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BRASIL

Pandemia e necropolítica do racismo institucional: a raça, o gênero, a classe

Ariane Raiol, de Belém, PA

Mulher negra com máscara, nos Estados Unidos

Tanto nos Estados Unidos como no Brasil, a população negra vem enfrentando índices alarmantes de contaminação pelo Covid-19. Os dados, que ainda são iniciais devido a falta de informações nos dois países acerca de raça ou cor do número de casos confirmados e de óbitos, são suficientemente alarmantes e já podem levantar questões. 

Na ausência de diferença genética que justifique a maior letalidade do vírus em pessoas não brancas, somos levados a concluir que o vírus pode atingir a todos de maneira igual, mas as desigualdades estruturais o torna muito mais letal para uma parcela da população: a população preta, pobre e periférica. 

Pretos e pardos são 1 em cada 4 hospitalizados por Covid-19, mas 1 em cada 3 mortos

No Brasil, os dados divulgados pelo Ministério da Saúde mostram que pretos e pardos são 1 em cada 4 hospitalizados por Covid-19, mas 1 em cada 3 mortos, tais números revelam que o Covid-19 é muito mais mortífero entre negros. Sem fazer distinção, mas com incidência determinada pela renda, gênero, classe e pela raça, a pandemia escancara as contradições do país e aflora as discrepâncias sociais, evidenciando que a população negra, em sua diversidade, constituiu-se como o principal grupo de risco frente a crise biológica que se instaura, tanto por comorbidades, como hipertensão, diabetes e anemia falciforme uma vez que estas atingem negras e negros em maior número; quanto por letalidade social, incitada por questões históricas, sociais e políticas. 

Assim, evidencia-se que o racismo estrutural e estruturante que dificulta historicamente a vida de negros e negras não se institui como uma realidade diferente diante da atual conjuntura. Tal histórico escravista impõe obstáculos frente as possibilidades de prevenção de adoecimento e morte pelo vírus, tornando o isolamento social uma realidade utópica para quem é negro e constituiu maioria absoluta na desvantagem sistemática nos indicadores sociais seja de renda, saúde, ou referente as condições médico-sanitárias como acesso a água tratada, esgoto, pavimentação, etc.

A falta de acesso a água encanada para lavar as mãos, as inadequações de residências juntamente com a super lotação destas, a necessidade de ir e vir para garantir a sobrevivência, a desinformação e o não acesso a exames para detecção do vírus, são dificuldades que incidem majoritariamente na população negra do país. Somado a isto tem-se a naturalização do risco de vida de uma população ameaçada desde sempre, que impõe a ideia de que a rotina não pode parar, o dinheiro pra colocar a comida em casa depende do trabalho e o patrão não libera. 

A pandemia que chega através de um grupo de contaminados majoritariamente brancos com poder aquisitivo elevado e amplo acesso aos testes e serviços hospitalares, atinge a população que serve a estes: faxineiras, cozinheiras, cuidadores, que são, em sua maioria, negros, e ao representarem cerca de 67% dos brasileiros que dependem exclusivamente do SUS, deparam-se com a ausência de testes suficientes e a lotação dos serviços. 

Assim, o enfrentamento à pandemia revela não apenas a insuficiência do nosso sistema de saúde, como também a desigualdade social estrutural proveniente do racismo quanto herança escravocrata e do capitalismo genocida antinegro, que geram altas concentrações de renda e determinam que  o nascer, o viver e o morrer da população negra seja mediado por condições de exclusão, miserabilidade, privação de direitos, de moradia, de trabalho formal. 

Não há outra palavra para denominar tal realidade que não seja necropolítica, que, quanto conceito desenvolvido pelo filósofo negro, historiador, teórico, político e professor universitário camaronense Achille Mbembe, designa uma política de morte, onde o poder do Estado dita quem deve viver e quem deve morrer. Nesse sentido, a necropolítica é utilizada como política genocida numa sociedade colapsada e marcada pelo racismo estrutural e por um capitalismo de barbárie, que põe valor as vidas conforme a classe, o gênero e a raça, atribuindo inferioridade a vida da população negra do país. 

É diante desse contexto que se faz indiscutível a presença do racismo estrutural na saúde, evidenciado pelo acesso e tratamento desigual nos serviços e pela ausência da transversalidade de gênero e raça no planejamento da política de saúde e das ações destas. Conjuntamente, a pandemia encontra um país fragilizado, marcado pelo neoliberalismo e a defesa imoral da austeridade, com congelamento de gastos públicos decretados por Emenda Constitucional e retirada de direitos trabalhistas e previdenciários. Assim, o Covid-19 encontra o ambiente perfeito para instituir caos aos corpos negros e pobres. 

Nesta realidade reforçamos a necessidade urgente de ações emergenciais que possam dialogar com políticas de longo prazo. A isenção nas taxas de água e luz e a aprovação da renda básica são vitórias, mas não podem ser exclusivas formas de proteção. É preciso ter como principal bandeira de luta o fortalecimento do SUS, almejando reverter as políticas que estavam em curso no país, como por exemplo a PEC 95/2019, enfraquecendo o equilíbrio fiscal que não se faz propicio para o momento. É necessário colocar a vida acima dos lucros e romper com a austeridade, evitando o extermínio da população negra. 

Reforçamos o compromisso de nos colocarmos no sentido contrário do subfinanciamento do SUS, do desmonte da proteção social e dos ataques as universidades e à ciência. Precisamos reivindicar a adoção de medidas de proteção da população negra, garantindo o acesso aos testes, os cuidados com as pessoas infectadas, a prevenção e promoção de atenção a saúde, tornando o isolamento social uma realidade possível para esta população. Expressando a nossa capacidade de organização, precisamos juntos pedir socorro: todas as vidas importam!

 

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