Não há necessidade de ser um grande conhecedor da tecnologia da informação para constatar os riscos aos quais o Brasil está submetido ante o grande número de casos de vazamentos de dados confidenciais públicos e privados, terreno no qual, em plena disputa comercial pela novíssima tecnologia 5G, os métodos tradicionais de “grampos” telefônicos e implantação de escutas já se encontram definitivamente superados, em desuso, pelo progresso da ciência neste setor. Todos os sistemas de proteção, criptografia, arquivos em nuvens, mecanismos de defesa cibernética, que, ainda sim, lembremos, não foram capazes de impedir o vazamento de dados do Pentágono americano, da CIA e até mesmo do Vaticano. O que se dirá então de nossas instituições públicas e sobretudo a privacidade dos cidadãos brasileiros?
E não se diga que não há produção legislativa, até em excesso, pois temos definido um Marco Civil Regulatório daInternet, Lei Geral de Proteção de Dados pessoais (13.709/2018) e até uma política nacional de segurança da informação, instituída pelo Decreto 9.637/2018, além de possuirmos uma Constituição sabidamente guardiã da confidencialidade dos dados pessoais, do sigilo das comunicações privadas. Qualquer estudante de Direito sabe que não somos um país carente de leis e normas protetivas neste terreno, muito pelo contrário, pois somos bem servidos de legislações, conforme a tradição do velho Direito português, as Edições Manuelinas – o nosso primeiro direito colonial – desde sempre pródigo em leis, decretos, portarias, diretivas das mais variadas origens e formas, o que, contudo, não impede que nossos telefones particulares, e-mails, estejam nas mãos das mais variadas empresas de comércio, nossos CPFs sabe-se lá em que mãos. No âmbito estatal, o STJ, TSE e Ministério da Saúde recentemente, tiveram devassados em seus arquivos, para citar apenas estes três casos mais emblemáticos, sendo que, no caso do Ministério da Saúde, em plena crise sanitária, o vazamento de uma senha causou a exposição de dados de mais de 16 milhões de pacientes.
Fiz esta breve introdução para adentrar no assunto que realmente, a meu ver, é o principal, a despeito da importância das leis e do Direito. Refiro-me ao tema da privatização do SERPRO e DATAPREV, que, como é sabido, possuem e operam com os principais arquivos da República, o fiscal (Receita Federal) e previdenciário (INSS), isto sem contar a quantidade de outros órgãos com os quais possuem contratos administrativos, processam as consignações em folha de pagamento do funcionalismo público, prestam serviços super qualificados de processamento de dados para as forças armadas e o poder judiciário. Ao lado de tantos outros absurdos, como a privatização em curso da Petrobras, via a venda das subsidiárias e poços rentáveis, (e até mesmo a nossa Casa da Moeda) verifica-se na questão da tecnologia das informações, notadamente, um verdadeiro “suicídio” do Estado, ao se abdicar, caso estas empresas sejam vendidas, do mais elementar controle sobre seus arquivos, instrumentos de controle de dados públicos, em favor do festejado “mercado”, sem se dar conta – ou então em um processo consciente de autodestruição – que ficaremos mais fragilizados e pobres, sem a mínima proteção dos dados de nossa economia, tributação, capacidade militar e saúde da população.
Neste exato momento, está em curso um procedimento promovido pelo BNDES visando qualificar tecnicamente empresas para prestação de serviços de assessoria financeira interessadas em participar de processos seletivos para a contratação de estudos sobre a desestatização do SERPRO, o que, em outras palavras, quer dizer que o processo de privatização destas empresas está sendo apressado, adiantado, com vistas a promover os estudos técnicos para privatização, seja lá por qual meio for…
A rigor mesmo, se fosse considerada a exigência constitucional de autorização legislativa para deste patrimônio público, isto somente poderia ocorrer através de uma lei específica a ser discutida e votada no Congresso, conforme está sendo discutido no STF através da APDF n 6241, ajuizada pelo PDT, em que atua como Relatora a Exma. Ministra Carmem Lucia. Mas, infelizmente, deste governo, inobstante o tema estar sob fundamentado questionamento judicial, se espera atualmente “qualquer coisa”, até mesmo que o façam sem aprovação legislativa, via algum “atalho” jurídico, ou seja, uma manobra que viabilize a transferência de controle acionário para mãos de algum concorrente destas empresas.
