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BRASIL

Rio de Janeiro fora de controle: a urgência de ações de lockdown

Direção Regional da Resistência/PSOL, Rio de Janeiro/RJ
Tomaz Silva | Agência Brasil

Com seu sistema de saúde já colapsado, o Rio de Janeiro se encontra em um ponto em que a propagação dos casos de Covid-19 evolui aos saltos. Há um retrocesso evidente na adesão ao distanciamento social que se traduz em um viés de ascensão galopante no número de casos e óbitos, no espalhamento da contaminação comunitária por cada vez mais regiões e em uma notável interiorização da epidemia. Se nada for feito rapidamente, o ritmo atual de contágio pela doença permite projetar com segurança uma tragédia em um prazo cada vez mais curto.

É esse o cenário descrito pela Fiocruz, em relatório enviado ao Ministério Público em que recomenda a adoção de medidas mais rígidas de distanciamento social e ações de lockdown, no estado do Rio de Janeiro. Em um posicionamento fartamente apoiado na interpretação dos dados disponíveis, os pesquisadores sustentam que “frente ao agravamento do cenário da pandemia, com o gradativo aumento de circulação de pessoas nas últimas semanas, a não adoção de medidas imediatas de lockdown pode levar a um período prolongado de escassez de leitos e insumos, com sofrimento e morte para milhares de cidadãos e famílias do estado do Rio de Janeiro”. O alerta dos cientistas da instituição é que “caso não sejam tomadas medidas mais rígidas de distanciamento social no estado do Rio de Janeiro, especialistas projetam um agravamento da situação epidemiológica e de insuficiência de leitos no mês de maio de 2020, que pode se prolongar e levar a um número expressivo de mortes que poderiam ser evitadas”. Também a UFRJ enviou recomendações no mesmo sentido ao MP.

Não há outro meio, dado o esgotamento da disponibilidade de leitos de UTI, de minimizar a potencial escalada nas mortes que não parta do reconhecimento da urgência em se reduzir ao máximo, e no prazo mais breve possível, a circulação de pessoas no estado. Por isso, toda a esquerda fluminense deve se unir para exigir do governador Wilson Witzel a adoção de ações de lockdown, enquadrando-as em um programa emergencial que coloque em um patamar ainda mais alto a ampliação das iniciativas de renda mínima, de segurança alimentar e nutricional, de estabilidade nos empregos, de expansão emergencial da oferta de atendimento hospitalar e de garantia dos direitos democráticos da população.

A situação de momento no Rio de Janeiro testará qual a natureza da posição de Witzel. Desde o início da crise, o governador deslocou-se de vez à oposição a Bolsonaro, valendo-se de uma retórica em prol do combate à pandemia e de salvar vidas. O fato é que o distanciamento social tem sido, desde o início, bastante parcial, concentrado no desestímulo à circulação, ao passo em que inúmeros centros de produção e serviços nada essenciais seguiram sempre em pleno funcionamento. Sobretudo, a política de Witzel, acompanhando o padrão dos governadores de direita de oposição a Bolsonaro, jamais incorporou ações efetivas voltadas a viabilizar condições de quarentena para o povo pobre, com transferência de renda e expansão de serviços emergenciais nas favelas e bairros com menor oferta de serviços públicos.

A política de Witzel, acompanhando o padrão dos governadores de direita de oposição a Bolsonaro, jamais incorporou ações efetivas voltadas a viabilizar condições de quarentena para o povo pobre

É verdade que as medidas adotadas no Rio de Janeiro, ainda que parciais, mitigaram em um primeiro momento o espalhamento da doença. Mas, por serem frágeis e não estarem apoiadas em medidas sociais de peso proporcional à gravidade da crise, não conseguiram conter a curva de crescimento da doença e expandir emergencialmente o sistema de saúde, a fim de evitar o colapso. O viés de baixa nos índices de efetivo distanciamento social no mês de abril, se por um lado se explica pelo impacto da campanha negacionista do bolsonarismo, por outro também demonstra os limites da política do governo estadual, que fala em combater o vírus enquanto se orienta, na prática, em o fazer, na melhor das hipóteses, dentro de limites admissíveis para a preservação dos lucros.

