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BRASIL

A tragédia da educação básica brasileira no contexto de desmonte: BNCC, PNLD e Reforma do Ensino Médio

Michelangelo Torres*, do Rio de Janeiro, RJ
EBC

O Brasil vive um dos momentos mais difíceis de sua história. Notadamente com a ofensiva reacionária aberta no país desde 2015-16 e em diversas partes do globo, uma extrema direita influiu sobre o bloco no poder junto às classes dominantes, o que acarreta consequências diretas para o futuro da educação pública. A contrarrevolução neoliberal representada pelo governo ilegítimo e terceirizado de Temer permitiu a remuneração aos capitais por intermédio de uma ofensiva pela destruição dos direitos trabalhistas, pela aprovação da lei da terceirização total e irrestrita, reforma da previdência, prevalência do negociado sobre o legislado, esfacelamento do Ministério do Trabalho, Emenda Constitucional do teto dos gastos em saúde e da educação pública. Tal quadro ganhou relevo com as eleições de um governo de extrema-direita, liderado por um representante do neofascismo: Jair Bolsonaro.

Ao assumir o mandato presidencial, Bolsonaro elegeu a educação pública como inimigo n.1 em potencial. Atenhamo-nos brevemente, a seguir, ao significado das políticas educacionais em torno da Reforma do Ensino Médio, da BNCC e do PNLD.

O MEC e as políticas educacionais sob Bolsonaro

Diferentes propostas de reformas educacionais brasileiras têm sido encaminhadas desde a década de 1990. As primeiras investidas de uma reforma na educação básica vieram por meio do Ministério da Educação (MEC)  nos primeiros anos do governo FHC, com base na nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e na reformulação curricular da educação básica, o que resultou na elaboração de material que orientasse o fazer pedagógico e os conteúdos a serem ministrados nas escolas, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Ocorre que a reforma educacional em curso ocorre em ritmo acelerado e em contexto de desmonte da educação pública.

Sob nova direção do Estado, o Ministério da Educação (MEC) (a despeito de suas trocas de gestores e de sua instabilidade) tem por foco o gerenciamento/financiamento da educação dentro dos marcos ultraliberais e, do ponto de vista ideológico, aproximar-se da extrema-direita.

Por um lado, há o intuito de uma consolidação ideológica de base conservadora. Uma agenda que não se limita a dar continuidade, mas, sobretudo, impor uma nova face à educação no país com requinte de perversidade e obscurantismo (apoiado no conservadorismo e em um grupo fundamentalista de extrema-direita), no intuito de ceifar qualquer perspectiva de autonomia ou pensamento crítico. O viés autoritário e antidemocrático está no “DNA’ desse governo. De outro lado, está em curso o que podemos denominar por uma ofensiva ultra-neoliberal, encampada pelo Ministro Paulo Guedes e seguida como cartilha com viés obscurantista pelos ministros da Educação, pautada pela lógica do mercado e expressa na intensificação da onda de privatização da educação pública (e apropriação do fundo público pelo empresariado), levando a mercantilização da educação às últimas consequências e o desmonte de seu sentido público.

Além de desastroso, há dados suficientes para mostrar que o governo Bolsonaro representa um perigo para a educação pública. Em menos de 100 dias de governo, passaram pela pasta ministerial da educação, no MEC, inúmeros gestores de alto escalão que foram exonerados ou pediram demissão, além das mudanças dos ministros: Ricardo Vélez Rodríguez (colombiano, teólogo e filósofo de extrema-direita), substituído, em função de acúmulo de polêmicas na pasta, por Abraham Weintraub (consultor do mercado financeiro com ênfase em previdência e aluno de Olavo de Carvalho). Em junho de 2020, foi anunciada a saída de Weintraub do MEC em função de ter sido um dos principais protagonistas do desgaste do governo federal com outros poderes, como o STF. Em reunião interministerial de abril, em vídeo vazado, o então ministro do MEC sugere a prisão dos ministros do STF. Avaliado como o pior ministro da educação de todos os tempos, Wein-traub, o ministro fujão, deixou o país com receio de ser preso. Em seu cargo, até o presente momento – julho de 2020 – passou pelo MEC um terceiro ministro relâmpago, Carlos Alberto Decotelli, que em função de inconsistências em sua carreira acadêmica, logo foi deposto em tempo recorde. Renato Feder chegou a ser anunciado pelo presidente Bolsonaro para a pasta, mas logo voltou atrás em sua decisão, ao ser pressionado pela ala olavista e evangélica. Após vacância na titularidade da pasta, foi nomeado o pastor Milton Ribeiro para a função. Este seria o quarto ministro improvisado em um ano e meio de desgoverno. Em resumo, o MEC tem sido comandado por um capacho de Olavo de Carvalho, por um golpista fujão, um fraudador de currículo e um pastor evangélico. Que tempos!

