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MUNDO

Viver ou sobreviver? Salvar vidas ou salvar a economia?

Michael Roberts, Inglaterra.

Tradução: Leandro Paixão e Wilma Olmo Corrêa

Há, no momento, dois bilhões de pessoas em todo o mundo vivendo sob alguma forma de isolamento por conta da pandemia do coronavírus. Isso é um quarto da população mundial. A economia mundial nunca viu nada igual. Quase todas as previsões econômicas para o PIB mundial de 2020 indicam uma contração de 3 a 5%. Tão ruim, se não pior, do que na Grande Recessão de 2008/9.

De acordo com a OCDE, a produção, na maior parte das economias, vai cair em média 25% (OCDE) enquanto os isolamentos durarem. E os isolamentos vão afetar diretamente setores que abarcam um terço do PIB nas maiores economias. Para cada mês de contenção, haverá uma perda de dois pontos percentuais no crescimento do PIB anual.

O impacto inicial das medidas de contenção será sentido no mundo todo

Países selecionados, em % do PIB a preços constantes

Fonte: Relatórios Econômicos Anuais da OCDE; Banco de Dados de Comércio em Valor Agregado da OCDE; Estatísticas da Coréia do Sul; IBGE; e cálculos da OCDE..

Esta é uma forma monstruosa de provar a teoria do valor-trabalho de Marx, ou seja, que “Até uma criança sabe que se uma nação parasse de trabalhar, não direi por um ano, mas mesmo por poucas semanas, pereceria.” (Marx para Kugelmann, Londres, 11 de julho de 1968).

Os isolamentos, (isolamento social horizontal (quarentena), em muitas das maiores economias, estão afetando drasticamente a produção, os investimentos e, sobretudo, o emprego. Os números de empregabilidade para o último mês de março nos EUA são absolutamente desconcertantes, com uma perda mensal de 700 mil postos e um salto de 4,4% no nível de desemprego.

As perdas de emprego em março puseram um fim a 113 meses ininterruptos de ganhos salariais

Variações mensais nos salários, com exceção do setor primário (em milhares)

Em apenas duas semanas, quase dez milhões de norte-americanos solicitaram o seguro-desemprego.

Todos estes números superam qualquer coisa vista na Grande Recessão de 2008/9 e mesmo na Grande Depressão dos anos trinta do século passado.

É claro, a esperança é que este desastre terá vida curta porque os confinamentos serão removidos dentro de um mês mais ou menos na Itália, na Espanha, no Reino Unido, nos EUA e na Alemanha. Afinal, o confinamento em Wuhan está terminando esta semana depois de 50 dias e a China está gradativamente retornando ao trabalho – ainda que apenas gradativamente. Em outros países (Espanha e Itália), há sinais de que a pandemia chegou ao pico da curva e os isolamentos estão funcionando. Em outros (Reino Unido e EUA), o pico ainda está por vir.

Assim, uma vez cessados os isolamentos, as economias poderão voltar rapidamente à atividade como sempre. É o que afirma o Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Steven Mnuchin: “Isso é um problema de curta duração. Pode levar alguns meses, mas vamos passar por isso e a economia vai estar mais forte do que nunca.” O guru keynesiano Larry Summers fez eco a esta perspectiva: “Eu tenho um palpite otimista – mas é apenas um palpite otimista – de que a recuperação pode ser mais rápida do que muitas pessoas esperam, porque tal recuperação terá o caráter de recuperação da depressão total que atinge a economia de um balneário de verão todo inverno, ou a recuperação do PIB americano que ocorre toda segunda-feira pela manhã. “

Durante os isolamentos, muitos governos asseguraram a distribuição de auxílios financeiros e facilitaram o seguro-desemprego para os que foram demitidos ou “dispensados temporariamente – licença não remunerada” até que os negócios sejam restaurados. E pequenas empresas estão supostamente recebendo redução de impostos e empréstimos a juros baixos para socorrê-las. Isso seria suficiente para garantir a subsistência das pessoas durante o período de isolamento social.

Um problema com essa visão é que, os cortes no funcionalismo público ao longo da última década foram tão grandes que simplesmente não há pessoal suficiente para processar os pedidos e transferir o dinheiro. Calcula-se que, nos EUA, muitos não receberão dinheiro algum até junho, quando os isolamentos podem até já terem acabado! Além disso, ficou evidente que muitas pessoas e pequenos negócios não atendem aos requisitos para receber os auxílios, ficando de fora da ajuda de emergência.

