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Porque Moro é mais perigoso até do que Bolsonaro

Pintura de René Magritte : Os amantes – 1928

Andar de cima

Acompanhamento sistemático da ação organizativa, política, social e ideológica das classes dominantes no Brasil, a partir de uma leitura marxista e gramsciana realizada no GTO, sob coordenação de Virgínia Fontes. Coluna organizada por Rejane Hoeveler.

Por Carlos Tautz*

 

À meia bomba desde que Sergio Moro foi instalado no Ministério da Justiça, a Lava Jato (LJ) ressuscitou na sexta-feira, 24 de abril, na plenitude de sua natureza político-midiática. Naquela data, o ex-juiz e chefe histórico da LJ abandonou o navio de Bolsonaro retomando aliados originais e colocou em marcha outra vez a sua estratégia de UDN do século 21, que ele opera na LJ desde 2014. Moro conectou sua renúncia ao timming da produção de notícias das Organizações Globo e hegemonizou a narrativa sobre o abandono do navio do Presidente. Ainda por cima, usou de sua prosódia sibilante para afirmar que o Presidente governa em causa própria e deu à sua renúncia ares de missão heróica.

Resultado: fixou na testa de Bolsonaro carimbo de traição da moralidade a la CBF, que orienta lavajatistas e bolsonaristas, e avançou algumas casas na campanha de 2022 contra seu principal adversário.

O roteiro da renúncia foi assim: Moro falou por uns 40 minutos, sem contestação, às 11 da manhã do dia 24. Recheou seu depoimento de graves acusações a Bolsonaro e fez sua versão imperar sozinha no noticiário amplamente hegemonizado pelos diversos veículos da Globo até às 17h daquele dia, quando um presidente, visivelmente choroso e defensivo também se pronunciou sem contestações.

Porém, desde a manhã os editores do Jornal Nacional (JN), o programa jornalístico de maior audiência da televisão brasileira, já caprichavam na edição que foi ao ar naquela noite, como desde 1969 reza o hábito da tradicional família brasileira. Ao pronunciar-se tão cedo, Moro deu à Globo tempo suficiente para confirmar ao longo do dia em todas as suas mídias a versão anti-Bolsonaro que seria cabalmente validada às 20 horas na estendida versão do JN – em geral, o JN tem de 40 a 50 minutos de duração. Naquela data, transmitiu mais de 1h30min para uns 40 milhões de espectadores.

As mensagens de presente e de futuro emitidas por Moro&Globo no JN foram claras:

  1. voltou o mítico herói da Lava-Jato – o mesmo que em um ano e quatro meses de Ministério da Justiça se omitiu quanto ao desaparecimento de Fabrício Queiroz, os assassinatos de Marielle Franco e do miliciano Adriano da Nóbrega e a gripezinha pandêmica; e
  2. o ex-juiz marcou um reencontro com seu eleitorado: “Independentemente de onde eu esteja (sic), eu sempre vou estar à disposição do País”.

O segundo vazamento de mensagens do Presidente da República

O JN pró-Moro foi épico. Sustentou a versão morista de forma inconteste e ousou abrir o programa em um formato pouco utilizado pelo rígido telejornalismo da Globo, ao recuperar imagens de Bolsonaro em 2018 prometendo carta branca ao ex-juiz no Ministério da Justiça. E, para não perder o hábito adquirido na Lava-Jato, publicou mensagem de Bolsonaro a Moro no WhatsApp sem autorização do ocupante do Palácio do Planalto. Ou seja: pela segunda vez em quatro anos, a dupla Moro&Globo vazou ilegalmente a comunicação de um Presidente da República.

Usar um poderoso meio de comunicação para constranger adversários e desrespeitar regras legais na disputa política, à base de apelos a um suposto combate à corrupção generalizada, é exatamente a receita que a Operação Mãos Limpas usou na Itália na década de 1990. Moro gostou tanto do exemplo que em 2004, 10 anos antes de iniciar a Lava-Jato, elogiou o método da Mani Pulite em artigo publicado na Revista de Estudos Jurídicos, do Conselho Nacional de Justiça.

Sua renúncia foi, assim, articulada e planejada para alcançar o máximo de repercussão tanto  dentro quanto fora do Brasil.