O governador que gosta de “atirar na cabecinha” nunca quis salvar vidas, mas sim construir uma localização política de aparente razoabilidade em relação ao discurso genocida de Bolsonaro, ao mesmo tempo em que acena à preservação da maior estabilidade possível dos grandes negócios capitalistas no estado. É por isso que, agora, Witzel chega ao pior momento da pandemia no Rio cada vez mais pressionado pelo empresariado para relaxar as políticas de distanciamento – quando o momento exige rigorosamente o contrário.

Essa contradição no cerne da política de Witzel fica cada vez mais exposta. Reconhece, por meio de ofício ao Ministério Público, a situação de colapso do sistema de saúde do estado, o fracasso em assegurar um grau de isolamento social compatível com a contenção da difusão da doença e a necessidade de aprofundamento das medidas “para que seja decretado o lockdown –  isolamento total – no Estado do Rio de Janeiro”. Porém, no mesmo dia, o governo do estado, mediante o seu secretário da Casa Civil, declara que não adotará medidas adicionais, sendo as atuais suficientes para a contenção da pandemia. O governador busca, assim, ganhar tempo, evitando adotar por tempo indeterminado as medidas por ele mesmo especificadas no documento enviado ao MP-RJ, e transferindo às prefeituras a responsabilidade de uma decisão por maior rigidez no distanciamento social. O município de Niterói foi o primeiro a aprovar, de imediato, a entrada em lockdown, mas as condições para que as necessárias medidas dessa natureza prevaleçam no estado exigem a iniciativa inescapável do governador. Apesar do conflito com Bolsonaro, Witzel pode, agora, pela sua omissão, ser o responsável por uma tragédia de proporções inadmissíveis, no Rio de Janeiro. É preciso polemizar, portanto, sobre o que é preciso fazer imediatamente a fim de minimizar o sofrimento do povo fluminense.

A primeira e mais urgente demanda é construir as condições para que um rígido distanciamento social se efetive o mais rápido possível

A primeira e mais urgente demanda é construir as condições para que um rígido distanciamento social se efetive o mais rápido possível, a fim de achatar a curva de contágio e diminuir a pressão da demanda por atendimento hospitalar. Nenhuma indústria ou serviço que não seja diretamente vinculado ao combate à pandemia pode funcionar no Rio e toda a circulação de pessoas, excetuando aquela relacionada efetivamente aos serviços essenciais, deve ser suspensa.

As necessárias ações de lockdown devem estar genuinamente orientadas segundo o propósito de salvar vidas. Isso pressupõe a ampliação imediata e urgente das políticas de renda mínima, uma vez que uma maior severidade na restrição de circulação eleva essa questão a um patamar ainda mais crucial do que já estava colocado.

Defendemos, nesse sentido, a criação de uma complementação da renda básica aprovada em âmbito federal, a ser implementada com urgência pelo governo estadual e tendo como uma das possíveis fontes de financiamento a execução da dívida ativa de bancos e grandes empresas. Na capital, o prefeito Crivella deve pagar imediatamente a renda básica carioca, já aprovada pela Câmara Municipal.

Enquanto informais, autônomos e desempregados devem ser o foco desse tipo de política de transferência de renda, servidores e trabalhadores formais devem ter seus salários e estabilidade no emprego garantidos. É algo que vai no sentido oposto do recente anúncio pelo governo Witzel de corte nos benefícios do funcionalismo estadual.

A restrição à circulação demanda, ainda, um conjunto de ações que, para além da renda, aportem condições efetivas de dignidade, sobretudo voltadas às favelas, bairros e municípios de maior precariedade de serviços públicos. É preciso um programa de segurança alimentar e nutricional, em que o governo se responsabilize diretamente pelo combate à fome, via a distribuição de gêneros alimentícios e/ou de refeições, priorizando os derivados da agricultura familiar, da reforma agrária e comunidades indígenas e quilombolas. O acesso a condições básicas de higiene igualmente é condição elementar para o distanciamento em comunidades de prevalência de residências em que coabitam muitas pessoas em poucos cômodos. Toda essa intervenção social também exige uma mudança drástica de curso em relação ao que vem implementando Witzel – mais preocupado em acelerar a privatização da CEDAE que em levar água tratada potável às comunidades.