Por exemplo, 58% dos trabalhadores norte-americanos dizem que não conseguirão pagar o aluguel, fazer a feira ou pagar os boletos se ficarem em quarentena por 30 dias ou até menos, de acordo com uma nova pesquisa feita pela Society for Human Research Management (SHRM). De cada cinco trabalhadores, um declarou que não vai conseguir arcar com esses gastos básicos já a partir da primeira semana de quarentena. A metade das pequenas empresas nos EUA não têm condições de pagar seus funcionários se ficarem em quarentena por um mês inteiro. Mais da metade das pequenas empresas preveem uma perda de receita de 10 a 30%.

De fato, muitas pessoas estão sendo forçadas a trabalhar, colocando sua saúde em risco, porque elas não têm como trabalhar em casa, a exemplo dos trabalhadores de escritório, melhor pagos.

Condição de trabalho e bem estar emocional por grupo socioeconômico

Pesquisa realizada entre 1355 pessoas, de 27 a 30 de março de 2020

Legenda: Baixa – Média-baixa – Média – Média-alta – Alta

Dados: Pesquisa Axios/Ipsos. Margem de erro: 2,8 pontos para mais ou para menos. Margem de erro para os subgrupos variando de 5 a 9 pontos para mais ou para menos. Gráfico: Naema Ahmed/Axios.

Muitas pequenas empresas dos ramos de transportes, comércio e serviços não mais retornarão com o fim dos isolamentos. Até mesmo grandes empresas de comércio, transportes e energia podem implodir, causando efeito cascata em outros setores da economia. Vejam que o Federal Reserve (Banco Central dos Estados Unidos) determina que os bancos executem testes de estresse bancário que simulam cenários ruins para ter certeza de que os bancos teriam como suportar uma desaceleração do mercado. O pior cenário mostrava uma queda de 9,9% do PIB no segundo trimestre de 2020 com o desemprego saltando a 10% pelo terceiro trimestre de 2021. Em base às estimativas recentes da Goldman Sachs, o PIB vai provavelmente cair mais de 30% e o desemprego pode chegar a esse mesmo patamar… dentro de poucas semanas.

Há também uma quantidade enorme de dívidas corporativas emitidas por empresas de risco considerável que não estavam, de qualquer forma, tendo muita receita e lucro antes da pandemia. E, como eu havia dito em postagens anteriores, mesmo antes de o vírus golpear a economia mundial, muitos países estavam caminhando para a recessão. México, África do Sul e Argentina, entre as nações do G20, e Japão, do G7, já estavam em recessão. A Zona do Euro e o Reino Unido estavam próximos disso e até o melhor performer, os EUA, estavam desacelerando rapidamente. Hoje toda aquela dívida corporativa levantada ao longo dos anos desde a Grande Recessão pode vir abaixo em inadimplências.

É esse particularmente o caso das debilitadas economias dos países emergentes (países recém-industrializados ou em processo de industrialização) que passaram por uma fuga de capitais nunca vista, de U$ 90 bi, com investidores estrangeiros abandonando o barco antes de afundar. E há pouca ou nenhuma ajuda de emergência sendo oferecida por iniciativa do FMI ou do Banco Mundial. As coisas só vão piorar no próximo trimestre e a recuperação pode estar distante da previsão dos mais otimistas, que a vislumbram já no segundo semestre.

Evidentemente, os confinamentos não podem durar para sempre, ou bilhões de pessoas cairão na indigência e os governos terão de desembolsar cada vez mais recursos, acumulando cada vez mais dívidas e/ou impressão de dinheiro para distribuir auxílios emergenciais e comprar ainda mais títulos da dívida. Não é possível seguir fazendo isso se não há produção ou investimento. Os empregos desaparecerão para sempre e a inflação, por fim, dispara. Entraríamos em um mundo permanentemente em depressão, assolado pela hiperinflação.

Ao que parece, vários países europeus, impelidos pelo pico de casos estão se preparando para suspender os isolamentos ao fim deste mês de abril. Mas mesmo que o façam, uma volta ao “normal” levará meses, já que ela dependerá de testagem massiva para aferir se o vírus vai voltar, e certamente vai, e se vai poder ser contido até o restabelecimento gradativo da produção. De forma que uma recuperação global não será nada rápida. Um estudo do Ifo – Instituto de Pesquisa Econômica – Instituto Leibniz de Pesquisa Econômica da Universidade de Munique, da Alemanha, fez uma previsão de que a economia alemã poderia encolher até 20% este ano se o isolamento durasse três meses e seria seguido por uma recuperação não mais do que paulatina.

