Pular para o conteúdo
Colunas

“Essa política humilha os homens e mulheres que necessitam dela, assim como humilha trabalhadores que estão na tal linha de frente”, denuncia assistente social

Bianca, Assistente Social atuante na saúde, no Cras e militante da resistência coloca na roda o cenário não só de seu trabalho como de outras colegas que estão enfrentando em regiões periféricas. Confira:

Relatos da linha de frente

Esse espaço se propõe a receber relatos das trabalhadoras e trabalhadores dos serviços essenciais. Devemos ouví-los, aprender e lutar com eles. Essa iniciativa se inspira no espaço aberto pela nova Revista Marxista estadunidense Spectre, que, sob a coordenação de Tithi Bhattacharya, tem recebido uma série de relatos em língua inglesa dos trabalhadores do cuidado de todo o mundo, chamada Dispatches from the Frontlines of Care. Pretendemos nos somar à iniciativa de Bhattacharya, mas também contribuir para que a sociedade brasileira possa ouvir e compartilhar esse momento de crise tão profunda com aquelas e aqueles que estão todos os dias se expondo para garantir nossa sobrevivência. Se você trabalha na linha de frente e quer compartilhar seu cotidiano para que essa história seja conhecida, envie um e-mail para [email protected]. Os relatos enviados podem ser anônimos.

“Vou descrever algumas coisas que venho observando e vivendo nas últimas quatro semanas em meio a pandemia da covid-19 e o aprofundamento da crise econômica. O que tenho  visto é que, nesse contexto, os mais atingidos são  os trabalhadores homens e mulheres das comunidades e favelas.

Logo nos primeiros dias ainda sem entender como poderíamos auxiliar nesse combate, nós assistentes sociais saímos para essa guerra de enfrentamento ao covid-19 , como alguns dizem estamos na linha de frente. 

Nos colocamos em risco nas primeiras ações ainda com aglomerações, sem informações corretas para passar. Porém, cheios de informativos, boletins, decretos e leis. E sem qualquer tipo de proteção porque os Equipamentos de Proteção Individual  (EPI’s) não tinham chegado.

O Auxílio Emergencial é sancionado e neste momento começa todo tipo de dificuldade para os trabalhadores acessarem o benefício. Precisa de um celular ou computador, sem saber mexer no aplicativo, compreender uns oito critérios para concessão. E assim, cheio de dúvidas, homens e mulheres, desempregados (a) chegam aos equipamentos.

Como estamos na linha de frente, estudamos os vários decretos, a lei, o informativo e  buscamos auxiliar. Ligamos para as colegas que também são assistentes sociais e assim, sentamos ao lado dos usuários para explicar os critérios e orientar como proceder para fazer o pedido do auxílio emergencial.

Só que precisamos ser rápidas porque tem uma fila de pessoas para serem atendidas e o telefone não para de tocar. Por fim,  muitas vezes precisamos informar: ‘Olha você não vai conseguir o benefício, está fora do perfil porque não atualizou seu cadastro no prazo ou está com pendência no seu CPF que precisa regularizar. Vai até à Receita Federal, depois volta aqui pra ver como podemos auxiliar”.

É assim que têm sido dias de trabalho em meio ao caos. 

Sabemos que boa parcela dos nossos usuários necessitam desse dinheiro  que é muito pouco se for pensar nas necessidades básicas de uma pessoa: R$ 600,00 ou R$ 1.200,00 para as mulheres chefes de família. 

Elas recebiam o benefício Bolsa Família, porém complementam a renda como pescadoras, artesãs, catadoras de materiais recicláveis, vendedoras ambulantes, domésticas, cuidadoras de crianças ou idosas e todo tipo de trabalho para complementar a renda familiar. Agora em isolamento social só perguntam quando esse auxílio vai sair porque sua família tem fome, precisam levar para casa o pão de cada dia. 

Quando penso: será que o gestor das políticas públicas não conhece a população que vai acessar esse benefício e que no Brasil há 11,3 milhões de analfabetos? Que as pessoas que não sabem ler e escrever nesse país e também não sabem usar toda essa tecnologia?  Que para esses usuários da política de assistência social,  a necessidade de trabalhar para sobreviver os retirou da escola muito cedo? E que ter CPF regularizado é privilégio de poucos?  Conta no banco nem se fala já que o dinheiro do trabalho do dia vai todo no mercado vizinho e  para o pão de cada dia…. Essa política humilha os homens e mulheres que necessitam dela, assim como humilha aqueles trabalhadores que estão na tal linha de frente. É política de morte, de extermínio da classe trabalhadora empobrecida. 

