Recentemente, o jornal Folha de S. Paulo defendeu em editorial a necessidade imperiosa de “rever a estabilidade” do servidor público. A proposta em si não é um fato isolado. Ao contrário, é parte de uma política deliberada de desmontar o Estado naquilo que ele ainda apresenta de serviços básicos à sociedade. Não por acaso, praticamente todo dia é criada uma matéria no parlamento com esse fim. Mas não é só a Folha. A Globo, por exemplo, atua 24 horas pela “reforma administrativa” (PEC 32/2020), utilizando-se inclusive, sem pudor, dos argumentos falaciosos fornecidos pelo Instituto Millenium. Este artigo pretende analisar as relações entre a mídia, os especialistas burgueses, a “reforma administrativa” e o destino dos serviços públicos no Brasil.
O servidor público no radar da mídia: uma ofensiva permanente
Como o lobo que persegue a sua presa, a mídia não descansa um só segundo em sua peleja em prol do desmonte do serviço público. Mais do que concordar com a “reforma” de Bolsonaro, Globo, Folha e Estadão exigem mais. Acham que a proposta do governo ainda é tímida. Curiosamente, há quem acredita que a mídia empresarial seja capaz de defrontar de modo consequente o governo neofascista, cujo ministro da Economia, o Sr. Guedes, apoiado pelos grandes meios de comunicação, defende, por exemplo, que os aposentados fiquem dois anos sem aumento.
O fato é: a grande mídia ampara a mesma agenda econômica contra os direitos da classe trabalhadora. Por isso, abraça entusiasticamente a “reforma” da administração pública e pede mais. Por esses veículos de imprensa, a estabilidade acaba e já. Nota-se, no entanto, como a mídia enche a boca para falar da impessoalidade típica da atividade pública. Esquece, propositalmente, que não existe impessoalidade sem estabilidade. Do mesmo modo, enche a boca para falar de segurança jurídica. Mas não existe segurança jurídica na ação do servidor público sem o estatuto da estabilidade.
O guarda civil, na cidade de Campinas, multaria o magistrado se não dispusesse de um regime estatutário que prescrevesse o caráter estável de sua atividade? O funcionário do Ibama teria multado o então deputado Jair Bolsonaro, por pesca irregular, sem o estatuto da estabilidade? Aliás, o agora presidente, certamente, já o teria demitido.
Mas a grande mídia, associada ou simples propriedade do capital financeiro, não está preocupada com os critérios da informação objetiva. Assim, a manipulação da informação precede toda e qualquer reforma no parlamento. Aliás, é condição necessária para que sejam aprovados os maiores absurdos. Foi assim na PEC do teto, na contrarreformas trabalhista e da previdência e, agora, na administrativa, que aponta para esterilização e desmontagem do serviço público.
Nessa ofensiva, os ideólogos burgueses, encastelados nos meios de comunicação, enunciam que o servidor público precisa se submeter a mecanismos de avaliação, mas, em muitos casos, o servidor público já está submetido a essa prática. A avaliação de desempenho, em muitos órgãos públicos, é um fato.
Todo esse suposto zelo pela qualidade da atividade pública, dissimula o problema central: uma maior precarização dos serviços públicos é objetivo de banqueiros, donos da mídia e dos políticos liberais, até porque nenhum deles depende desses serviços. Objetivamente, a defesa dos serviços públicos é tarefa de quem é pendente de sua oferta: os trabalhadores e as trabalhadoras, em particular, os estratos menos aquinhoados.
Apesar dessa obviedade, os arautos do capital usam e abusam de argumentos com vistas a favorecer os intentos patronais. Ao insistirem na defesa da “reforma” administrativa, afirmam que o objetivo é acabar os privilégios do funcionalismo. Ora, ora, uma proposta que preserva os juízes e seus R$ 39 mil de salário, que poupa os procuradores do ministério público, os parlamentares e os militares, é para pôr um fim aos privilégios? Francamente!!! É preferível acreditar em silfos, gnomos e papai Noel.
Na realidade, interessa aos neoliberais enfraquecer e sucatear o serviço público, pois escolas, universidades e hospitais públicos sucateados pavimentam o caminho para mais privatizações, e, portanto, mais negócios e benesses em prol do capital.
Os especialistas burgueses e a ofensiva contra os servidores públicos
Aprovar reformas tão dolorosas que retiram direitos e precarizam ainda mais o serviço público, seguramente, reclama estudos, gráficos, tabelas e muito blábláblá, e essa função cabe aos chamados especialistas, cuja tarefa, grosso modo, é estabelecer os fundamentos ideológicos da ofensiva burguesa. Essas pessoas estão espalhadas em vários pontos: universidades, institutos privados, órgãos de mídia etc. Esse universo é constituído de investidores, acadêmicos, profissionais da área do direito, economistas e jornalistas. Sempre que uma das contrarreformas está para entrar no parlamento, essas aves de arribação levantam voo e buscam no ar pretextos a fim de justificá-la.
