A pandemia da COVID-19, além do impacto nas questões de saúde mundial, tem modificado de diversas formas as relações humanas, sobretudo a partir dos contextos de distanciamento social que muitos países têm vivido. No Brasil, a partir de medidas de isolamento adotadas em nosso território, desde março/20, o cenário da educação modificou-se completamente. A suspensão do trabalho educacional tanto na Educação Básica quanto na Educação Superior, e as medidas adotadas para manutenção do “ensino” ou condicionais à suspensão das atividades presenciais, como vemos em muitas localidades, coloca em discussão a ideia de uma transferência do processo pedagógico para uma nova modalidade: a educação a distância. À primeira vista, transportar a sala de aula para um espaço virtual parece ser uma tarefa muito simples, já que grande parte da população está conectada às redes sociais e habitando o ciberespaço.
Em um período muito curto (dias ou, nas melhores hipóteses, algumas semanas) professores passaram a atuar de uma maneira muito diferente da habitual: construir e enviar atividades para seus alunos por e-mail, Facebook, Whatsapp, buscar (em alguns casos) formas de interação pelas plataformas online disponíveis e, até, de maneira mais sofisticada, gravar ou realizar videoaulas para serem transmitidas aos estudantes. As profundas desigualdades da educação brasileira também se manifestam nas práticas que temos observado em relação ao movimento de fazer a sala de aula acontecer no espaço virtual. Quanto mais recursos as redes de ensino têm, maior a possibilidade de estabelecer interação entre os estudantes. Porém, se de uma ponta desta equação precisamos que as instituições de ensino provenham aos docentes uma estrutura adequada, na outra ponta desta relação estão os discentes e suas condições de vida. E aí enfrentamos um primeiro grande obstáculo: quem pode acessar uma aula online diariamente? Aqui há, certamente, um recorte de classe que acentua as desigualdades do processo educacional. E, no campo dos estudos sobre a cibercultura, defendemos que as mesmas ferramentas que podem servir à inclusão digital podem ser, também, elementos de exclusão, quando não há condições de acesso e políticas que promovam a minimização destas diferenças.
Especialistas que estudam a área de educação a distância (EAD) têm manifestado sua análise a respeito das proposições que as escolas de Educação Básica têm feito para manter o vínculo com as/os estudantes neste período de isolamento social. Corroborando a fala daqueles que estudo, é unânime a ideia de que as práticas que têm sido realizadas não podem ser caracterizadas como educação a distância, na forma como operam os princípios de uma cultura digital. Isso porque o cerne do processo pedagógico é a interação. E ainda que possamos realizar atividades pedagógicas fortemente interativas à distância, isso exige formação, planejamento e infraestrutura adequadas, para professor e estudantes. E sabemos que as escolas e seu público não atendem a esses quesitos na sua totalidade. A cultura escolar tradicional e analógica que a escola, salvo exceções, tem reproduzido, se transportada para a virtualidade, não produzirá nenhum efeito que não seja o de artificializar o processo pedagógico (reeditando a máxima “você finge que ensina e eu finjo que aprendo”). Transportar a sala de aula para a virtualidade é uma tarefa possível, mas bastante complexa, que exige políticas educacionais adequadas para a implementação de estrutura e formação e, ainda, precisa ser analisada e adequada às características de cada comunidade escolar, especialmente quanto a suas reais possibilidades de acesso. Políticas como as de 1:1 (distribuição de um computador por aluno) tem sido as mais eficientes quanto ao uso de tecnologias no contexto educacional, corroborando para a minimização da exclusão digital.
Se mais de 75% das escolas urbanas brasileiras não tem projeto de formação de professores, como imaginar que tenham condições de construir um processo inédito na educação?
