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Seis notas sobre a nova conjuntura e um problema

O ponto de partida de uma interpretação honesta da situação brasileira é que a maioria da esquerda, inclusive as forças políticas mais influentes, vem subestimando Bolsonaro

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

1.

O ponto de partida de uma interpretação honesta da situação brasileira é que a maioria da esquerda, inclusive as forças políticas mais influentes, vem subestimando Bolsonaro, uns mais que outros, pelo menos, desde 2017. Explicar este desdém é complicado. A resposta simples, mas insuficiente, é que a esquerda moderada subestimou Bolsonaro porque compreender o apelo do discurso da extrema-direita, depois de mais de treze anos no poder, exigiria uma profunda revisão autocrítica. Há um grão de verdade aqui. Afinal, alguma coisa muito errada deve ter sido feita. Mas o problema não é concluir que Bolsonaro arrastou, por variadas razões a maioria da classe média, o desafio é descobrir porque a maioria da classe trabalhadora organizada, âncora social do PT desde os anos oitenta, não se mobilizou para defender o governo Dilma Rousseff. Essa ausência foi perturbadora. Em consequência, a esquerda moderada abraçou a tática quietista de apostar em derrotar Bolsonaro nas eleições de 2022, calculando que um inevitável desgaste seria acumulado.

2.

A resposta simples da esquerda super-revolucionária é que Bolsonaro foi, essencialmente, um acidente eleitoral: as forças da classe trabalhadora estariam intactas, e a derrubada de Bolsonaro está ainda por se construída, porque falta a disposição das direções mais influentes. Há também um grão de verdade aqui. Afinal é injustificável a posição de governadores de colaboração institucional como governo da extrema-direita. Mas diminui o significado reacionário do golpe parlamentar, e escamoteia sua confusão diante dele, e da ofensiva burguesa depois de dezembro de 2015. Em consequência, abraçaram a tática da ofensiva permanente, apostando em uma “ultrapassagem pela esquerda” das direções majoritárias, com a precipitação de uma situação pré-revolucionária. Resumo da ópera: ainda existe muita dificuldade em aceitar que estamos diante de um inimigo perigoso: uma força política neofascista com base social.

3.

A conjuntura mudou com a pandemia em março/abril. Desde o início ficou claro que as dificuldades seriam múltiplas e de todo o tipo. Não havia condições sequer de garantir máscaras. A previsão de que a pandemia assumiria a forma de uma calamidade humanitária era consensual. Mas, não fosse o desafio grande o bastante, os posicionamentos de Bolsonaro transformaram a crise sanitária em crise política. O governo desprezou a gravidade da pandemia; dois ministros da saúde foram defenestrados; uma fração da burguesia, a maioria da classe média, e os governadores dos Estados mais importantes romperam com a política de Brasília; e, finalmente, Bolsonaro debochou da necessidade de uma quarentena, mesmo que parcial, incorporou ao governo milhares de oficiais das Forças Armadas; iniciou um assalto da Polícia Federal, forçou a demissão de Sergio Moro, favoreceu mobilizações que defendiam um autogolpe.

4.

Quando a pandemia atingiu o país, a maioria da esquerda, moderada e radical, avaliou que seria um desafio enorme e sem precedentes impulsionar uma estratégia sanitária e política de redução de danos na escala necessária para conter uma contaminação tão acelerada. A parcela da população, economicamente, ativa com contratos se restringe a menos da metade: pouco mais de trinta milhões no setor privado, e doze milhões no funcionalismo público. Outros quarenta milhões não teriam sequer como sobreviver, sem apoio do Estado. A construção de uma de uma quarentena rigorosa não seria possível, porque a maioria burguesa era contra. A análise era que a combinação de uma calamidade humanitária e uma crise econômica deixaria o governo Bolsonaro fragilizado. Viriam centenas de milhares de mortes, dezenas de milhões de desempregados, crise social aguda e, portanto, uma oportunidade. Essa previsão se confirmou durante os quatro primeiros meses. Mas, no último mês, a conjuntura mudou, e Bolsonaro se recuperou. Há boas razões para pensar que seja uma oscilação temporária, efêmera, transitória. Há tendências e contratendências. Fatores que pressionam para uma direção, e outros que os neutralizam, parcialmente. A verdade é que ainda prevalece a incerteza.

5.

Muitos fatores incidiram na inversão de tendência da conjuntura: (a) a distribuição do auxílio emergencial de R$600,00 para 65 milhões, a mais volumosa e abrangente política pública de assistência da história; (b) um recuo de Bolsonaro da estratégia de autogolpe após a prisão do assessor Queiroz, a demissão de Weintraub, e um reposicionamento diante do STF face às investigações contra seus filhos, um deputado e outro senador, de gabinete do ódio, fakenews e de corrupção na rachadinha; (c) a renegociação do arco de alianças no Congresso Nacional incorporando a maior parte do Centrão na base do governo; (d) a repactuação com a burguesia da emergência de um orçamento para 2021 que mantenha o teto de gastos, de uma reforma administrativa que introduza o gatilho para reduzir os salários do funcionalismo, e uma reforma tributária que simplifique a arrecadação, mas não aumente a carga fiscal; (e) a impossibilidade da esquerda se apoiar em mobilizações de massas nas ruas em função da pandemia, ainda que tenham acontecido valentes lutas defensivas como o breque dos entregadores, a Renault de Curitiba, metroviárias de São Paulo, e a resistência à volta às aulas; (f) por último, a tendência de banalização da pandemia em uma parcela importante da base social e eleitoral de Bolsonaro.