E as últimas previsões da Goldman Sachs mostram o nível mais baixo da recessão nos EUA sendo alcançado no segundo trimestre de 2020, com o PIB possivelmente 11% a 12% abaixo do prognóstico pré-vírus. Isso representaria uma queda dramática de 34% na projeção anual daquele trimestre. Estima-se, assim, que o PIB cresça deveras vagarosamente, não chegando ao seu curso anterior pré-vírus antes do final de 2021. Este modelo, sugerindo quase dois anos “desperdiçados” nos EUA, tem se mostrado recorrente nas últimas previsões econômicas. Quadro parecido é esperado para a Zona do Euro, que está passando por um colapso na produção industrial. Mais acentuado do que na crise do Euro de 2012.

Mas o planejamento progressivo é a única opção “mais favorável”, afirma um bocado de economistas: “Essencialmente, o nível de isolamento social, a sua duração e os custos econômicos implicados dependem, sensivelmente, das medidas de ampliação da capacidade do sistema de saúde para enfrentar a epidemia (testagem, isolamento vertical, etc.) e a capacidade de o sistema econômico navegar por um período de atividades econômicas suspensas sem comprometer a sua estrutura.”

Teria sido possível dispensar os isolamentos? Os indícios mostram cada vez mais que sim. Quando o COVID-19 entrou em cena, governos e sistemas de saúde deveriam já estar preparados. Não foi o caso de não terem sido alertados há anos pelos epidemiologistas. Como eu já disse antes, a COVID-19 não era um “desconhecido tão desconhecido”. No começo de 2018, durante uma reunião da Organização Mundial da Saúde, em Genebra, um grupo de especialistas (da R&D Blueprint) concebeu o termo “doença X”: eles previram que a próxima pandemia seria causada por um patógeno novo, desconhecido, que não teria ainda atingido a população humana. A doença X seria provavelmente causada por um vírus vindo de animais e surgiria em algum lugar do planeta onde o desenvolvimento econômico faria com que pessoas e vida selvagem confluíssem.

Mais recentemente, em setembro de 2019, a ONU publicou um relatório advertindo que havia uma “ameaça bastante real” de uma pandemia varrer o planeta, matando até 80 milhões de pessoas. Um patógeno mortal, disseminado pelo mundo inteiro por propagação aérea, dizia o relatório, podendo destroçar cinco por cento da economia global. “A preparação é dificultada pela falta de vontade política permanente em todos os níveis”, depreende o relatório. “Embora as autoridades nacionais reajam às emergências sanitárias quando o medo e o pânico espalham-se consideravelmente, a maior parte dos países não dedica a energia e os recursos consistentes necessários para impedir que os surtos evoluam para transformar-se em calamidades.” O relatório evidenciou toda uma história de negligência deliberada das advertências emitidas por cientistas ao longo dos últimos 30 anos.

Os governos ignoraram as advertências porque calcularam que o risco não seria grande e, portanto, os gastos com prevenção e contenção de pandemias não valeriam a pena. De fato, eles reduziram os gastos em pesquisa e contenção de pandemia. Isso me lembra da decisão do aeroporto de Heathrow, no Reino Unido, de comprar apenas dois limpa-neves, porque quase nunca nevava ou congelava em Londres; portanto, a despesa não era justificável. O aeroporto foi gravemente atingido de surpresa em um dia de inverno e tudo teve que ser paralisado.

Como o isolamento social horizontal poderia ter sido evitado? Se o governo tivesse sido capaz de testar massivamente a população, fornecer equipamentos de proteção e contar com enormes exércitos de profissionais da saúde para testar e fazer o rastreamento de contatos e, em seguida, colocar em quarentena e isolar somente os infectados. Os idosos e os doentes deveriam ter sido blindados em casa e apoiados pela assistência social. Desta forma teria sido possível que todos os outros trabalhassem, assim como trabalhadores essenciais devem fazê-lo agora. Pequenos países como a Islândia (e Taiwan, Coréia do Sul) com sistemas de saúde de alta qualidade conseguiram fazer isso. A maioria dos países com sistemas de saúde privatizados ou aniquilados não têm essa capacidade. Portanto, o isolamento social horizontal tem sido a única opção para salvar vidas.

