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No Brasil, multar a população durante ‘lockdown’ é crueldade

Travesti Socialista

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Travesti socialista que adora debates polêmicos, programação e encher o saco de quem discorda (sem gulags nem paredões pelo amor de Inanna). Faz debates sobre feminismo, diversidade de gênero, cultura e outros assuntos. Confira o canal no Youtube.

Diante da escalada absurda do número de casos da COVID-19 no Brasil, é fundamental que o governo faça o que já deveria ter feito há muito tempo: que institua a quarentena total, com apoio social à população mais pobre, testes em massa e políticas de controle e isolamento de pessoas infectadas. Frente a isso, surgiram vários projetos de ‘lockdown’, ou seja, de uma quarentena decretada pelo Estado, onde a restrição da circulação é feita com força de lei. O problema é que todos esses projetos preveem a aplicação de multas para pessoas comuns que circularem nas ruas. A aplicação de multas não seria um problema se estivéssemos na Suécia ou na Noruega, mas, no Brasil, a história é outra.

Tomo, como exemplo, o projeto de ‘lockdown’ da Fiocruz [1]. Tenho acordo com todas as medidas propostas para garantir um isolamento social, tudo realizado, é lógico, proporcionalmente e coerentemente à quantidade de pessoas infectadas de cada cidade. Nas cidades onde a contaminação está avançada, é fundamental que haja bloqueio de estradas, proibição do funcionamento de lojas e serviços que não sejam essenciais para a sobrevivência da população e o combate à pandemia, bem como que a população pobre receba subsídios para conseguir sobreviver e permanecer em casa.

Na verdade, quarentena total é pouco: o governo precisa urgentemente garantir a aplicação de testes em massa, com milhões de testes por mês, sem custos para a população.

Entretanto, na página 2, ao mencionar a “adoção de restrições à circulação de pessoas em prol da coletividade”, a proposta deixa uma ponta solta, uma vez que não diz explicitamente com quais medidas o governo deve garantir tal restrição. Numa entrevista ao ‘Boletim Corona’ da Fiocruz, o chefe de gabinete da Presidência da Fiocruz, Vacler Angel Fernanes, menciona que a restrição à circulação de pessoas deve ser garantida pela aplicação de ‘punições’. Fica implícito, portanto, que Fernandes propõe a aplicação de multas.

 

Os decretos de ‘lockdown’ no Brasil

 

Como é sabido, há algumas cidades no país onde o ‘lockdown’ foi estabelecido por decreto municipal ou estadual. Em todos os exemplos que verifiquei, para as pessoas que circularem nas ruas em determinados horários, se não tiverem justificativa adequada, são enquadradas nos artigos 267 e 268 do Código Penal, que preveem multa ou prisão. No Brasil, não têm ocorrido prisões, mas ocorreram, no mínimo, centenas de multas.

O Estado do Pará, por exemplo, até o dia 13 de maio, aplicou mais de 500 multas, que são de R$ 150,00 para cidadãos [2], como parte da política de ‘lockdown’.

Para a vasta maioria da população, R$ 150,00 é uma multa pesadíssima. Há uma fila enorme de pessoas na maioria das cidades para receberem um auxílio de apenas R$ 600,00. Muitas dessas pessoas saem às ruas, não por opção, mas porque precisam conseguir dinheiro para garantir seu sustento. Imagine uma delas ser obrigada a dar um quarto de seu auxílio por causa disso.

Na prática, essa medida significa multar moradores de rua, trabalhadoras do sexo, catadores de lixo reciclável, vendedoras ambulantes, etc, ou seja, grupos sociais que normalmente já são marginalizados e que não tem uma carteira de trabalho assinada, nem garantia de férias, muito menos uma poupança que possa garantir sua sobrevivência por alguns meses de quarentena.

 

O exemplo de Nova Iorque

 

Não podemos esquecer, principalmente, que, neste país, o racismo é um problema social muito grande, devido à herança histórica da escravidão dos povos negros e indígenas. Na prática, isso significa que são as pessoas negras nesse país que mais são alvo de repressão e criminalização por parte da polícia. É inevitável que a maioria das multas sejam aplicadas nesse setor da população.

Vejamos o exemplo do Estado de Nova Iorque, nos EUA, que decretou um ‘lockdown’ ainda mais rígido que os projetos sendo aplicados no Brasil, prevendo não apenas multas, mas também prisão. Naquele estado, 80% das multas e prisões foram aplicadas a pessoas negras ou de descendência latino-americanas [3]. Ao mesmo tempo, uma foto do Central Park mostra uma grande contradição: várias pessoas brancas sentadas ou deitadas na grama, conversando, fazendo piquenique ou tomando sol.

O racismo que existe em Nova Iorque também existe no Brasil, ainda que de maneira distinta. Por isso, absurdos como esse estão fadados a acontecer por aqui onde o ‘lockdown’ for decretado.

 

Quarentena total: dever do Estado, direto do povo

 

Não há como garantir, no Brasil, que as multas serão aplicadas de maneira justa, muito menos que as pessoas multadas terão condições de pagá-las. Também sabemos que os governos não estão garantindo que todas as pessoas que precisam recebam auxílio financeiro o suficiente para sobreviverem. Multar uma pessoa que apenas busca sua sobrevivência é uma tremenda crueldade. Devemos, obviamente, ser a favor das medidas apresentadas pela Fiocruz, mas sem a previsão de multas para cidadãos e cidadãs.

 

Notas

 

[1] https://informediario.com.br/2020/05/08/posicionamento-da-fundacao-oswaldo-cruz-fiocruz/ 

[2] https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2020/05/13/desde-domingo-para-ja-aplicou-501-multas-por-descumprimento-de-lockdown

[3] https://www.thesun.co.uk/news/11583144/new-york-coronavirus-lockdown-fines-black-hispanic/

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lockdown / quarentena