Para que se entenda como tudo funciona, peço que as pessoas pensem o seguinte: o Instituto Millenium fez um estudo dos supostos privilégios no serviço público com a intenção de justificar a necessidade da contrarreforma administrativa. É um tipo de estudo que já tem uma resultante. Busca apenas juntar um amontoado de esquemas, gráficos e leituras propensos ao alvo a ser alcançado. Qual a linha desse instituto? Categoricamente ultraneoliberal. É a turma que defende a feroz agenda neoliberal. Não por acaso, defendeu à aprovação da PEC do teto dos gastos – que congela os investimentos públicos em setores tão sensíveis como educação, saúde e pesquisa -, a “reforma” trabalhista, a previdenciária e, agora, a administrativa.
O presidente neoliberal do Instituto Millenium é filho de Hélio Beltrão, falecido empresário e ex-ministro da ditadura. A sua irmã, Maria Beltrão, ancora o programa Estúdio I na Globo News, que não discute, mas faz propaganda da contrarreforma administrativa. Em suma, “Tá tudo em casa”. É assim que funciona toda lógica de falsificação da realidade. É a antessala de toda e qualquer reforma antipopular. É assim que vendem ao país a sua própria destruição.
Por falar nisso, estão destruindo a Amazônia, apesar do empenho de servidores públicos para impedir a consumação dessa catástrofe. Suponha, então, se o servidor público perde a estabilidade? Os capitalistas e a mídia comercial fingem que estão preocupados com a proteção ambiental. Tiram a máscara quando defendem a liquidação das condições que, por exemplo, permitem o trabalho do funcionalismo. Igualmente, fingem que estão preocupados com a PANDEMIA e a saúde pública, mas se desmascaram quando abraçam a tese do desmonte do serviço público.
A catástrofe sanitária que hoje vivemos seria absurdamente maior sem o SUS. Que hospital particular atenderia às centenas de milhares de pessoas atingidas pela Covid 19? Qual é o hospital que, na sua região, caro leitor, tem sido a linha de frente na preservação das vidas das pessoas da região? Ele é público ou privado?
O que se nota é a difusão de análises rasas que se empenham em apresentar o conjunto dos servidores públicos como uma categoria rigorosamente homogênea, ignorando a diferença salarial de um juiz em relação a um professor do ensino fundamental ou de um general para um guarda civil do município. Com o fito de tentar acobertar esses fatos, o próprio Instituto Millenium somou o salário do juiz, do promotor, do cargo comissionado e do técnico administrativo e criou uma média para tentar passar a ideia de que o servidor ganha muito. Esse é um modo cínico e premeditado de proteger os privilégios dos togados, fardados e de outros estratos da alta burocracia do Estado, enquanto ataca os de baixo.
Para isso, usam mão de uma análise rasteira, robusta de estereótipos, em que o servidor aparece na qualidade de um indivíduo que ganha muito e trabalha pouco. A intenção é nítida: seguir adotando as políticas de “reformas” que aniquilam os direitos e sacrificam os empregos (no caso dos servidores, os cargos).
O que está patente é que os neoliberais defendem empregos sem direitos, e no caso em tela, querem destruir órgãos, cargos e direitos, e nesse contexto, precarizar o serviço público e reforçar alternativas privadas. Para quem acha que isso é bom para o país, basta examinar o processo de privatização do público, por meio das organizações sociais, como se vê no Rio de Janeiro e na maior parte das cidades brasileiras. Essa é a alternativa que se fortaleceu no governo FHC e segue se ampliando. Aqui, cabe uma pergunta: qual o resultado dessa estratégia a não ser o aumento dos desvios de recursos públicos e a picaretagem elevada à categoria de política de Estado?
Nessa luta, os trabalhadores e a esquerda precisam de um programa
Nos limites deste artigo, é impossível oferecer um programa completo, mas as grandes linhas de sua plataforma podem ser indicadas. Primeiro, cabe-nos a defesa do serviço público, de sua melhoria, do seu aperfeiçoamento, da sua ampliação, da valorização do funcionalismo, do fim do teto dos gastos, para que, de fato, sejam disponibilizados recursos à educação, à saúde, ao saneamento e à pesquisa. O fim da lei do texto dos gastos deve vir acompanhada da revogação das contrarreformas trabalhista e da previdência, bem como da imposição de dispositivos que freiem a sanha privatista de Bolsonaro, Guedes e demais papa-jantares do neoliberalismo.
Cabe-nos, igualmente, exigir o imediato arquivamento da proposta de “reforma administrativa”, que retroage ao período anterior à Constituição de 1988, deixando o servidor público aos humores dos políticos de plantão. Com efeito, o servidor público precisa de autonomia para exercer a sua atividade e cinco circunstâncias precedem à aquisição dessa prerrogativa: concurso público, nomeação do concursado, estágio probatório de três anos, efetivação e estabilidade.
Mas, não basta autonomia. São necessárias condições dignas de trabalho e remuneração condizente. O servidor tem direito a uma jornada de trabalho humanamente definida e um salário que garanta alimentação, moradia, vestuário, acesso à cultura e ao lazer. Esse é o programa que deve ser defendido em oposição ao programa do DEM, do PSDB, da Rede Globo, do PSL e, especialmente, do governo Bolsonaro. As eleições municipais constituem um momento dessa disputa programática.
Comentários