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BRASIL

Relatório da PEC 32: as tendências para o trabalho na esfera pública

Gênesis de Oliveira Pereira*, do Rio de Janeiro, RJ

Ação simbólica de servidores públicos no último dia 07, em que uma geladeira vazia foi colocada em frente ao Ministério da Economia, em Brasília.

No dia do servidor público estamos diante do maior ataque até aqui proferido ao funcionalismo. Vivemos, desde o golpe de 2016, um aprofundamento do cenário de depreciação dos trabalhadores da esfera pública, alega-se que o Estado brasileiro gasta demais com servidores e, por isso, seria necessário reduzir os gastos com pessoal. 

A falácia parlamentar e midiática acerca dos gastos com o funcionalismo tem sido a pedra de toque de uma permanente contrarreforma trabalhista no Estado brasileiro. De acordo com Pereira (2020), o gasto com a dívida pública consumiu cerca de 45% do orçamento no ano de 2020, enquanto as despesas com pessoal representaram 9,4% dos gastos da União. Lopez e Guedes (2019) sinalizam que a despesa com servidores em exercício frente ao PIB manteve-se estável entre os anos de 2004 e 2017, variando de 2,6% a 2,7%. Dados da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2015) revelam que o emprego público no Brasil representa 12% do total das ocupações do mercado de trabalho, média menor que dos países europeus e cerca de 1% acima do Chile, país com ampla tradição liberal. 

Portanto, como podemos ver, o problema orçamentário do Estado brasileiro não advém do funcionalismo público. Os mega salários, distorções salariais e excesso de benefícios e vantagens não estão colocados para nós, trabalhadores do executivo. Eles existem e estão concentrados no poder judiciário (em especial na magistratura e promotoria), legislativo (parlamentares) e nas forças armadas, seguimentos esses devidamente protegidos da contrarreforma administrativa. 

Os trabalhadores do executivo, responsáveis pelo oferecimento dos serviços essenciais à população são os que possuem a menor média salarial, e, também, o alvo preferencial da atual contrarreforma, que, como podemos ver, não combate as efetivas distorções existentes no funcionalismo público. Esse cenário adverso que nos encontramos não foi gerado hoje, ele expressa anos de desmonte trabalhista na esfera pública.

A permanente contrarreformas trabalhista do Estado brasileiro

O Estado brasileiro vive uma contrarreforma administrativa permanente. Partimos do pressuposto que essas contrarreformas expressam expropriações de direitos trabalhistas no âmbito da esfera pública, seu principal objetivo consiste em ampliar a punção do Orçamento Bruto de Pessoal (OBP). Parece consenso que, na esfera privada, a precarização do trabalho tem sido uma das formas de viabilização do aumento da taxa de lucro dos capitalistas. Na esfera pública, cuja lógica não se baseia na produção de mais-valia, a precarização tem sido uma das formas de ampliação da apropriação do fundo público por parte das diversas frações capitalistas. 

Os debates no âmbito da tradição marxista já sinalizaram que os avanços das políticas neoliberais significaram efetivos cortes, desvios de receitas e uma permanente punção do orçamento que financia as políticas sociais.  O que nós temos chamado a atenção é que o orçamento que paga os servidores públicos também vem sofrendo uma punção permanente, o que traz um cenário profundamente articulado entre o desmonte das políticas sociais e o desmonte do trabalho que as operacionalizam. A principal forma de punção dessa fatia orçamentária trata-se de uma permanente contrarreforma trabalhista expressa na esfera administrativa e previdenciária. 

Antes de avançarmos na análise é importante estabelecer um breve parêntese. O OBP comporta um conjunto de gastos com salários e benefícios de servidores civis e militares da ativa, aposentados e pensionistas. Podemos dividi-los em dois núcleos, sendo um composto por salários, vantagens [1] e outro pelos benefícios previdenciários pagos a servidores ativos, aposentados e pensionistas. Essa característica conforma algumas particularidades, como, por exemplo, o fato dele não contemplar somente gastos, mas também receitas. A condição de empregadora e administradora do Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) faz com que a contribuição patronal da União seja revertida em receita [2]. Nessa direção, as contrarreformas previdenciárias e administrativas ampliam a precarização do trabalho como condição para redução do OBP.