Quando penso: será que o gestor das políticas públicas não conhece a população que vai acessar esse benefício e que no Brasil há 11,3 milhões de analfabetos? Que as pessoas que não sabem ler e escrever nesse país e também não sabem usar toda essa tecnologia?  Que para esses usuários da política de assistência social,  a necessidade de trabalhar para sobreviver os retirou da escola muito cedo? E que ter CPF regularizado é privilégio de poucos?  Conta no banco nem se fala já que o dinheiro do trabalho do dia vai todo no mercado vizinho e  para o pão de cada dia…. Essa política humilha os homens e mulheres que necessitam dela, assim como humilha aqueles trabalhadores que estão na tal linha de frente. É política de morte, de extermínio da classe trabalhadora empobrecida. 

São Gonçalo é  o segundo município mais populoso do estado, com uma população estimada em 2019 em 1.084.839 habitantes, não faz o isolamento social, no caminho de ida e volta ao trabalho vejo as ruas cheias, bares abertos, lojas em funcionamento e a população sem direcionamento por parte do poder público de como se prevenir. 

Podemos ainda não ter no município  o hospital cheio de casos de COVID-19, mas temos trabalhadores temerosos e se preparando para receber ainda muitos pacientes.

Porém, a vida continua e recebemos todos os pacientes com diversas enfermidades, ou um jovem atingidos por bala perdida, ou para qual ela será  direcionada.  A mãe e toda família chora a dor de ter perdido um filho, mas você profissional da linha de frente não tem tempo de orientar porque chegou outro caso para atender.

Nós mulheres que estamos nos serviços essenciais —  somos enfermeiras, técnicas em enfermagem, cozinheiras, faxineiras, psicólogas, assistentes sociais, médicas, atendentes. Em meio à crise da pandemia saímos para trabalhar e produzir, entretanto, voltamos para nossas casas para garantir a reprodução social e seguimos sobrecarregadas do trabalho doméstico e cuidado com os filhos. 

A guerra contra o tráfico continua, mas espera não estávamos falando de guerra à covid-19. Quando chega por uma porta o paciente de covid, na outra entra aquele atingido pela guerra ao tráfico…E sabe, se você olhar de perto ele tem cor, ele é negro. Seguimos na política de extermínio a classe trabalhadora das favelas.

Neste município temos o bairro Jardim Catarina que é considerado o maior loteamento da América Latina. O bairro recebeu este título devido ao grande número de domicílios sem políticas públicas de saúde e assistência social.

Atravesso a cidade pensando quando a covid-19 chegar lá, os trabalhadores precisam pensar como sobreviver ao vírus, à fome, ao tráfico, à milícia ou à  polícia. Me pergunto quem será o primeiro a tirar a vida de trabalhadores e trabalhadoras? E só me vem uma resposta na cabeça: o sistema capitalista”.

_

Em algumas palavras, o relato de Bianca escancara uma dura realidade que se acentuou ainda mais em tempos de coronavírus.

Nem todos estão no mesmo barco neste momento. Obviamente, o vírus pode matar qualquer pessoa. Mas é inegável que os vulneráveis e invisíveis às políticas públicas estão mais expostos a mais esse risco, já que o relato da assistente social exemplifica de forma clara a situação das periferias: 

“Os trabalhadores precisam pensar como sobreviver ao vírus, à fome, ao tráfico, à milícia ou à polícia”.

Dados do próprio Ministério da Saúde e pesquisas recentes revelam que pessoas em condições socioeconômicas precárias apresentam maior taxa de mortalidade. 

Um levantamento recente divulgado pela Agência Pública com base nestas pesquisas destaca que em duas semanas (11 a 26 de abril), o número de pessoas negras que morreram com covid-19 no Brasil foi 5 x maior do que as pessoas brancas.

Ou seja, fatores raciais, bem como a classe social e o acesso aos serviços básicos interferem totalmente em quem morre e quem sobrevive à Covid-19. Enquanto isso, assistentes sociais se desdobram o máximo para atender as pessoas em meio à jornadas estressantes e condições caóticas no ambiente trabalho.

Políticas públicas para quem?

 

 

Seguimos ouvindo quem encara tudo de frente. Clique aqui e saiba mais sobre a iniciativa Relatos da Linha de frente!

Equipe: Rhaysa Ruas, Tatianny Araújo, Carolina Freitas , Karine Afonseca e Bruna Martins.