Além do aprofundamento de um programa de escolas cívico-militares, há uma ofensiva para a regulamentação do homeschooling (ensino doméstico), retorno do ensino presencial mediante introdução do ensino híbrido voltado para plataformas privadas e a uma educação minimalista e ensino aligeirado no marco de novas modalidades de precarização do trabalho docente. Focalizemos, brevemente o conteúdo da Reforma do Ensino Médio.

A Reforma do Ensino Médio

Tivemos a oportunidade de examinar o projeto da Reforma do Ensino Médio apresentado ainda no governo Temer (MP 746/16) em outro artigo (TORRES 2016)[1]. Primeiramente cabe ressaltar o método de imposição da reforma via medida provisória (método anti-democrático, sem diálogo com a comunidade escolar ou especialistas na educação). A adoção ao expediente autoritário de reformar o EM via medida provisória altera a LDB brasileira bem como descumpre o PNE (por suposto, limitadíssimo). Alterou, inclusive, o artigo 26 da lei 9396/96 da LDB ao alterar a obrigatoriedade das matérias de ensino (componentes curriculares obrigatórios), além dos artigos 26/LDB e 36/LDB, retirando a obrigatoriedade do ensino de Artes e Educação Física (restringindo-as ao ensino fundamental apenas), bem como de Sociologia e Filosofia (que na prática passam a ser extintas), respectivamente, dentre outras alterações na LDB e no FUNDEB.

Em síntese, a (contra)reforma procura oferecer soluções fáceis para problemas complexos, baseando-se na flexibilização do currículo (proposta de itinerários formativos), com diminuição do conteúdo básico formativo e propedêutico e no mito da “livre escolha” das áreas do conhecimento por parte do estudante, uma vez que não são os alunos que têm autonomia de “escolher” as áreas de concentração de ensino, mas as secretarias que passam a definir as áreas de formação de cada unidade, o que provocará, por exemplo, o deslocamento forçado de estudantes que se interessem por determinadas disciplinas e a diminuição de carga horária de formação comum (apenas matemática, português e inglês serão comuns aos três anos); previsão do chamado notório-saber que permite prestadores de serviços não licenciados atuarem como professores profissionais nas áreas de formação (medida controversa visando a contratação de docentes não licenciados e sem concurso público, por intermédio de precarização das formas de contratação flexível; intensificação do dualismo estrutural, onde oferta-se uma formação precária pública e aligeirada para os filhos das classes trabalhadoras e um preparo privado para o ensino superior para os setores mais abastados; na privatização da escola pública, proposta em consonância com as orientações do Banco Mundial e do FMI, a MP possibilita que empresas privadas captem recursos e fundos públicos, promovendo a concessão da gestão e serviços das escolas públicas às OS (Organizações Sociais, ONGs etc), visando redução de custos com investimento público em educação. A Reforma do Ensino Médio altera, ainda, a formação técnico-profissional no ensino regular e a distribuição da carga horária do ensino médio. Cabe destacar o incentivo da modalidade de Educação à Distância, com a possibilidade de 20% da carga horária diurna ser ofertada via EaD, 30% para os cursos noturnos e 80% para cursos de EJA.

A BNCC do “novo ensino médio”

A BNCC é o documento normativo voltado para a educação escolar que define “aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE)”, afirma os documentos governamentais.

Vejamos brevemente os fundamentos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Como é sabido, o marco legal está na Constituição Federal de 1988 no que se refere ao direito à educação e a obrigatoriedade do Estado. Já em 1996, a LDB direciona para o ensino voltado para princípios como cidadania e trabalho, assegurando a formação básica comum (mínima) em todo o país. Ao passo que as Diretrizes Curriculares Nacionais, entre 1997 e 2013, destacaram a formação crítica como critério fundamental, tendo em 2014, no Plano Nacional de Educação, a meta de universalização da educação básica.