Leitos para cuidados intensivos por 1.000 pessoas em 2016

A política de isolamento social horizontal (quarentena) tem dois objetivos, quais sejam salvar vidas e também tentar evitar que os sistemas de saúde nos países sejam colapsados, sobrecarregados com milhares de casos, deixando os médicos com a opção “escolha de Sofia” para decidir quem morrerá ou quem obterá ajuda. O objetivo é “achatar a curva” no aumento de casos de vírus e mortes, para que o sistema de saúde tenha condições de continuar atendendo os doentes. O problema é que o achatamento da curva na pandemia através de um isolamento social horizontal (quarentena) muito longo aumenta a curva descendente de empregos e receitas para centenas de milhões.

As políticas de contenção achatam a curva médica, mas aumentam a curva de recessão

E, no entanto, se a pandemia chegasse a um ponto que causasse desespero e a população se amotinasse indo aos saques por alimentação e medicação, os estudos históricos mostram que tais motins também acabariam por destruir a economia. Um artigo recente do Federal Reserve, analisando o impacto da epidemia de gripe espanhola nos EUA, constatou que a pandemia, até então não controlada, reduziu a produção industrial em 18%. Portanto, o isolamento social horizontal (quarentena) pode ser menos prejudicial no final. De qualquer forma parece que não se consegue uma vitória plenamente satisfatória.

Vidas ou meios de subsistência? Alguns especialistas “neoliberais” da direita consideram que a economia capitalista é mais importante que vidas. Afinal, as pessoas que estão morrendo são principalmente os idosos e os já doentes por alguma outra causa. Eles não contribuem com muito valor para a produção capitalista; na verdade, eles são um fardo para a produtividade e os impostos. No verdadeiro espírito Malthusiano, nas salas de executivos das instituições financeiras, prevalece a visão de que os governos devem deixar o vírus se espalhar e, quando todos os jovens e saudáveis ficarem imunes, o problema estaria resolvido.

Essa visão também se conecta a alguns estudos de especialistas em saúde que apontam que todos os dias os médicos nos hospitais devem tomar decisões sobre o que é mais “economicamente viável” do ponto de vista dos resultados da saúde. Tais médicos deveriam salvar uma pessoa muito idosa com COVID-19 se isso significasse que o tratamento de câncer de uma pessoa mais jovem se atrasaria porque os leitos e os profissionais da saúde foram transferidos para combater a pandemia?

Aqui está essa visão: “se os fundos não forem ilimitados – devemos nos concentrar em fazer as coisas pelas quais possamos fazer o melhor (salvar mais vidas) gastando a menor quantidade possível de dinheiro. Ou, em outras palavras, usar o dinheiro que temos, para salvar o maior número de vidas“. A Economia da Saúde mede o custo por QALY1. Um QALY é um ano de vida ajustado à qualidade. Um ano adicional de vida com saúde perfeita seria um QALY. “Quanto estamos dispostos a pagar por um QALY? A resposta atual, no Reino Unido, é que o NHS (Serviço Nacional de Saúde) recomendará o financiamento de intervenções médicas se elas custarem menos de £30.000/QALY. Qualquer coisa, além disso, é considerada muito cara e, no entanto, o pacote para o combate ao vírus do Reino Unido é de £350 bilhões, quase três vezes o orçamento anual atual para todo o NHS. Vale a pena pagar esse preço? Este especialista avaliou que “o custo para salvar uma vítima de COVID era onze vezes mais alto que o custo máximo que o NHS aprovará“. Ao mesmo tempo, pacientes com câncer não estão sendo tratados, cirurgias do quadril estão sendo adiadas, cardiopatas e diabéticos não estão sendo tratados.

Tim Harford, no FT (Jornal Financial Times), adotou uma visão diferente. Ele ressalta que a Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA) avalia uma vida estatística2 em US$10 milhões no dinheiro de hoje, ou US$10 por micromort3 (um, em um milhão de risco de morte) evitado. “Se presumirmos que 1% das infecções são fatais, está caracterizada uma condição de 10.000 micromorts. Nessa medida, estar infectado é 100 vezes mais perigoso do que dar à luz, ou tão perigoso quanto viajar duas vezes e meia ao redor da Terra em uma motocicleta. Para uma pessoa idosa ou vulnerável, é muito mais arriscado que isso. “Nos US$ 10 por micromort da EPA” (Agência de Proteção Ambiental dos EUA),valeria a pena gastar US$100.000 para evitar uma única infecção com Covid-19. Não é necessário um modelo epidemiológico complexo para prever que, se não tomarmos medidas sérias para impedir a propagação do vírus, mais da metade do mundo provavelmente o contrairá. Isso sugere 2 milhões de mortes nos EUA e 500.000 no Reino Unido – assumindo, novamente, uma taxa de mortalidade de 1%. Se um isolamento social horizontal (quarentena) na economia dos EUA salvar a maior parte dessas vidas e custar menos de US$ 20 trilhões, isso se traduzirá como uma boa relação custo-benefício”.