Desde a instituição do Regime Jurídico Único (RJU) podemos observar que os sucessivos ataques aos servidores expressam expropriações de direitos e alteram objetivamente a forma de alocação do OBP. As principais tendências identificadas são: 

  1. Incremento das terceirizações operacionalizadas por meio da Lei nº 8.666/93, 101/2000 e dos Decreto nº 2.271/1997 e 9.507/2018. De acordo com os dados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio Continua (2019), temos, entre os anos de 2012 e 2019, um crescimento dos trabalhadores informais de nível superior em 10,63% e uma diminuição do funcionalismo público no mesmo nível de escolaridade em 1,02 % [3];
  2. Congelamento e ampliação das dificuldades para realização de concursos públicos, que se expressam na EC 95 [4], no Decreto nº 9.739/19, na Lei Complementar n° 173/2020 e, mais recentemente, na aprovação da Proposta Ementa Constitucional 186 que criou gatilhos [5] para congelamento de gastos essenciais que impedem, dentre outas coisas, os aumentos salariais e a realização de concursos para novas vagas;
  3. Perda do direito à aposentaria integral para os servidores admitidos após 2013, estabelecida pela lei n° 12.618/2012. Ampliação das alíquotas previdenciárias promovendo uma redução indireta dos salários, medida estabelecida pela EC 103/2019.

Esse processo não se trata apenas de uma mudança na legislação, ele consolida novas tendências para o trabalho esfera pública, dentre as quais destacamos a ampliação de regimes de trabalho altamente precários, que aumentam a rotatividade da força de trabalho, acirram o descontinuísmo nas políticas sociais e inserem a lógica do valor na esfera pública. Observamos, também, a não recomposição dos quadros profissionais no âmbito das políticas sociais. Esse enxugamento vem sendo realizado através da inserção de tecnologias da informação; supressão da jornada de 8 horas diárias pelo trabalho por produtividade; técnicas de gestão e controle gerenciais da força de trabalho. 

Essas tendências são acirradas pelo aumento do tempo na ativa e pela depreciação dos direitos previdenciários. Estima-se que a partir de 2043 (CASALECHHI et al, 2019) teremos uma maior participação no RPPS dos servidores que ingressaram após 2013, o que representará uma forte queda no OBP por meio da redução das aposentadorias. Nesse sentido, as contrarreformas em curso vêm reduzindo a médio e longo prazo o OBP, através da degradação dos vínculos contratuais na esfera pública, da redução dos direitos previdenciários e da intensificação do trabalho, medidas essas que vem alterando objetivamente os processos de trabalho coletivo no interior das políticas sociais. Esse cenário tende a se acirrar com a proposta ultraneoliberal expressa na PEC 32.

Relatório da PEC 32 e o trabalho na esfera pública

Como já pontuado, a PEC 32 trata, sobretudo, de uma contrarreforma trabalhista na esfera pública, suas consequências são nefastas e ameaçam a existência do funcionalismo público tal como conhecemos. É importante destacar que o projeto apresentado pelo governo vem passando por alterações nas instâncias deliberativas, incide sobre ele a pressão da oposição e das entidades representativas dos servidores públicos. Contudo, os pilares centrais do projeto encaminhado pelo executivo continuam sendo assegurados. A proposta do governo apresentava quatro tipos de vínculos [6], medida essa que acabava com o RJU. Embora a Comissão Especial (CESP) tenha retirado a alteração dos vínculos prevista no artigo 39-A, o fim da estabilidade tramita por novos meandros, dos quais destacamos: 

  1. Privatização das políticas sociais através da inserção do artigo 37-A que prevê a possibilidade de sua administração e execução por empresas privadas. Temos, portanto, a lógica do valor em espaços historicamente improdutivos;
  2. Generalização do contrato por tempo determinado com duração de até 10 anos, exceto para as carreiras típicas de estado; 
  3. Avaliação de desempenho como forma de promover a perda do cargo público mesmo após alcançar a estabilidade. 

Essa configuração pretende tornar obsoleto o RJU, permitindo que o OBP seja repassado para corporações, comprometendo a natureza pública dos direitos sociais. A mudança constitucional prevista no artigo 37-A coloca a possibilidade de privatização dos serviços de saúde, educação, assistência e previdência, que podem ser executados por grandes corporações. Trata-se, portanto, da capitalização dos direitos sociais e da transformação de trabalho historicamente improdutivo em trabalho produtivo, que valoriza o capital. Caso a medida seja operacionalizada estaremos diante de um repasse do fundo público para iniciativa privada, com sérios impactos para o OBP.

