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BRASIL

O assassinato de Marielle Franco e a política de morte de Bolsonaro

Verônica Freitas, do Rio de Janeiro, RJ

As mortes de Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes completaram dois anos em 14 de março deste ano. São dias que se transformam em uma eternidade sem respostas, de um dos assassinatos políticos mais covardes da atualidade. Na despedida do ministro Sérgio Moro, no dia 24 de abril, ele afirmou que decidiu se retirar do governo devido à interferência na Polícia Federal pelo presidente Jair Bolsonaro. Em sua resposta ao até então aliado, o governante se queixou de que a instituição daria mais atenção ao caso de Marielle do que à agressão que sofreu durante a campanha eleitoral de 2018. Ora, por que a necessidade da comparação? Por que Bolsonaro respondeu ao ministro com este tema? Não deveria ser o presidente o primeiro defensor da investigação do assassinato político de uma representante eleita? Mais uma vez, Bolsonaro reafirma sua política de morte. No pronunciamento, reforçou uma lógica de que a vida de uma mulher negra e favelada não merece a comoção nacional, enquanto as relações de sua família com a milícia se tornam mais evidentes.

Por justiça a Marielle e Anderson, ocorreram protesto massivos por todo o mundo. Diversas figuras da indústria cultural, intelectuais e até mesmo o Papa mostraram sua solidariedade. Nossa companheira foi lembrada na nomeação de ocupações de terra, projetos educacionais, de cultura, de feminismo. Sua memória e tudo que ela representa enche de esperança a nossa geração. Marielle se tornou gigante! Com sua morte, ela encarnou a possibilidade de uma lógica diferente nos espaços de poder. Sua presença no parlamento, sendo a quinta mais votada no Rio de Janeiro na única eleição que disputou, foi uma resposta a uma política elitista, branca, machista e heteronormativa que domina a nossa institucionalidade. Esse lugar ser ocupado com tamanha força por alguém que representava a ação popular se revelou como uma afronta às elites.

E qual foi a motivação do assassinato? A pergunta continua sem resposta. Segue como uma lacuna cuja injustiça ecoa todos os dias. Ela se tornou uma luta de nosso tempo, e um símbolo daqueles que buscam a justiça social. Na tentativa de negar a importância do processo, a direita mais conservadora também mantém essa memória viva, pela estúpida e cúmplice rejeição desesperada que manifesta pelo caso.

São muitas as conjecturas de quem mandou matar Marielle e os motivos, mas duas coisas são certas: de um lado, a possibilidade cruelmente reafirmada de que as vidas negras podem ser ceifadas, como são cotidianamente nas favelas e periferias do Brasil; de outro, a íntima ligação da família de Bolsonaro e seus aliados com a milícia. Dessa forma, o caso atual, de afastamento do Moro, se tornou mais um capítulo das evidências de que esses atores do crime organizado são parceiros de primeira ordem do clã Bolsonaro.

A troca de comando da Polícia Federal no Rio dialoga diretamente com investigações em curso envolvendo a família de Bolsonaro.

A troca de comando da Polícia Federal no Rio dialoga diretamente com investigações em curso envolvendo a família de Bolsonaro. Segundo notícia veiculada pela mídia, um eixo de investigação em curso se referia ao envolvimento do senador Flavio Bolsonaro em empreendimentos imobiliários da milícia no Rio. Inclusive lucrando com elas. Segundo os dados do inquérito, o representante alcançava as quantias a partir da chamada “Rachadinha”. O dinheiro recolhido por assessores parlamentares seria repassado a Queiroz, um articulador do esquema, que confiscava em média 40% dos vencimentos dos servidores e repassava parte da quantia ao ex-capitão do Bope, Adriano da Nóbrega. Adriano era apontado como chefe do Escritório do Crime, uma milícia especializada em assassinatos por encomenda.

Considerado um dos chefes da milícia que atuava em Rio das Pedras, Adriano Nóbrega teve um pedido de prisão domiciliar em janeiro de 2019. No entanto, o ex-policial estava foragido e foi também assassinado, este ano. A sua morte envolveu a ação armada da polícia da Bahia, em Salvador, em 9 de fevereiro deste ano. Segundo seu advogado, ele temia um atentado contra sua vida como “queima de arquivo”. Vítima de sua própria lógica, fazia parte do esquema de assassinatos por encomenda conhecido como “Escritório do Crime” – o mesmo que foi responsável pela morte de Marielle e Anderson.

A intervenção na Polícia Federal por Bolsonaro também estaria relacionada com o desenvolvimento das investigações envolvendo outro filho do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro, agora do Republicanos – partido de Crivella e Edir Macedo. Ele seria responsável por um esquema de emissão de fake news em massa no país. A política de morte da família do governante, afinal, perpassa também por uma disputa das consciências, se baseando em uma rede de mentiras continuamente reformuladas.