Os fundamentos pedagógicos da BNCC do Ensino Médio focalizam o desenvolvimento de competências e o que se denomina por educação integral (que em verdade se reduz à educação em tempo integral). A noção de competências se baseia nas noções de saber (conhecimentos, habilidades, atitudes e valores) e saber-fazer (o aluno estimulado a resolver demandas cotidianas), ao passo que a concepção de habilidades comtempla as chamadas habilidades práticas, cognitivas e socioemocionais. Em verdade, trata-se da pedagogia por resultados: preparar o aluno para situações cotidianas (aprender a aprender) e adaptado à novas situações em constante mudanças. Importante lembrar que alguns dos pilares da Reforma do Ensino Médio são justamente a noção de competência, de desenvolvimento pessoal (uma espécie de fusão entre coaching e auto-ajuda) e de preparo para atividade profissional. Na prática a nova BNCC corresponde a viabilização curricular para a Reforma do Ensino Médio.

Alguns docentes se perguntam: quais os impactos para a rede federal de educação básica, profissional e tecnológica? E para a formação de EJA? Não se desmonta o trabalho e sua legislação social protetora sem um ajuste de novo tipo na formação para os trabalhadores. É nesse contexto que se encontram as reformas educacionais em curso, as quais pretendem formatar a formação educacional para novas condições de trabalho hiper-precarizado -como fenômenos da uberização do trabalho em plataformas digitais, plataformização, youtuberização, desamtromormofização do trabalho, nos termos de Antunes (2020)-, e no caso da BNCC/PLD, com foco nas competências socioemocionais. A Reforma do Ensino Médio é simultaneamente uma reforma do ensino médio regular (as 1800 horas de educação básica com base na BNCC) e reforma do ensino profissional (até 1.200 horas com base no 5º itinerário formativo), o qual pode ser abatido pelo cômputo de carga horária em cursos diversos de qualificação, estágio supervisionado, experiência profissional ou certificação de atividades não-escolares, representando, de tal modo, a descolarização da educação profissional. Para a rede federal, a nosso juízo, será a criação de um modelo único de oferta de ensino profissional. Sem contar a previsão de 20% do ensino poder ser ofertado na modalidade Ead no ensino diurno, 30% no noturno e 80% na EJA.

 O PNLD-2021 para o Ensino Médio

Como se sabe, o PNLD é o programa nacional para preparo e difusão de material didático, pedagógico e literário para as escolas públicas de educação básica, em todos seus segmentos: educação infantil, ensino fundamental (dos anos iniciais aos anos finais) e ensino médio. Em nossa compreensão, faz-se necessário articular o PNLD com a BNCC e a Reforma do Ensino Médio, uma vez que o PNLD é a integração na prática dessas políticas educacionais.

Entendemos o PNLD como uma política estruturante no contexto de um projeto de desmonte da educação pública. Quais as mudanças do PNLD-2021 no tocante ao Ensino Médio?

Saviani (2009), ao fundamentar uma pedagogia histórico-crítica, entende que a tarefa central da prática educativa do educador crítico é:

empreender a crítica à educação burguesa evidenciando seus mecanismos e desmistificando sua justificação ideológica; ao mesmo tempo, cabe realizar o segundo movimento que implica reorganizar a prática educativa de modo a viabilizar, por parte das camadas dominadas, tendo à frente o proletariado, o acesso ao saber elaborado (SAVIANI, 2009 p.114).

A proposta do governo federal é radicalmente contrária ao desafio proposto pelo prof. Saviani. O PNLD 2021 dilui o conhecimento escolar pelas chamadas “habilidades e competências” de mercado, reorganizando a lógica do currículo por áreas que têm por foco aligeirar o ensino e, apesar de se propor integrador, destitui qualquer concepção pedagógica interdisciplinar autêntica. A ênfase está em livros de projetos que substituem componentes curriculares, ancorados em projetos integradores e projetos de vida reduzidos às competências da BNCC, cujas áreas do conhecimento, adequadas ao novo ensino médio, substituem as disciplinas específicas.

O ano de 2021 está previsto como o ano de execução do PNLD para o Ensino Médio em sua primeira fase: escolha dos projetos integradores e projetos de vida. Dito de outro modo, a fase em que se encontra o PNLD para o Ensino Médio, lamentavelmente denominada por “produto 1”, corresponde a proposta de materiais didático-pedagógicos restritos a livros de projetos: a) projetos integradores, propondo a diluição da fronteira entre as disciplinas com falsa perspectiva interdisciplinar, contexto no qual as áreas do conhecimento (BNCC/REM) substitui as disciplinas específicas; b) projetos de vida, onde o ensino fica restrito ao âmbito das competências da BNCC. Conforme se estrutura, as estratégias educacionais ganham relevância vital na difusão dos conteúdos aligeirados, habilidades e valores voltados aos interesses prático-imediatos, isto é, associados ao modelo de sociabilidade do mercado e da flexibilização do trabalho. Visa-se estimular a preparação psicofísica de adaptação acrítica às instabilidades do mercado de trabalho atual. Estiveram sob consulta no mês de março deste ano.