É preciso destacar que, de acordo Lopez e Guedes (2019), entre 1994 a 2017 temos um crescimento ininterrupto do trabalho temporário no Estado, na esfera federal ele chega a 5% no ano de 2017. Na esfera municipal chega a 8% em 2017.  Estima-se que na área da saúde a proporção de contratos temporários gira em torno de 30% e na educação em torno de 40 % em alguns Estados e Municípios. Essa tendência, de acordo com o artigo 4, irá se acirrar através do contrato por tempo determinado, atingindo cifras que comprometem a existência do RJU para as carreiras que não são consideradas típicas de estado. 

No âmbito da avaliação de desempenho, de acordo com o inciso 3- B do artigo 41, serão necessárias duas avaliações insatisfatórias consecutivas ou três intercaladas, no período de cinco anos, para que se identifique a necessidade de apurar a responsabilidade do servidor por seu desempenho, podendo acarretar a perda do cargo.  

É preciso ter nítido que os servidores públicos não são contra a avaliação de seu trabalho, contudo, os critérios de avaliação não podem ser construídos por entes externos, que visam estabelecer critérios universais que desconsideram as particularidades dos serviços públicos. Como avaliar um servidor desconsiderando as condições objetivas do trabalho? Como avaliar o desempenho em conjunturas marcadas pela ausência de pessoal, políticas públicas e recursos institucionais para realização do trabalho? Nessa conjuntura parece nítido que a avaliação de desempenho irá intensificar o trabalho dos servidores regulamentados pelo RJU, fazendo com que um número reduzido de trabalhadores operacionalize uma demanda sempre crescente. 

Da mesma forma, em tempos de avanços ultraneoliberais e ultraconservadores a avaliação de desempenho, tal como proposta, parece ser uma estrutura politicamente perigosa. Servirá para perseguição de servidores, ameaçando a organização sindical e a luta por melhores condições de trabalho. 

Como podemos ver, embora tenha se retirado o fim da estabilidade no relatório aprovado pela CESP na Câmara dos Deputados não há muito o que comemorar. As principais tendências remetem ao fim da estabilidade por meio da inserção massiva de contratos temporários de longa duração que comprometem a recomposição dos quadros por meio do RJU; contratação de força de trabalho por meio de grandes corporações organizadoras e executoras de políticas sociais; avaliação de desempenho desconectada da realidade institucional que viabiliza a quebra da estabilidade prevista no RJU. Sendo o trabalho dos servidores direcionado à prestação de serviços que atendem as demandas da sociedade, essas medidas reforçam a lógica do valor no Estado e comprometem a natureza pública do trabalho desenvolvido pelos funcionários públicos. 

Devemos lembrar que a estabilidade não é um direito do servidor, ela é um direito de toda a sociedade. A estabilidade não é um privilégio, é uma condição para que o trabalho não seja subjugado aos imperativos da administração e incide diretamente na qualidade dos serviços prestados à população. 

Os ataques trabalhistas também se manifestam na possibilidade de redução da jornada de trabalho e dos salários em 25%, medida essa que compromete a reprodução material dos servidores públicos e impacta diretamente nas respostas ofertadas à população. As atuais tentativas de furar o Teto dos Gastos se manifestam como uma ameaça a curto prazo para os servidores públicos, que poderão ser penalizados com acionamento de gatilhos que permitem a redução das jornadas e dos salários. 

Nesta direção, a contrarreforma administrativa aprofunda tendências que já estão colocadas para o setor público e revelam uma nova escalada sobre o trabalho na esfera pública. Pretende-se, portanto, criar um novo modus operandi para o trabalho, cujo principal foco situa-se no conjunto de servidores que operacionalizam os serviços e políticas públicas essenciais para o conjunto da classe trabalhadora. Em nossa compreensão, as mudanças propostas reforçam as tendências gerenciais em detrimento da gestão democrática. Aprofundam a punção do OBP através da expropriação de direitos trabalhistas, privatização das políticas sociais e acirramento da precarização do trabalho na esfera pública.

