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BRASIL

Conselho Nacional (contra) Educação: entenda a nova resolução que ataca a formação de professores 

A Resolução CNE 2/2019 estabelece mudanças estruturais nos cursos de Licenciaturas de todo o país: institui uma Base Nacional de Formação (BNC-Formação), impondo a adequação dos cursos à Base Nacional Curricular Comum (BNCC) e ferindo a autonomia universitária, principalmente das faculdades de Educação. Além disso, também fragmenta os cursos de pedagogia.

Ingrid Saraiva*, Karolyne de Souza** e Luana Bacci***, de Campinas, SP
Antonio Cruz/Agência Brasil

Em 2017, Conselho Nacional de Educação (CNE), na votação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

A educação pública no Brasil, em diferentes contextos, é o primeiro alvo na agenda daqueles que herdaram seu legado da casa grande. Isso porque ver pobres, negres, indígenas, mulheres, LGBTQIA+, ou seja, a real classe trabalhadora, entrar, permanecer e se formar em universidades públicas, gratuitas, de qualidade e socialmente referenciadas, bate de frente com o projeto elitista de educação da classe que oprime e explora. Nas trincheiras do chão da escola – ou, no contexto pandêmico, na casa que se transformou às pressas em uma sala de aula – estudantes e trabalhadores da educação resistem aos ataques que vêm de todos os lados: do governo federal, da extrema-direita, dos governos estaduais e municipais. 

Neste artigo, nossa intenção é abrir o debate sobre as mudanças propostas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) na formação de professores, que é nada mais nada menos do que o velho travestido de novo, parafraseando Bertolt Brecht. Essas mudanças são um reflexo e fazem parte do pacote de ataques na educação de períodos anteriores, que se aprofundam na pandemia com o aumento da sobrecarga e precarização do trabalho docente, dificuldades de acesso e implementação do ensino remoto emergencial, volta às aulas presenciais sem garantia de vacina, somados à dificuldade de mobilização de todas as categorias. 

Na década de 1990, destaca-se principalmente o papel do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), que buscou traduzir as demandas do capital na égide do neoliberalismo, dando destaque à formação dos profissionais. Diante deste cenário, a educação entra para a agenda neoliberal de reformas que delinearam a adequação do sistema educacional ao processo de reestruturação produtiva, que demandava qualificação dos trabalhadores. Diante disso, observou-se o crescimento exponencial de institutos de educação superior (IES) privados com avanços do empresariado no setor e seus conglomerados. As discussões e estudos sobre a formação dos professores têm sido objeto de debates ao longo da trajetória do CNE, tendo como marco a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) em 1996, que desde sua publicação resultou na aprovação de diretrizes direcionadas à formação de professores.

Desde o golpe de 2016, com a contrarreforma trabalhista e da previdência que colocou a crise nas costas do povo trabalhador, oprimido e explorado, está em curso uma ofensiva sobre a educação em diversas frentes: seja na agenda ultraconservadora do projeto Escola sem Partido, da militarização das escolas ou das denúncias à “ideologia de gênero”, ou do projeto privatista, tecnicista representado pelos grandes conglomerados empresariais. É nesse contexto, em especial após a aprovação da reforma do Ensino Médio, que o CNE propõe alterações profundas e significativas na formação de pedagogos e licenciados, apresentados em powerpoint oferecendo soluções fáceis para problemas complexos. 

A última proposta de Resolução CNE 2/2019 demonstra total descompasso com as necessidades na formação de professores

Ao contrário da Resolução CNE/CP de 02.2015 – que proporcionou grandes debates e múltiplas articulações educacionais e elaborou um documento orgânico, sendo recebido no meio acadêmico como uma grande conquista da área da educação, respondendo à necessidade de valorização da área e a formação em gestão como componente inseparável, – a última proposta de Resolução CNE 2/2019, que é objeto de discussão deste artigo, demonstra total descompasso com as necessidades na formação de professores, além de ter sido escrita sem diálogo com a comunidade acadêmica. 

Nesta resolução é imposta uma série de mudanças estruturais nos cursos de Licenciaturas de todo o país: institui uma Base Nacional de Formação (BNC-Formação), impondo a adequação dos cursos à Base Nacional Curricular Comum (BNCC) e, desta forma, fere a autonomia universitária, principalmente das faculdades de Educação, que são responsáveis na construção de seus projetos curriculares. Além disso, também é proposto uma fragmentação dos cursos de pedagogia em Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, dissociando a Gestão como uma formação a parte, retomando a divisão da formação sob um modelo antigo e já superado, configurando-se como mais um retrocesso. 