Além dos casos investigados, que teriam motivado a intervenção na instituição e consequente afastamento de Sérgio Moro, o presidente também segue em outras frentes de sua política contra a vida. É o caso da ação realizada no dia 17 de abril, na qual determinou a revogação de três portarias do Comando Logístico do Exército, que criaram regras para o rastreamento de armas e munições. Os atos foram publicados em março de abril deste ano. A primeira portaria, publicada em 20 de março, criava o Sistema Nacional de Rastreamento de Produtos Controlados pelo Exército, para rastrear os Produtos Controlados pelo Exército, inclusive armas de fogo e explosivos. As portarias seguintes ampliavam as medidas da primeira, como o acréscimo que determinava que toda munição de órgão público deveria conter código de rastreabilidade gravado. Analistas afirmaram que a ação beneficiou diretamente a milícia do Rio de Janeiro, sabidamente envolvida com comércio e posse de armamentos.

Além disso, em todo o seu infeliz discurso, Bolsonaro não mencionou nada sobre o aprofundamento da crise do coronavírus. Em meio à pandemia global, o presidente nada teve a dizer sobre a doença que já matou milhares de brasileiros, e segue em ritmo crescente. Os sistemas de saúde dos estados estão chegando ao seu limite e a morte pelo vírus se torna cada vez mais próxima das famílias de norte a sul do país. Bolsonaro apresentou, em seu enfadonho pronunciamento, uma enorme defesa de sua própria família, enquanto não dá respostas como governante ao problema social sem precedentes que estamos vivendo.

A postura de Bolsonaro fala muito sobre as bases de seu governo, que aprofunda a lógica de nossas elites desde a colônia: o lucro de poucos, em troca do sacrifício da vida da maioria. No caso da pandemia, Bolsonaro executa uma política genocida ao negar a gravidade da doença, desestimulando as pessoas a cumprirem as medidas de isolamento. Em sua fala sobre a suposta resistência do povo brasileiro, que mergulha no esgoto e “não acontece nada”, o presidente expõe quem pretende sacrificar: justamente os setores mais precarizados da classe trabalhadora, que não têm acesso a direitos essenciais, como o saneamento básico.

Nesse sentido, apesar de diversos governadores se posicionarem a favor da quarentena, em oposição a Bolsonaro, ao não garantir os meios para que isso se efetive jogam para o colo das famílias a responsabilidade em arcar com os custos de não trabalhar, ou se expor à contaminação. Em um país de desempregados, informais e endividados, essa postura do “cada um por si” é perversa e igualmente assassina. Assim, apesar da conquista da renda emergencial, sabemos que R$ 600 mensais não são suficientes para viver, fora a dificuldade de acesso ao auxílio, sendo necessário uma ampliação urgente do direito. A continuidade de operações policiais nas favelas e periferias do país revela que vidas os governantes estão preocupados e quais não. É ilustrativo o Atlas da Violência de 2019, segundo o qual o Brasil contou com 180 homicídios por dia no último ano, dos quais 75% de pessoas negras.

A pandemia nos coloca diante de uma enorme contradição, pois o medo da morte imposto pela doença modificou os rumos do globo. Mas o que se evidencia é que é a morte descontrolada que se teme. Além da ação ativa assassina já mencionada, como operações policiais ou a persistência das milícias, a retirada de direitos é também uma escolha política que retira a vida de inúmeras pessoas todos os dias. É o caso das centenas de milhares de mortes todos os anos pela fome, cuja comoção social se mantém marginal.

Marielle vive em nós, nos nossos sonhos e no nosso grito.

Marielle vive em nós, nos nossos sonhos e no nosso grito. Ela nos ensina que a luta coletiva, que por tantos anos se dedicou, é cheia de beleza, alegria, afetos. Nesse momento de pandemia e por sua memória nos unimos em um clamor: a nossa vida deve estar acima do lucro. Seja ele de fontes criminosas, como a milícia do Rio de Janeiro, ou do capital privado, que ganha com a exploração extrema da população. No feminismo afirmamos que a luta pela vida é nossa, e não dos fundamentalistas antiaborto, pois é pelas nossas vidas que vamos às ruas todos os anos em busca de direitos. A virulência do Covid-19 e as demais políticas de morte de Bolsonaro e das elites do país dão novos sentido ao que é a nossa luta pela vida. Não podemos nos calar diante de um mundo que sacrifica a maioria da população, em benefício de uma minoria parasita. Por Marielle e todas e todos nós, nossa luta continua!