Semana passada a Bancada da Bíblia conseguiu aprovação do congresso para anistia de dívidas com o Estado que chegavam a 1 bilhão de reais. Após veto presidencial, manteve-se ainda o perdão das dívidas com a previdência social. Diferente do que se diz, o conservadorismo não é uma cortina de fumaça do governo Bolsonaro, mas sim um projeto político e econômico. Uma de suas principais representantes é uma das ministras mais poderosas do governo. Damares Alves é líder de uma marcha, cuja linha de frente da resistência é o feminismo.
“Deus, pátria e família” é o tripé simbólico com que o empresariado pentecostal brasileiro sacramenta o governo Bolsonaro. Frequentemente, esse setor é visto como o principal criador da chamada “cortina de fumaça”, arsenal ideológico que se serviria para esconder os planos econômicos “reais” das frações ultraliberais do governo. Um raciocínio, com alguma audiência de esquerda, que vai se manifestando, cada vez mais nitidamente, como um esforço de inversão da realidade.
Damares Alves não é uma “psicótica da goiabeira”, mas é o que podemos chamar de burocrata profissional do mercado da fé: desde os anos 90, ela trabalha nos bastidores do Congresso Nacional como assessora parlamentar da Bancada da Bíblia, junto ao Deputado Magno Malta. A ministra pastora foi se aperfeiçoando como lobista da agenda ultraconservadora, em especial, contra o que fundamentalistas cristãos batizaram de “ideologia de gênero”.
Desde o dia em que anunciou que os “novos” valores da pátria regeriam meninas vestindo rosa e meninos vestindo azul, muitas “boiadas” de sua autoria passaram: ganharam espaço e força política os projetos do “escola sem partido”, para bloquear a educação sexual e de gênero nas escolas; foi pavimentado um caminho de propostas que defendem a educação domiciliar; o seu ministério lançou uma campanha para abstinência sexual de jovens como política de controle de gravidez precoce; e, não menos importante, ela incidiu violentamente contra as possibilidades legais das mulheres terem garantidos seus direitos reprodutivos.
O caso recente da menina de 10 anos estuprada no Espírito Santo que engravidou é uma expressão de como a ministra vem monitorando casos de estupro de crianças que resultam em gravidez para, em ato escandaloso de aparelhamento religioso do Estado (em tese laico), dissuadir essas meninas e suas famílias da interrupção da gestação, como autoriza a lei atual.
O episódio mostra a saga violenta a que estão submetidas muitas mulheres condenadas por nascer no Brasil. A disputa foi dada: primeiro, a negativa ilegal do hospital no Espírito Santo realizar o procedimento e a tentativa de sabotagem do procedimento por seitas fundamentalistas no Recife, depois, a resistência pública e consciente do movimento feminista pernambucano e dos profissionais da saúde pública que fincam o pé na linha de frente dos direitos da criança. O governo respondeu com a bizarra e ilegal portaria 2.282, de 27 de agosto, que determina o controle policial sobre os procedimentos para garantir o aborto seguro nos casos hoje autorizados por lei.
Meses antes, a ministra postou em suas redes um outro caso ocorrido em Sergipe, segundo ela, “acompanhado pelo Ministério”, no qual uma outra menina de 10 anos serviu como situação “exemplar”, prosseguindo com a gestação.
Nessa mesma linha, fortes indícios destacados por uma reportagem na Revista Piauí demonstram que a equipe do Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos mobilizou as autoridades da pequena cidade de São Mateus para influenciar na decisão da criança e sua avó. O Ministério Público investiga justamente como vazaram os dados da menina para que Sara Giromini (ex-assessora de Damares) divulgasse o nome da criança e do hospital para onde estava sendo levada depois da recusa de atendimento em Vitória.
Muito embora a ministra não tenha feito nada efetivamente para avançar no combate ao feminicídio que vitima uma mulher a cada duas horas no país (sendo as mulheres negras duas vezes mais assassinadas que as brancas), nem tenha feito qualquer medida (a não ser posts nas redes sociais) para responder ao crescimento da violência contra as mulheres durante a epidemia, nem tenha estruturado apoio às comunidades indígenas onde houve contágio por Covid-19, não é possível dizer que ela não utiliza o poder que detém em suas mãos.
Sua militância religiosa consegue cultivar reservas importantes de apoio e organização nas fileiras radicais do bolsonarismo entre as massas populares. Não à toa, ela é a ministra mais bem avaliada no governo e a figura mais cotada até agora para assumir o posto de candidata à vice-presidência na chapa de Bolsonaro em 2022.
O fundamentalismo organizado não tem nada a ver com a liberdade de fé, que deve ser respeitada e defendida em qualquer circunstância. Muito diferente disso, o objetivo desse empresariado falsamente cristão é a dominação do Estado e o veto a qualquer possibilidade efetiva de liberdade religiosa e cultural. Lembremos da frase de Damares na famigerada reunião interministerial divulgada em maio: “os nossos quilombos estão crescendo, os meninos estão nascendo nos quilombos e seus valores estão lá…”.
Como uma boa mãe servil de “vítimas pátrias”, seu projeto de salvação sempre envolveu os quilombolas, os indígenas e as mulheres. Ela é experiente em saber que o controle social, racial, territorial e ambiental no Brasil se dá a partir do agenciamento de operações de base em comunidades tradicionais. A implantação de equipes missionárias que visam evangelizar povos são dirigidas por igrejas pentecostais, como a Igreja Quadrangular, em que Damares é pastora, seguindo a linhagem de sua família.
A ministra não é um chicago boy, um empresário da Faria Lima, ou um herdeiro do golpe de 64, mas é, provavelmente, a representação social mais concreta e próxima aos setores sociais continuamente atacados por este projeto de recolonização no Brasil, seja nos grandes centros urbanos, seja no interior do país, onde o conflito mortal entre a grande propriedade e os povos tradicionais vai sendo incrementado a galopes.
Representantes como Damares vem existindo e intervindo nos lugares de grandes conflitos. As igrejas pentecostais surgidas a partir dos anos 90 nas grandes periferias metropolitanas e no interior do país se tornaram personagens novos nos conflitos que se abriam. Apoio, sociabilidade, disciplina, são vários os papéis do poder territorial exercido pelas igrejas nesse período, incluindo este de que estamos falando aqui, que nacionalizou e internacionalizou o seu poder, altamente organizado e profissional, vendeu muitos sonhos de prosperidade e também ganhou muitos votos.
A agenda ultraconservadora é uma ressonância importante do racismo estrutural, da LGBTfobia e da violência de Estado em geral, porque busca gerir as desigualdades conformadas no neoliberalismo. Damares advoga por um controle social sofisticado, que funcione nas entranhas do cotidiano dos excluídos em geral. A cultuada “defesa da família” busca monitorar os corpos das mulheres e meninas porque são elas que respondem pela sobrevivência das comunidades cada vez mais excluídas nesse contexto de perda do direito à vida.
A arma de Damares é justamente conter, pelo medo da diferença, potenciais revoltas pela omissão do Estado em termos de proteção social. Por isso, a bandeira do feminismo que carrega a diversidade das lutas e resistências, o feminismo intransigente, que não “vende” posições no jogo institucional, que não perdoa a bilionária dívida das igrejas, seguirá sendo o pior de seus inimigos. É por isso que o movimento das mulheres, na sua diversidade, é linha de frente na resistência contra a extrema-direita, no Brasil e no mundo.
*Publicado originalmente na coluna da Bancada Feminista no Mídia Ninja
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