Internamente, o ex-Ministro recuou suas bases e acumulou forças para 2022, atacando Bolsonaro (“O mentiroso não sou eu”) na revista Veja, outro prócer do ecossistema midiático pró-Moro. E, no flanco externo, seus aliados não negaram fogo. No dia 25, a correspondente da BBC Brasil em Washington publicou entrevista com Drago Kos, chefe do grupo de trabalho anticorrupção da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), em que o executivo ameaçou: “O Brasil vai ter que explicar o que está acontecendo”, referindo-se à renúncia do ex-Ministro.

Kos fará em junho conferência online para acompanhar o caso do Brasil, depois de ter passado duas semanas em 2019 no País para avaliar o desempenho brasileiro no combate à corrupção. Este aval é uma das pré-condições para o Brasil aderir ao grande aparelho privado de hegemonia que é a OCDE, totalmente orientado pelos EUA. Mas,  no dia 30 passado, outro míssil da OCDE já atingiu Bolsonaro: vazou em Genebra um relatório com críticas às políticas do governo brasileiro nas áreas de combate à corrupção e proteção à Amazônia.

Isso tudo não é pouco e requer muita atenção. Afinal, as duas maiores aspirações do Itamaraty bolsonarista são as adesões do Brasil à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e à OCDE – ambas controladas pelos EUA.

Ameaça à integridade do território brasileiro

Comparando as relações de classe que sustentam Bolsonaro e Moro, vê-se que o Presidente representa a ascensão de um amplo e difuso consórcio de golpistas de ocasião sem projeto definido misturados aos baixos cleros da política e dos negócios de varejo, apoiados por massas de abobados portadores dos mais abjetos valores morais e religiosos. E, claro, tudo sob o suporte tanto individual quanto coletivo das Forças Armadas tolerantes com as milícias mafiosas vinculadas à família do Presidente.

No cenário internacional, Bolsonaro não demonstrou até agora qualquer ligação orgânica com governos estrangeiros nem com movimentos internacionais consolidados, como aquele com que o publicista estadunidense Steve Bannon tentou seduzir Trump, Bolsonaro, Le Pen, Salvini et caterva. Nada há de articulação consequente entre essa gente para além de ridículos espasmos verbais de senso comum a respeito de qualquer coisa.

Mesmo a aproximação atávica do Brasil aos EUA se deve à índole submissa e à bajulação asquerosa de Bolsonaro por Trump. Para se eleger, Bolsonaro apenas surfou na onda internacional da direita e da extrema-direita, em venceu à custa da coleta ilegal de dados online. Tratados com os mais avançados programas de inteligência artificial, a tradução dessas informações em estratégia de intervenção políto-eleitoral foi utilizada na conquista sentimental do eleitorado através de propostas de moralidade tacanha aliadas ao pavor que uma certa classe média global de qualquer proposta minimamente mudancista.

A geopolítica para entender o perigo

Moro é de outra qualidade. E para entender em toda a sua extensão o perigo que ele representa para o Brasil é necessário partir da chave conceitual da geopolítica, disciplina que, em resumo, orienta o estudo dos Estados assentados em largas  porções de territórios – como no caso brasileiro.

Os comprovados vínculos de reiteirada submissão, seus e de seus comandados na LJ, ao Departamento de Justiça, órgão subordinado à Casa Branca e que, nos EUA, tem funções semelhantes às do Ministério Público Federal no Brasil, colocam sobre Moro enorme desconfiança. Ele aparenta ser uma espécie de Cavalo de Tróia dos interesses estadunidenses. O grande problema é que esse Cavalo de Tróia tem reais chances de chegar à Presidência da República no Brasil, seja em 2022 ou depois, porque o ex-juiz tem pouca idade (47 anos), o que lhe permite disputar várias eleições.

Eleger Moro teria importância geopolítica sem igual para os EUA, que sempre se sentiram em alguma medida ameaçados pela simples existência na América do Sul (o primeiro círculo da sua hegemonia global) de um País como o Brasil: extenso e unificado territorialmente, com uma população de centenas de milhões de habitantes que falam a mesma língua, possuem moeda única e que nunca enfrentaram separatismos nacionais que efetivamente ameaçassem a sua unidade territorial. Tudo reunido em um País que possui em enorme escala elementos da natureza (água doce, diversidade biológica, insolação, petróleo, minerais etc) indispensáveis à reprodução do capital em forma acelerada e, a rigor, indispensável até à reprodução da própria espécie humana.