6.

Entre todos estes fatores, a menos compreendida é a naturalização da pandemia, especialmente, entre os apoiadores de Bolsonaro. Acontece que eles correspondem a um terço da população, pelo menos. Trata-se de um problema. Um problema, em ciência, é uma questão por ser resolvida. Diferentes pesquisas identificaram que há uma forte correlação entre os não tem medo ou que temem menos o perigo da pandemia, e aqueles que apoiam o governo. Ele tem mais apoio entre homens que as mulheres, entre os mais velhos que entre os jovens, entre os menos escolarizados que entre os mais instruídos, e mais no sul que no nordeste. A banalização da pandemia traduz, grosso modo, a tendência a desresponsabilizar os governos pela calamidade sanitária, e repousa em muitos fatores, e parece difícil discernir o peso específico de cada um, mas podemos considerar que: (a) há muita confusão sobre o que é a doença, e desconfiança da informação científica; (b) há uma percepção de que é uma fatalidade que castiga com a morte os mais velhos e doentes; (c) há uma responsabilização das próprias vítimas, porque não seriam capazes de se cuidar; (d) há a pressão pela reativação da atividade econômica, muito mais intensa entre empresários de pequenos negócios e trabalhadores informais; (e) há uma fadiga da quarentena, depois de cinco meses, e a ansiedade pelo retorno de uma rotina de vida normal; (e) há uma percepção de que o auge da pandemia já passou e os riscos são aceitáveis.

Ainda que estes e outros fatores sejam considerados, o crescimento em parcelas da população do marasmo, apatia, indiferença e insensibilidade diante de uma tragédia humana tão devastadora como a pandemia deve ser suficiente para nos provocar. Afinal, por quê? A banalização da morte não é normal. Mas a verdade é que a brutalização da vida não é uma surpresa no Brasil. Ela é uma rotina social e política. Ela repousa na desumanização dos mais pobres, dos negros, dos desvalidos, e tem raízes profundas que distinguem o Brasil: a escravidão e a desigualdade social e racial. Portanto, se sustenta em uma força ideológica. Há uma visão de mundo que sustenta a banalização da pandemia. Remetendo as formas econômicas da organização social contemporânea às características de uma natureza humana invariável – o homem como lobo do homem –, o reacionarismo brasileiro fundamenta a justificação do capitalismo na desigualdade natural. A rivalidade entre os homens e a disputa pela riqueza seriam um destino incontornável. Somos maus. Um impulso egoísta ou uma vocação preguiçosa, uma ambição insaciável ou uma avareza incorrigível definiriam a nossa condição. Eis o fatalismo: o individualismo seria, finalmente, a essência da natureza humana. E a organização política e social deveria se adequar à imperfeição humana. E resignar-se. Uma humanidade dominada pela mesquinhez, pela ferocidade, ou pelo medo precisaria de uma ordem política disciplinada, portanto, repressiva, que organizasse os limites de suas lutas internas como uma forma de “redução de danos”. Resumindo e sendo brutal: o direito ao enriquecimento seria a recompensa dos empreendedores, ou mais corajosos, ou mais capazes e seus herdeiros. A propriedade privada não seria a causa da desigualdade, mas uma conseqüência da desigualdade natural. É porque são muito variadas as habilidades e disposições que distinguem os homens que, segundo os defensores de uma natureza humana rígida e inflexível, existe a propriedade privada, e não o inverso. A diversidade entre os indivíduos, inata ou adquirida, seria o fundamento da desigualdade social. Em consequência, o capitalismo seria o horizonte histórico possível e o limite do desejável. Porque com o capitalismo, em princípio, qualquer um poderia disputar o direito ao enriquecimento.

O marxismo nunca afirmou que a condição humana seria a generosidade ou a solidariedade. Tampouco defendeu que seria impossível reconhecer as características de uma essência humana. O que distinguiu o marxismo de outras tendências igualitaristas foi a insistência na ideia de que a condição humana só poderia ser compreendida como um processo de evolução histórica das relações sociais. Relações sociais imersas em um processo de mudança. Um processo que deixa em aberto muitas possibilidades. A humanidade transformou a sua relação com a natureza, e transformou-se a si própria através do trabalho. Ao reconhecer que a natureza humana só poderia ser compreendida a partir das relações sociais, concordou que existem determinações que se alteram, e outras que permanecem mais ou menos constantes por um período histórico, que pode ser mais ou menos longo, até que estas também, evoluem. Dizer que a essência humana está condicionada pela forma das relações sociais dominantes significa reconhecer que, se estas favorecem a inveja e a boçalidade, então uma maioria dos seres humanos terão comportamentos gananciosos e brutos. Mas não quer dizer que essas ações respondam a impulsos inatos. Colaboração e conflito estiveram sempre presentes nas relações sociais, em graus variados, ao longo do processo de evolução. Não só somos seres sociais, somos uma das formas de vida mais sociais. Se não existisse a capacidade de colaboração não teríamos sobrevivido.

*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).

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Governo Bolsonaro