As próximas fases serão: objeto 2: obras por área do conhecimento em substituição às disciplinas básicas; objeto 3: obras de formação para professores que se adequem ao programa proposto; objeto 4: recursos digitais; objeto 5: obras literárias.

Nada disso é novo. Já são bastante conhecidas as críticas orientadas a base conceitual que fundamenta a noção epistemológica que orienta a reforma (RAMOS 2001), como as elaborações em torno do pensamento complexo de Edgar Morin e das competências de Philippe Perrenoud. A matriz proposta baseia-se em orientações dos organismos multilaterais, vale dizer.

O PNLD corresponde, segundo o governo, a “uma etapa para o alinhamento dos materiais didáticos que deverão apoiar os professores no trabalho com os novos currículos”. Que não deixemos lugar a enganos. O PNLD não se trata apenas da escolha de livros e materiais didáticos. Conforme entendemos, o PNLD 2021 representa uma política educacional estruturante em um contexto de projeto político de desmonte da educação pública e democrática, orientando o preparo de materiais didáticos e do currículo escolar alinhados à BNCC e à Reforma do Ensino Médio, as quais combatemos. Entendemos que a escolha do material didático não pode ser uma consulta burocrática de preenchimento ao questionário digital, mas fruto de amplo debate e reflexão pedagógica. Faz-se necessária a exigência de uma nova condução desse processo em consonância com o diálogo democrático com nossas comunidades escolares e não mediante imposição decorrida da adaptação do Ensino Médio à BNCC que o precariza e privatiza a educação pública. A construção de uma agenda nacional unificada em torno de pautas mínimas que defendam a educação pública democrática. Em seu bojo reivindica-se o conceito de criticidade transformadora da sociedade a urgência de se popularizar a defesa da educação pública.

Considerações finais

Qualquer política educacional que pretenda obter êxito, em perspectiva comparativa, necessita de investimento. Contraditoriamente, vivenciamos um cenário de cortes orçamentários, pandemia, EC-95 e avanço do privatismo e obscurantismo reacionário-autoritário. A pergunta que cabe é: há possibilidade exitosa em uma política educacional no marco de cortes orçamentários?

As perspectivas de continuidade de pandemia e necessidade de isolamento social causado pela Covid-19 parecem indefinidas até a conclusão do presente artigo. O fato é que o pressuposto para a defesa de uma educação democrática está na deposição organizada deste governo com traços neofascistas, aglutinando-se a mais ampla participação popular. O desafio está lançado para impedirmos o suicídio de nossa jovem democracia, como salientou um importante estudioso da educação brasileira. E a saída para a educação, é uma agenda unificada.

 

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Ricardo. O trabalho sob fogo cruzado. Ebook. São Paulo: Boitempo, 2020.

BRASIL. Guia de Implementação da Base Nacional Comum Curricular. Orientações para o processo de implementação da BNCC. MEC, 2020.

_______. Base Nacional Comum Curricular. Educação é a base. MEC.

RAMOS, Marise. A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação? São Paulo: Cortez, 2001.

SAVIANI, Dermeval. Modo de produção e a pedagogia histórico-crítica. Germinal: marxismo e educação em debate. Londrina, v.1, n.1, p.110-116, jun-2009.

TORRES, Michelangelo. Um balanço crítico dos primeiros 18 meses da política educacional do governo Bolsonaro. In: FARIA, Fabiano  Godinho; MARQUES, Mauro Luiz Barbosa (Org.). Giros à direita: análises e perspectivas sobre o campo líbero-conservador. Sobral-CE: Editora SertãoCult, 2020.

__________. A Reforma do Ensino Médio em Perspectiva Didática: o desmonte da educação. (Publicado em: 06/11/2016), disponível em: https://esquerdaonline.com.br/2016/11/06/a-reforma-do-ensino-medio-em-perspectiva-didatica-o-desmonte-da-educacao/

[1] Consultar: https://esquerdaonline.com.br/2016/11/06/a-reforma-do-ensino-medio-em-perspectiva-didatica-o-desmonte-da-educacao/

 

*Michelangelo Torres é prof. do IFRJ, doutor em Ciências Sociais (Unicamp), coordenador geral do SINTIFRJ, membro da Direção Nacional do SINASEFE e coordenador da Frente Nacional por um PNLD Democrático.