O ponto chave para mim aqui é que esse dilema de “custar” uma vida seria reduzido se houvesse financiamento adequado para os sistemas de saúde, suficiente para apresentar “capacidade extra” em caso de crises.

Há o argumento de que o isolamento social horizontal (quarentena) e todos esses gastos com saúde se baseiam em um pânico desnecessário que tornará a cura pior que a doença. Veja, segue o argumento, o COVID-19 não é pior que a gripe severa em sua taxa de mortalidade e terá muito menos impacto do que muitas outras doenças como malária, HIV ou câncer, que matam mais a cada ano. Portanto, pare os confinamentos malucos, apenas proteja os idosos, lave as mãos e em breve veremos que o COVID não é um Armagedom.

O problema com esse argumento é que as evidências são contrárias à opinião de que o COVID não é pior que a gripe anual. É verdade que, até agora, as mortes atingiram apenas 70.000 em abril, cerca de 40.000 a menos que a gripe neste ano e apenas um quarto das mortes por malária. Mas a transmissão do vírus ainda não acabou. Até agora, todas as evidências sugerem que a taxa de mortalidade é de pelo menos 1%, dez vezes mais mortal que a gripe anual; e é muito mais infeccioso. Portanto, se o COVID-19 não estivesse contido, acabaria afetando até 70% da população antes que a “imunidade coletiva” fosse suficiente para permitir o declínio da transmissão do vírus. São pelo menos 50 milhões de mortes! As taxas anuais de mortalidade dobrariam na maioria dos países (ver gráfico).

Taxa de mortalidade (por milhares de pessoas, anualizado)

Além disso, este é um vírus novo e diferente dos vírus da gripe e para o qual, ainda não existe vacina. É muito provável que volte e sofra mutações e, portanto, exija ainda mais isolamento social horizontal (quarentena).

Alguns governos estão arriscando a vida das pessoas tentando evitar o isolamento horizontal total ou mesmo parcial para preservar empregos e a economia. Alguns governos implementaram testes e rastreamento de contatos suficientes, além do auto isolamento, para afirmar que podem manter suas economias em andamento durante a crise. Infelizmente, para eles, mesmo que funcione, o isolamento social horizontal (quarentena) em outros lugares destruiu tão intensamente o comércio e o investimento de forma global que mesmo esses países não poderão evitar uma queda, tendo em vista as cadeias globais de abastecimento paralisadas.

Há outro argumento contra o isolamento social horizontal (quarentena) e o salvamento de vidas. Um estudo realizado por alguns ‘especialistas em segurança’ da Universidade de Bristol reconheceu que uma política de “negócios como sempre” estenderia a epidemia até setembro de 2020, embora essa abordagem provocasse uma perda de vidas no Reino Unido quase tão grande quanto o país sofreu durante a Segunda Guerra Mundial. Por outro lado, o isolamento social horizontal (quarentena) pode diminuir de tal forma o PIB per capita que a população nacional perde mais vidas do que salva, como resultado das contramedidas.

Mas o estudo de Bristol é apenas uma avaliação de risco. Estudos de saúde adequados mostram que as recessões não aumentam a mortalidade. Uma recessão – em curto prazo, uma queda temporária do PIB – não precisa necessariamente reduzir, e de fato normalmente não reduz, a expectativa de vida. De fato, contra intuitivamente, o peso da evidência é que as recessões realmente levam as pessoas a viver mais. Suicídios aumentam, sem dúvida, mas outras causas de morte, como acidentes de trânsito e doenças relacionadas ao álcool, caem.

O economista marxista especialista em saúde Dr. Jose Tapia (também autor de um dos capítulos do livro World in Crisis) fez vários estudos sobre o impacto das recessões na saúde. Ele descobriu que as taxas de mortalidade nos países industrializados tendem a aumentar durante expansões econômicas e a cair durante recessões econômicas. As mortes atribuídas a doenças cardíacas, pneumonia, acidentes, doenças hepáticas e senilidade – representando cerca de 41% da mortalidade total – tendem a flutuar pró ciclicamente, aumentando durante as expansões econômicas. Suicídios, assim como mortes atribuíveis ao diabetes e doenças hipertensivas, representam cerca de 4% da mortalidade total e flutuam contra-ciclicamente, aumentando durante as recessões. As mortes atribuídas a outras causas, representando cerca de metade do total de mortes, não mostram uma relação claramente definida em relação às flutuações da economia. “Todos esses efeitos de expansões ou recessões econômicas na mortalidade que podem ser vistos, por exemplo, durante a Grande Depressão ou a Grande Recessão, são pequenos se comparados aos efeitos da mortalidade de uma pandemia”, disse Tapia em entrevista.

