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BRASIL

Câmara impõe a primeira grande derrota ao governo Lula sustando decretos do saneamento

Em votação extremamente rápida a Câmara dos Deputados derrubou decretos do Lula no Saneamento, que constituíam parte de suas promessas de campanha. A votação segue agora para o Senado.

Igor Dias, de Goiânia (GO)
Fabio Pozzebom/Agência Brasil

Lula prometeu em sua campanha eleitoral que o saneamento seria responsabilidade do Estado, pois exige altos investimentos. Ele cumpriu sua promessa com decretos que alteram a lei do Novo Marco Legal do Saneamento, mas a Câmara dos Deputados sustou esses decretos dando mais força para a iniciativa privada abocanhar o saneamento brasileiro. Esse episódio demonstra que não é possível confiar no parlamento, é hora de aumentar a mobilização para garantir as conquistas necessárias, água tratada e esgotamento sanitário para os mais pobres.

O Novo Marco do Saneamento foi aprovado em 2020, teve como o principal articulador o Governo Bolsonaro, encontrou muita crítica e resistência de trabalhadores e especialistas do setor, entretanto, a iniciativa privada já vinha fazendo lobby antes do Bolsonaro ser eleito presidente. A ideia fixa de entregar a gestão das águas e do saneamento brasileiro para grandes grupos de empresários lucrarem, ganhou força após o golpe contra a presidente Dilma Roussef (PT) em 2017 e se materializou em duas Medidas Provisórias (MPs) do Governo Temer que foram derrotadas após mobilizações dos trabalhadores de empresas públicas de saneamento no Congresso Nacional.

Com a eleição de Bolsonaro em 2018 a composição da Câmara Federal mudou, ela ficou ainda mais reacionária, privatista e conservadora. Se aproveitando disso, grupos privados com interesses escusos se organizaram para aprovar a lei 14.026 de 2020 que ficou conhecida como Novo Marco Legal do Saneamento mesmo com muita luta dos trabalhadores.

Entenda a lei 14026/2020 Novo Marco Legal do Saneamento

O Novo Marco Legal do Saneamento alterou a lei 11.445/2007 que foi aprovada no segundo governo Lula. A lei de 2007 foi uma conciliação entre a iniciativa privada e os defensores do setor público e já autorizava empresas privadas no saneamento.

Dentre os pontos mais perversos da lei aprovada por Bolsonaro, está a mudança no regime de contratação das empresas de saneamento pelos municípios. A lei do segundo Governo Lula proporcionava o contrato de programa que era baseado em critérios técnicos, sociais, geográficos e econômicos. O Novo Marco do Saneamento obriga prefeitos a oferecerem a concessão dos serviços para a iniciativa privada através de uma licitação, mesmo em cidades onde o atendimento é universalizado.

Na prática a nova lei sufoca as empresas estatais. Essas estatais foram as que criaram a grande maioria da estrutura de saneamento existente no país. Essa estrutura infelizmente ainda está, de certa forma, limitada aos grandes centros. As empresas públicas se utilizam de um mecanismo chamado de subsídio cruzado, retirando o lucro dos grandes centros urbanos para investir em locais não universalizados onde está a população com menor capacidade de pagamento das tarifas. Nesse modelo, os investimentos do saneamento não são retirados da conta de água dos mais pobres.

A pesar da lei de 2007 autorizar a operação da iniciativa privada, não houve grande interesse das empresas, já que elas não querem levar saneamento para os rincões do Brasil. O que elas querem é arrecadar dinheiro com a tarifa onde já existe uma rede de saneamento consolidada e, por isso agora, tem oportunidade de disputar o que os especialistas chamam de filé do saneamento: as maiores cidades, de onde as empresas públicas retiram receita para levar água e saneamento em preços módicos para as menores cidades.

Isso prova que o interesse não é investir. Se esse fosse o objetivo, elas já teriam investido antes da lei 14026, pois já existia essa possibilidade. Cidades como Manaus tem o saneamento privatizado bem antes da lei, e aparece em último lugar em rankings do SNIS (SISTEMA NACIONAL DE INFORMAÇÕES DO SANEAMENTO) em diversos critérios, inclusive as de cobertura.

Os decretos de Lula no Saneamento

Após a sanção da lei 14026/2020 por Bolsonaro as divergências sobre o tema se aprofundaram, já que ao sancionar a lei, o Governo Bolsonaro vetou o artigo 16 que havia sido um acordo entre Governadores e parlamentares da Câmara e do Senado, para dar uma sobrevida às companhias estaduais de saneamento.

No último dia 5 de Abril, o Governo Federal publicou os decretos 11.466 e 11.467 que alterou os decretos de Bolsonaro sobre o Novo Marco Legal do Saneamento e buscam, entre outras questões, resgatar o objetivo do artigo 16.

Os decretos, dentre outras coisas, facilitam e aumentam os prazos para a comprovação da capacidade econômica financeira, reconhecendo todas as relações contratuais, mesmo que precárias, para que a companhia pública possa cumprir as metas de universalização até 2033. Coloca como contratos em vigor, as prestações de serviço sem instrumento contratual que antes era tratado como contrato irregular, precário ou etc. Possibilita a prestação regionalizada de serviço de saneamento por empresas públicas, autorizadas por entidade de governança interfederativa e aumentou o prazo para a estruturação dessa prestação regionalizada.

Disputa na Câmara dos Deputados

Mesmo os decretos do Lula, tendo pontos que facilitariam para a iniciativa privada operar, como a autorização de Parcerias Público Privadas até 100%, o Lobby que está querendo privatizar nossa água não se conformou e operou uma verdadeira força tarefa para disputar a narrativa a partir da grande mídia e articular politicamente com o centrão, com deputados de partidos que formam a base do governo na Câmara dos Deputados, como MDB e União Brasil e até com a maioria dos votos do PSB.

Chama atenção que Lula nunca escondeu a sua intenção, durante a campanha eleitoral, de universalizar o saneamento a partir de empresas públicas, já que em sua visão essa é uma obrigação do Estado, por se tratar de grandes investimentos com retornos financeiros somente a longo prazo, cerca de 20 ou 30 anos. Sendo assim, sustar esses decretos é ir contra o voto de mais de 59 milhões de brasileiros e é um ataque a democracia.

Os decretos ainda serão analisados no Senado Federal, mas a lição é que não podemos confiar no Congresso Nacional, no Mercado e em setores do governo que defendem medidas que vão fazer com que Lula não cumpra suas promessas. Não dá para construir uma governabilidade com os mesmos que estão impedindo o governo de cumprir suas promessas de campanha.

A disputa está acirrada e para garantir que as ações do governo para melhorar a vida do povo sejam implementadas, é necessário uma grande unidade entre as centrais sindicais e movimentos sociais e populares com lutas e articulações para pressionar temas como esse do saneamento, mas também levar a luta de outras pautas importantes para beneficiar os trabalhadores e isolar de vez a extrema direita e sua narrativa.

Igor Dias é militante do Coletivo Sindical e Popular Travessia e diretor do STIUEG (Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas no Estado de Goiás)