O enrijecimento das medidas de isolamento implica, ainda, em redobrar os esforços para a expansão emergencial da oferta de leitos, sobretudo os de UTI equipados com ventiladores mecânicos. Cabe lembrar que, dos quatro hospitais de campanha prometidos por Witzel, apenas um (no Leblon) está em funcionamento, com a metade de sua capacidade em leitos disponível. Se isso não fosse grave por si só, é revoltante saber que parte desse atraso corresponde a fraudes na contratação de respiradores, o que ensejou a exoneração e depois prisão do ex-subsecretário-executivo de saúde, Gabriell Neves.

Se efetivamente quiser salvar vidas, Witzel precisará colocar em prática as seguintes medidas: implementação da fila única de leitos da rede pública e privada, testagem em massa na população, uma política consistente de redução da subnotificação e a instalação de hospitais de campanha precisamente nas regiões mais carentes de estruturas permanentes. É inaceitável a falta de insumos e medicamentos para fins de sedação de pacientes entubados. Crivella deveria ser responsabilizado criminalmente pelas recentes ocorrências no Hospital Ronaldo Gazzola, referência para Covid-19, mesmo porque há relatos de profissionais de saúde que atestam a escassez desses fármacos no conjunto dos hospitais municipais. Finalmente, os e as profissionais de saúde devem ser contemplados urgentemente com o fornecimento de EPI’s e com testes recorrentes, para que exerçam suas funções com dignidade e sem adoecer, como é do interesse do próprio funcionamento do sobrecarregado sistema de saúde.

O êxito de um lockdown para salvar vidas depende de uma disciplina coletiva que é o oposto do que se obtém com a coerção pura e simples, que degeneraria em autoritarismo

E por serem urgentes as ações de lockdown, elas pressupõem, ainda, um conjunto de garantias democráticas. Rechaçamos, desde já, qualquer medida que indique que a necessidade de maior rigidez em evitar a circulação de pessoas possa significar qualquer coisa parecida com uma militarização da quarentena. O êxito de um lockdown para salvar vidas depende de uma disciplina coletiva que é o oposto do que se obtém com a coerção pura e simples, que degeneraria em autoritarismo a correta adoção de medidas de emergência diante da gravidade da crise sanitária.

A questão fundamental que se expressa na dificuldade em manter níveis aceitáveis de distanciamento corresponde à contradição entre necessidade de parar para salvar vidas e a busca incessante por lucros. É superficial, nesse sentido, reduzir tal conflito social a um conflito entre indivíduos. Qualquer eventual medida punitiva deve, portanto, ser dirigida às grandes empresas que eventualmente insistam em manter atividades não essenciais em funcionamento ou que ameacem demitir seus trabalhadores.

A ignorância deve ser combatida com instrução e orientação nítida. O maior obstáculo para o distanciamento social, tal como demonstra a pressão empresarial sobre Witzel, é o grande capital. Sobre ele, portanto, devem repousar eventuais mecanismos coercitivos para a garantia do lockdown. Por isso, nenhuma força de segurança pode receber qualquer atribuição, ainda que provisoriamente, que não aquelas já definidas em lei. Rejeitamos, nesse mesmo sentido, da parte de  Crivella, na capital, as ações anunciadas de forma compartimentada sobre bairros da zona oeste, exclusivamente dedicadas à repressão individual, sem qualquer medida séria que estruture de forma minimamente consequente a luta por salvar vidas.

O Rio está às vésperas de uma enorme tragédia, se a política do governo estadual seguir no seu atual curso de mitigação cada vez mais parcial da crise. Propomos, portanto, ao PSOL e a toda a esquerda fluminense somar forças para exigir decididamente que Witzel acate as orientações por medidas mais rígidas de distanciamento social e ações de lockdown, combinadas com redobrar as garantias sociais e democráticas para enfrentamento à crise. Com o fim de minimizar a dor e o sofrimento de nosso povo, o momento pede que a esquerda se una para colocar à prova a retórica do governador, apresentando-se como alternativa política independente e sem amarras com as mesquinhas pressões empresariais.

 

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