Indicações conclusivas

Como podemos ver, o dia do funcionalismo público precisa ser, mais do nunca, um dia de luta contra as alterações trabalhistas em curso no Estado. O aprofundamento da crise capitalista no Brasil vem requerendo maiores parcelas do fundo público, fato esse que altera as relações e os processos de trabalho na esfera pública. A PEC 32 expressa, por um lado, um avanço sobre o trabalho improdutivo, remunerado com renda, e, por outro, a tendência de generalização do trabalho produtivo, que valoriza o capital. Esse processo será operacionalizado com a passagem de parte do OBP para grandes corporações e com a generalização dos contratos por prazo determinado para carreiras que não são consideradas como típicas de estado. Essas medidas acarretarão numa profunda redução das contratações por meio do RJU e a consolidação de um Estado de terceiros, operacionalizado por terceiros. 

A proposta em curso aprofunda a precarização do trabalho e descaracteriza a natureza pública dos serviços sociais ofertados pelo Estado. Caso venha a ser aprovada compromete a existência do funcionalismo público tal como conhecemos. É preciso ter nítido que as mudanças não afetam apenas as formas de contratação, elas alteram a lógica do processo de trabalho na esfera pública. Seus impactos serão sentidos com a intensificação do trabalho de servidores regidos pelo RJU; pela centralidade da lógica do valor em serviços historicamente improdutivos e pela redução da autonomia dos funcionários públicos face aos imperativos da gestão. 

Como podemos ver a resistência à PEC 32 não é uma luta corporativa, ela remete à valorização dos princípios democráticos e a qualidade dos serviços ofertados à população. A conjuntura tem mostrado uma precipitação da esquerda no âmbito das eleições de 2022, acreditamos que nossa pauta prioritária, nesse momento, é barrar a contrarreforma administrativa como condição de existência da esfera pública. 

*Gênesis de Oliveira Pereira é Doutor em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Professor Adjunto na Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

NOTAS
[1] As vantagens se dividem em adicionais de vencimentos ou função e gratificações de serviços ou pessoais.
[2] Processo similar acontece com a taxação sobre os salários através do imposto retido na fonte que, apesar de aparecer como gasto, retorna como receita.
[3] Frente a ausência de dados sobre a terceirização o número de trabalhadores informais é um parâmetro para compreender o crescimento da precarização. Estima-se que a maior parte desses vínculos são oriundos de terceirizações.
[4] A EC congela não só o Orçamento das Políticas Sociais, mas, também, o gasto com a folha de pagamento da União. Impulsiona o crescimento da terceirização e a intensificação da exploração dos trabalhadores já concursados.
[5] O congelamento é acionado quando: 1) as despesas primárias obrigatórias passarem, na União, dos 95% das despesas primária geral. Nos estados e munícipios quando as despesas correntes atingirem 95% das receitas correntes; 2) quando decretado estado de calamidade; 3) quando aprovada a lei complementar de sustentabilidade da dívida, que prevê novas vedações de gastos.
[6] Carreira típica de estado; vínculo por prazo indeterminado; vínculo por prazo determinado (temporário) e cargo de liderança. A estabilidade estaria restrita as carreiras típicas de Estado.
REFERÊNCIAS

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (continua), 2019.

CASALECCHI, Alessandro Ribeiro de Carvalho. Retrato das despesas de pessoal no serviço público federal civil. Parte 1. In: Estudo Especial, n. 11. Instituto Fiscal Independente, Senado Federal, Brasília, 2019. Disponível em: Acesso: 12 out. 2021.

LOPEZ, Felix; GUEDES, Erivelton. Três décadas de evolução do funcionalismo público no Brasil (1986-2017): Atlas do Estado brasileiro, Bsb, IPEA, nota técnica, versão 2, 2019.

PEREIRA, G.O. Ataques aos Servidores Públicos sob o covid-19: orçamento de pessoal em questão. In: Moreira, Elaine et al. Em tempos de pandemia: propostas para a defesa da vida e de direitos sociais. Rio de Janeiro: UFRJ, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Escola de Serviço Social. Disponível em: http://ess.ufrj.br/images/Noticias/Divulgacao/EmTemposdePandemia/EM-TEMPOS-DE-PANDEMIA.pdf. Acesso em: 10 out. 2021.

____________. Fundo público e precarização do trabalho: as disputas em torno do orçamento bruto de pessoal. In: Mauriel, A.P. et al. Crise, ultraneoliberalismo e desestruturação de direitos. Uberlândia: Navegando Publicações, 2020. Disponível em: https://56e818b2-2c0c-44d1-8359-cc162f8a5934.filesusr.com/ugd/35e7c6_dfef2063e99441a49e3d6d14b3887aa4.pdf Acesso em: 10 out. 2021.