrecadação tributária, deixando governadores e prefeitos de pires nas mãos diante do governo de turno. Resumindo: trata-se de fazer regredir a distribuição orçamentária entre os entes da federação para gerar uma maior dependência político-financeira de estados e municípios com a União.

Enfim, Barros propõe uma nova Constituição que tenha como princípio fundante a máxima do Robin Hood às avessas: tirar do povo o pouco que ainda resta de educação, saúde e demais serviços públicos, para tornar ainda mais ricos os super-ricos.

Uma Constituinte reacionária

Segundo o site Congresso em Foco, Barros sustenta que a defesa de ampla reforma constitucional é antiga posição de seu mandato, e não uma diretriz do governo Jair Bolsonaro. O líder do governo busca ser mais realista do que o rei: quer deixar uma nova Constituição ultraliberal e ultraconservadora pronta antes das eleições de 2022, com ou sem Bolsonaro reeleito.

Argumenta: “Ao defender a reforma da Constituição, penso também em equilibrar os Poderes, pois o poder Fiscalizador ficou muito maior do que os demais, com uma situação inaceitável de inimputabilidade dos seus agentes”.

Supostamente, o sábio parlamentar defende aqui a regulamentação do Ministério Público e o combate à judicialização da política. Ledo engano! Entenda-se o reequilíbrio da atuação dos Poderes como o agigantamento do Poder Executivo, o que reforçaria mais ainda as características autoritárias do regime político brasileiro, centralizado na figura do presidente.

Portanto, o trem constituinte da extrema-direita seguramente não pararia nas medidas socioeconômicas. Ele buscaria avançar contra os direitos políticos e sindicais, contra a liberdade de opinião e imprensa, contra os direitos civis de negros, mulheres e LGBTQ+ e contra a liberdade religiosa.


Aprovação do SUS, em maio de 1988

Constituição de 1988: da mutilação à pá de cal

Marcada pela ascensão das lutas dos explorados e oprimidos que protagonizaram uma revolução democrática que pôs fim à a Ditadura Militar, a Assembleia Constituinte que deu origem à Constituição de 1988 foi obrigada a fazer uma série de concessões políticas, econômicas e sociais às massas trabalhadoras.

Esta mesma Constituição começou a ser mutilada e modificada desde as contrarreformas neoliberais do governo Fernando Henrique: monopólios estatais foram quebrados; empresas privatizadas a preço de banana; direitos sociais, previdenciários e trabalhistas e o financiamento dos serviços públicos atacados.

Durante os governos de Lula e Dilma, as medidas progressivas da Constituição de 1988 passaram por um relativo respiro, na medida em que estes não aprofundaram nem reverteram a maioria das contrarreformas anteriores, apesar de darem seguimento à contrarreforma previdenciária, em nome do respeito aos contratos com o capital financeiro. Mas os super-ricos queriam mais do que os governos do PT estavam dispostos a oferecer e romperam o pacto social com o golpe parlamentar de 2016.

Com a posse de Temer e a eleição de Bolsonaro, a Constituição de 1988 voltou a sofrer novas e profundas mutilações, com a contrarreforma trabalhista e a nova contrarreforma da Previdência. A rigor, o que restou da Constituição de 1988 é um arremedo, com exceção, talvez, do Sistema Único de Saúde (SUS). Partindo desta caracterização política, o líder do governo na Câmara quer deitar uma pá de cal definitiva sobre esta senhora mutilada e moribunda.

Charge de Miguel Paiva. Um casal está sentado na calçada de uma rua. O homem lê a constituição. "Todo brasileiro tem direito à moradia.." Ao seu lado, a mulher, amamentando um bebê, responde: "Agora lê aquele pedaço bonito que fala de comida, saúde..." Ao fundo, um menino.
Charge de Miguel Paiva

A questão da Constituinte e a correlação de forças

Diante da atual correlação de forças desfavorável aos explorados e oprimidos; bem como, no presente contexto político-parlamentar, que dá maioria à direita neoliberal e à extrema-direita ultraliberal no Congresso Nacional, seria um grave erro para a esquerda, mesmo a mais reformista, defender a convocação de uma Assembleia Constituinte por um governo com características neofascistas, ultraliberais e fundamentalistas.

A essência do problema aqui não é se é correto ou não propor uma Assembleia Constituinte nos marcos de uma democracia representativa. Até porque este é um falso dilema político, como vêm demonstrando as gigantescas manifestações no Chile.

Algum desavisado poderia esgrimar que as tarefas democráticas do Chile estão incompletas, na medida em que a atual constituição chilena é uma herança da ditadura de Pinochet. E que, portanto, trata-se de uma questão excepcional no marco de um regime democrático representativo com fortes traços autoritários, como é o chileno. Nada mais falso!

A luta por uma Assembleia Constituinte se impôs no Chile porque as massas identificaram esta como um caminho para carrear suas reivindicações políticas, econômicas e sociais. A essência da questão da Constituinte como uma bandeira da esquerda socialista está muito mais relacionada à correlação de forças entre as classes e ao fato desta se tornar uma reivindicação progressiva das massas em luta, do que se esta proposta se levanta contra uma ditadura militar ou um regime democrático burguês.

A suposta convocação de uma Assembleia Constituinte pelo governo Bolsonaro, como explicamos acima, teria uma característica oposta à atual Constituinte chilena. Não seria uma imposição das massas, mas uma manobra reacionária para aprofundar os planos ultraliberais, neofascistas e fundamentalistas de Bolsonaro, Paulo Guedes e das bancadas do Boi, da Bala e da Bíblia.

A tática política e parlamentar da esquerda socialista

Neste início de 2021, caberá à esquerda socialista preparar a luta política de massas e suas táticas parlamentares para enfrentar o governo Bolsonaro e a maioria do Congresso Nacional, que se consolidou como uma aliança da direita neoliberal com a extrema-direita.

Ela não poderá cair no canto de sereia da convocação por este governo e este Congresso de um plebiscito para uma Assembleia Constituinte que, em ocorrendo, não passará de uma cilada reacionária.

Obviamente que não se trata de ganhar votações num parlamento quando se é minoria, mas de atrasar, boicotar e impedir, na medida do possível, a tramitação e a aprovação das centenas de emendas constitucionais que visam atacar de todos os lados as poucas conquistas democráticas e sociais que restaram da Constituição de 1988.

NOTAS

1 – LENIN, A Questão da Constituinte, pp. 58 e 59 – Formalismo revolucionário e trabalho revolucionário, Novaia Zhisz, nº 18, de 20 de novembro de 1905. Ed. História, Contagem, 1979.

2 – https://www.infomoney.com.br/politica/exclusivo-bolsonaro-e-um-engodo-tao-estatizante-quanto-a-esquerda-diz-persio-arida/


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