O fato é que definitivamente nem o SERPRO e nem a DATAPREV são empresas subsidiárias e, ao contrário do que ocorreu recentemente com subsidiárias da Petrobras, em que através da ADI 5. 624 o STF autorizou a venda destas sem a edição de lei própria, no caso, entretanto, destas duas empresas o STF terá que fazer uma interpretação muito casuística (e, com todo respeito, mais política que jurídica) caso venha a validar tamanho disparate, sendo que, inclusive, este julgamento já se encontra com previsão para acontecer ainda neste mês de dezembro, em plenário virtual.
Neste sentido, qual seja, a especificidade de empresas de tecnologia da informação, é oportuno destacar que, recentemente, acórdão 4035/2020 do TCU, aprovado em plenário no último dia 8 de dezembro, ao analisar aspectos da segurança da informação na administração pública federal, consignou que (…) As eventuais privatizações de Dataprev (já incluída no PND) e do Serpro (inclusão no PND já recomendada pelo CPPI) merecem atenção especial devido ao fato de que os serviços prestados por essas empresas suportarem a infraestrutura tecnológica de órgãos relevantes da Administração Pública Federal, bem como alguns dos principais sistemas de informações e programas de governo relacionados ao processo de transformação digital no Brasil”, destacou o exmo. Relator do processo no TCU, ministro Vital do Rego. Mais claro não poderia ser.
Com efeito, sobre a centralidade da tecnologia das informações no cotidiano de nossas vidas e do Estado, quando, inclusive, o Brasil já foi reconhecidamente espionado pelo governo estadunidense, durante a gestão de Dilma Rousseff, o tema da proteção de nossos dados públicos e privados está sendo tratado de forma totalmente irresponsável, temerária, pelo que não se pode deixar de comentar que chega a ser de uma hipocrisia o fato de que o atual governo, repleto de generais que se dizem genuínos nacionalistas, verbalize constantemente um discurso de suposto zelo com nossa soberania e o que denominam a “ameaça chinesa”, enquanto, ao mesmo tempo, está deixando totalmente a mercê dos interesses privados internacionais o acesso e controle de nossas principais bases digitais de informações e processamento estatal destas, enfim, colocando em risco a governança da segurança dos dados de interesse estatal e as fronteiras de proteção das informações pessoais dos cidadãos.
Caminhando para o término deste breve texto, cabe dizer que que o motivo pelo qual resolvi escrever sobre este tema, longe de ser um especialista no assunto, é simplesmente a convicção, como cidadão, de que infelizmente estamos sendo mais uma vez usurpados em algo que tanto nos é caro e indispensável, assim como outras riquezas que estão sendo privatizadas por este governo e outros que o antecederam, sendo certo que, devido a relevância que possui a tecnologia da informação em nossas vidas e do Estado, seremos no futuro certamente um pais mais ainda colonizado se não pudermos, sequer, contar com o processamento público de nossas informações, através do Serpro e Dataprev, que concentra o que tem de melhor em recursos humanos e materiais, do ponto de vista de servir ao público.
Penso que as entidades da sociedade civil que se reivindicam democráticas devem exigir urgentemente lugar nesta discussão, em torno de uma agenda de soberania da tecnologia da informação, especialmente sob o ponto de vista da proteção de nossos dados, individuais e estatais, deixando de lado esta política suicida contra nossa privacidade e independência nacional. O STF deveria, antes de julgar, fazer uma audiência pública para ouvir a sociedade civil. O Congresso discutir o tema. E a população urge que acorde.
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