Em outra palavras. Mais do que ter apoiar um governo títere, seria muito mais estruturante para os EUA escolher um Presidente do Brasil que compartilha de de seus valores e tem a capacidade de articular a seu favor amplos setores da população brasileira, de fração majoritária da burguesia que se hospeda por aqui, do ecossistema de comunicação historicamente anti-brasileiro e de Forças Armadas cujas elites há décadas se associam de forma subserviente à lógica global de Washington.

Nesse ambiente, tudo passa a ser possível. Inclusive, fracionar o território Brasileiro ou, pelo menos, ter uma presença política e militar institucionais muito mais intensa e extensa dentro desse território (como um enclave a la Guantánamo). Que  ninguém se espante, mas os exemplos da Coréia e do Iraque mostram que esta se  coloca para os EUA como opção real.

E, para o Brasil, como enorme risco à integridade de seu território e à soberania nacional.

Da Operação Brother Sam à entrega da base em Alcântara

A rigor, ameaça desse tipo e iminência já ocorreu. Em 1964, o então governador de Minas Gerais e dono do falecido Banco Nacional tramou para derrubar o Presidente constitucional João Goulart. Magalhães Pinto desejava a guerra civil para dividir o Brasil. Seu plano, que não deu certo, era declarar Minas um “estado beligerante” e receber apoio logístico e militar dos 4 mil fuzileiros navais dos EUA que estavam na costa do Brasil, prontos para invadir o país com apoio da submissa e traidora elite das Forças Armadas brasileiras. O plano todo ficou conhecido como Operação Brother Sam e  está registrado no Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas.

Agora, pelo menos outros dois casos são exemplares de avanços concretos dos EUA em suas intenções de afincar-se no território brasileiro. Bolsonaro apoiou e apoia um e outro, mas ainda não demonstrou capacidade de liderar nenhum dos dois processos. Ambos encontram-se sob condução da elite militar representada em seu governo, que também não os levou a termo, apesar da longa história de submissão gostosamente voluntária da alta oficialidade brasileira em relação a seus pares nos EUA.

A primeira grande ameaça recente à unidade do território brasileiro teve seu ápice público em 2016 sob o golpista Michel Temer. Segundo a BBC Brasil, “tropas americanas foram convidadas pelo Exército brasileiro a participar de um exercício militar na tríplice fronteira amazônica entre Brasil, Peru e Colômbia em novembro deste ano. Segundo o Exército [brasileiro], a Operação América Unida terá dez dias de simulações militares comandadas a partir de base multinacional formada por tropas dos três países da fronteira e dos Estados Unidos”.

Registre-se: foi a primeira vez que tropas americanas pisaram, pelo menos oficialmente, a porção brasileira da bacia amazônica.

A possibilidade dessas tropas se assentarem em definitivo em um enclave dos EUA no território do Brasil está aberta, e parada no Congresso Nacional, desde que Bolsonaro retomou em março de 2019 um acordo para entregar a base aeroespacial de Alcântara (MA). A trama já foi tentada no governo de outro entreguista, o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, nos anos 1990, mas não foi adiante. A rigor, os EUA não querem, e nem precisam de, mais uma base aeroespacial.

O valor de Alcântara para Washington em verdade é militar e estratégico. Seria uma forma de os EUA manterem tropas no território da sua maior ameaça na América do Sul, além de ser, devido à posição geográfica em frente à África, uma forma de controlar todo o Atlântico sul e se aproximar estrategicamente do Golfo da Nigéria, onde estão enormes reservas de petróleo semelhantes ao pré-sal brasileiro.

Perigos desse tipo – perigos maiores até do que o risco de convulsão social que se vive sob Bolsonaro, porque irreversíveis – parecem fazer mais sentido em um possível governo Moro daqui a dois anos. Ele já desenvolveu ligações orgânicas com os EUA, o hegemon  global, e, internamente, possui aceitação superior até a Bolsonaro.

Enfeixado em apoios decorrentes do nihil obstat dos EUA, onde possui as ligações aqui demonstradas, além de internamente manter aliança permanente com as Organizações Globo e outras frações da burguesia, Moro seria uma força política capaz de organizar em torno de si tamanha coesão social que a meia-esquerda que nos representa não conseguiria sequer esboçar argumentos contrários.

Este é, no fundo, o problema que mais preocupa.

 

*Carlos Tautz é Editor do Córtex Político, doutorando em História na UFF e integrante do Grupo de Trabalho e Orientação.

**Este artigo reflete as opiniões do autor e não necessariamente as do Esquerda Online. Somos um portal aberto às polêmicas da esquerda socialista.