Dessa maneira, considerar que os docentes possam dar conta de instituir processos pedagógicos com seus estudantes nas condições atuais acena para uma nova faceta da ideia de desprofissionalização docente, conceito defendido pela pesquisadora Dalila Oliveira (2010). Para contextualizar o cenário educacional brasileiro, no que se refere à relação com as tecnologias digitais (aquelas tecnologias que se desenvolvem a partir do surgimento da internet, como o computador, tablet, smartphone), apresento e diálogo com alguns dados da Pesquisa “TIC – Educação 2018”, desenvolvida pelo CETIC – Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação, órgão vinculado ao CGI – Comitê Gestor da Internet, que monitora em diversos âmbitos as relações e o avanço da adoção das tecnologias. Os dados referem-se apenas à condição de professores de escolas urbanas do Brasil para 2018 (e isso implica dizer que, dadas as condições das escolas rurais, a situação se acirra ainda mais):
- 50% havia participado de algum curso, debate ou palestra sobre Tecnologias e Educação. Isso significa dizer que metade dos professores que estão atuando não tiveram nenhum tipo de formação, ainda que mínima, que possa auxiliar no planejamento de suas atividades neste período de pandemia;
- 55% indicam que não tiveram atividades realizadas durante a graduação sobre o uso de tecnologias no processo de ensino e aprendizagem. Considerando que 40% dos professores atuam há mais de 20 anos no magistério, isso significa que sua formação inicial deve ter sido realizada antes da popularização da internet e das tecnologias digitais;
- 19% considera que houve contribuição do curso de formação continuada realizado sobre o uso de computador e internet em atividades de ensino. Apenas uma pequena parte, dentre os que cursaram algum tipo de formação, considera que elas contribuem para as suas atividades de ensino presenciais;
- Dois terços dos professores não utilizam computador e internet para realizar as atividades com alunos. Dentre as justificativas, as mais citadas são: ausência de infraestrutura (número de computadores disponibilizados na escola, acesso à internet) e formação.
- 82% afirma que é o contato informal com outros professores a forma de aprendizado e atualização sobre o uso de computador e da internet. Ainda que aprender em grupos seja uma prática importante, não é possível considerar que a informalidade possa ser a maior fonte de aprendizado sobre uso de tecnologias para o desenvolvimento profissional.
- 76% das escolas não tem projeto de formação de professores.
A ideia de desprofissionalização docente é caracterizada como a perda da identidade profissional diante das exigências de que o professor assuma funções na escola para as quais não se sente preparado (Oliveira, 2010). Retomando os dados apresentados acima, parece-me que há um aceno na direção da constituição de mais um elemento de desprofissionalização docente diante das exigências de que os professores habitem o ciberespaço desenvolvendo atividades para as quais não têm formação necessária. Se mais de 75% das escolas urbanas brasileiras não tem projeto de formação de professores, como imaginar que tenham condições de construir um processo inédito na educação? Sem projeto de formação, a utilização de ferramentas tecnológicas só reforçará práticas instrucionais de trabalho escolar e contribuirá, mais uma vez, para a precarização do trabalho docente.
Para que tenhamos condições mínimas de estabelecer práticas educacionais neste período de isolamento social, precisamos constituir processos que envolvam a qualificação do trabalho docente vinculados à políticas educacionais promovidas pelos gestores dos sistemas de ensino. Certamente estes novos tempos nos fazem pensar que outros modelos pedagógicos precisam ser construídos, e há muito a escola poderia estar conectada com as tecnologias digitais de maneira que essa relação pudesse ser estabelecida qualificadamente. Mas, num momento de grande incerteza como o que estamos vivendo, não é possível supor que, sozinhos, professores e escolas, possam dar conta de construir essa revolução na forma de pensar e viver a educação.
*Juliana Brandão Machado é professora da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Doutora em Educação. Pesquisadora na área de formação de professores e cibercultura.
REFERÊNCIA:
OLIVEIRA, Dalila Andrade. Os trabalhadores da educação e a construção política da profissão docente no Brasil. Educar em Revista. Curitiba, Brasil, n. especial 1, p. 17-35, 2010. Editora UFPR.
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