Em resumo, os confinamentos poderiam ter sido evitados se os governos tivessem observado o risco crescente de novas pandemias patogênicas. Mas eles ignoraram essas advertências para “poupar dinheiro”. Os confinamentos poderiam ter sido evitados se os sistemas de saúde tivessem sido adequadamente financiados, equipados e com pessoal, em vez de serem degradados e privatizados ao longo de décadas para reduzir custos e aumentar a lucratividade do capital. Mas os sistemas de saúde não estavam nem financiados nem equipados com pessoal.

E há um cenário ainda maior. Se houver bombeiros e equipamentos suficientes, será possível apagar um incêndio após muitos danos, mas se a mudança climática aumentar continuamente as temperaturas, outra rodada de incêndios ocorrerá inevitavelmente. Esses novos patógenos letais estão entrando em corpos humanos porque a busca insaciável pelo lucro na agricultura e na indústria levou à mercantilização da natureza, destruindo espécies e trazendo os perigos da natureza para mais perto da humanidade. Mesmo quando essa pandemia for finalmente contida (pelo menos este ano) e ainda que os governos gastem mais em prevenção e contenção no futuro, o que trará a natureza de volta à harmonia com a humanidade será a cessação completa da busca capitalista pelo lucro.

Por enquanto, nos resta salvar vidas ou meios de subsistência.

Texto publicado originalmente em: https://thenextrecession.wordpress.com/2020/04/06/lives-or-livelihoods/

1QALY: O ano de vida ajustado pela qualidade é uma medida genérica do ônus da doença, incluindo tanto a qualidade quanto os anos de vida vivida. É usado na avaliação econômica para avaliar o valor de intervenções médicas. Um QALY equivale a um ano em perfeita saúde. https://www.google.com/search?sxsrf=

2Vida Estatística – O que significa colocar um valor para uma vida?

A EPA não atribui um valor em dólares às vidas individuais. Em vez disso, ao realizar uma análise de custo-benefício de novas políticas ambientais, a Agência usa estimativas de quanto as pessoas estão dispostas a pagar por pequenas reduções em seus riscos de morrer por condições adversas de saúde que podem ser causadas pela poluição ambiental.

Na literatura científica, essas estimativas de disposição de pagar por pequenas reduções nos riscos de mortalidade são frequentemente chamadas de “valor estatístico de uma vida”. Isso ocorre porque esses valores são normalmente relatados em unidades que correspondem ao valor agregado em dólares que um grande grupo de pessoas estaria disposto a pagar por uma redução em seus riscos individuais de morrer em um ano, de modo que esperaríamos uma morte a menos nesse grupo durante aquele ano, em média.

Isso é mais bem explicado por meio de um exemplo. Suponhamos que cada pessoa de uma amostra de 100.000 pessoas fosse questionada sobre o quanto estaria disposta a pagar por uma redução no risco individual de morrer de 1 em 100.000, ou 0,001%, no próximo ano. Como essa redução no risco significaria esperar menos uma morte entre a amostra de 100.000 pessoas no próximo ano, em média, isso às vezes é descrito como “uma vida estatística salva”. Agora, suponha que a resposta média a essa pergunta hipotética fosse de US$ 100. Então, o valor total em dólares que o grupo estaria disposto a pagar para salvar uma vida estatística em um ano seria US$ 100 por pessoa × 100.000 pessoas, ou US$ 10 milhões. É isso que se entende por “valor estatístico de uma vida”. É importante ressaltar que essa não é uma estimativa de quanto dinheiro qualquer indivíduo ou grupo estaria disposto a pagar para impedir a morte certa de uma pessoa em particular.

3 Um micromort (de micro e mortalidade) é uma unidade de risco definida como um-em-um milhão de possibilidade de morte. Micromorts pode ser utilizado para medir a grau de risco de várias atividades do dia-a-dia. A microprobability é a chance de um em um milhão de algum evento; assim, um micromort é a microprobabilidade da morte.https://en.wikipedia.org/wiki/Micromort