Essas mudanças estão atreladas aos impactos da (contra)reforma do Ensino Médio que, em síntese, flexibilizou o currículo escolar, diminuindo o conteúdo básico formativo e baseia-se no mito da “livre escolha” das áreas do conhecimento. Chamamos de mito, pois essa autonomia de escolha não é feita por parte dos estudantes, mas pelas secretarias que passam a definir as áreas de formação de cada escola. Além disso, prevê o chamado “notório saber”, uma forma de precarização intensa do trabalho docente, permitindo que prestadores de serviço não formados em licenciatura possam ser contratados como professores de acordo com sua área de formação. As escolas, assim, devem fazer parte da construção do “projeto de vida” dos estudantes, enfatizando a formação atrelada ao desenvolvimento das competências cognitivas e socioemocionais que, na realidade, expressa uma formação de conteúdos aligeirados, voltados ao interesses prático-imediatos, visando a preparação psicofísica da classe trabalhadora e seus filhos de forma acrítica às adaptações aos atuais padrões de reprodução do capital, marcado pela instabilidade e flexibilização. 

A lógica por trás da proposta do CNE vai contra tudo aquilo que é a universidade pública: a pesquisa, a autonomia, a formação crítica. A lógica empresarial e privatista colocada pelos que propõem essa formação de professores extremamente pragmática e tecnicista ataca os cursos de pedagogia, e, para além dos cursos, ataca a universidade pública como um todo. O que esses empresários da educação defendem é que a formação de professores das universidades públicas não prepara para a atuação em sala de aula, que se estuda muita teoria e pouca prática, e que, quando se formam, esses estudantes não estão prontos/as para atuar. 

Esse ataque não é por acaso: desqualificar a atuação docente e a formação é o caminho para que apresentem a lógica deles como solução. Acontece que a formação docente nas instituições públicas do Brasil, mesmo com os ataques constantes, é qualificada e é inclusive referência em outros países, desenvolvida a partir do pensamento crítico. Pensamento esse que torna as/os pedagogas/os capazes de refletir e agir sobre a própria prática docente, sempre em busca de promover uma educação emancipadora dos estudantes, uma educação crítica. E é justamente essa educação crítica que os incomoda. O setor empresarial não quer uma população crítica, não quer que as professoras promovam esse tipo de educação nas instituições de ensino básico. 

Eles se pautam no fator “qualidade” para criticar o curso de pedagogia, mas de qual qualidade estão falando? Estão falando da qualidade que atenda ao mercado, da qualidade pragmática e tecnicista, que forma estudantes acríticos que servirão ao mercado de trabalho sem questionar, sem se opor, é essa a qualidade que eles defendem. Ao contrário desse setor, defendemos a autonomia, o pensamento crítico e uma prática docente fundamentada nas teorias que são estudadas nas faculdades, uma docência crítica, que tenha embasamento teórico para não cair no espontaneísmo, no tecnicismo e na improvisação. Fica claro que esse projeto proposto pelo CNE é um ataque à universidade pública como um todo, um ataque à pesquisa, à reflexão, ao exercício do diálogo e do pensamento e um ataque à autonomia dos cursos de pedagogia para decidir seu currículo e conteúdos. 

Frente a esse ataque e a tantos outros que temos sofrido em meio à uma pandemia global, o que podemos fazer hoje? Primeiramente é de extrema importância o acompanhamento do debate e das disputas políticas que envolvem essa questão. Acompanhar lives sobre o assunto, se apropriar da discussão para não cair nas armadilhas de discurso que o setor empresarial da educação coloca, é um passo fundamental para lutar contra essa proposta. Fortalecer os eventos e mobilizações das universidades e entidades estudantis, como o evento que ocorrerá no dia 14/06, segunda-feira às 19h, via youtube, organizado pela Faculdade de Educação da UNICAMP. Em consonância, levar essa discussão para os vários espaços que ocupamos, nos centros acadêmicos, nas aulas, nos grupos de whatsapp, em casa, com os amigos, enfim, em todos os lugares.

Por último mas não menos importante: essa proposta faz parte dos ataques e projetos que vêm sendo colocados pelo governo Bolsonaro. Assim como fizemos no 29M, é de extrema importância nossa mobilização em unidade nesse próximo 19J, pela educação e pela vida, vamos às ruas gritar Fora Bolsonaro genocida! 

* Ingrid Saraiva é estudante de Ciências Sociais, militante do Afronte! Campinas e faz parte do CACH (Centro Acadêmico de Ciências Humanas – Unicamp) 
** Karolyne de Souza é estudante de Pedagogia, militante do Afronte! Campinas, faz parte do CAP-MF (Centro Acadêmico de Pedagogia Marielle Franco) e é Representante Discente no Conselho Universitário da Unicamp 
*** Luana Bacci é estudante de Pedagogia, militante do Afronte! Campinas e faz parte do CAP-MF (Centro Acadêmico da Pedagogia Marielle Franco – Unicamp)