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MUNDO

Os condenados da Terra: a pandemia e o continente africano

Por Jean Montezuma

A porta dos sem retorno, em Senegal

“Até que os leões aprendam a narrar suas histórias, os contos de caça glorificarão sempre o caçador.”
Provérbio Africano

 

A lua que se ergue
Na ilha de Gorée
É a mesma lua
Que se ergue em todo o mundo

Mas a lua de Gorée
Tem uma cor profunda
Que não existe não
Em outras partes do mundo
É a lua dos escravos
É a lua da dor

Mas a pele que há
Nos corpos de Gorée
É a mesma pele que cobre
Todos os homens do mundo

Mas a pele dos escravos
Tem uma dor profunda
Que não existe não
Em outros homens do mundo
É a pele dos escravos
Uma bandeira de liberdade

Gilberto Gil e Capinam, La lunne de Gorée 

 

Senegal, 1776. Na pequena ilha de Gorée, situada a 3 quilômetros da costa da atual cidade de Dacar, a traficante Anne Pépin mandou construir a fortaleza que ficaria conhecida como a Casa dos Escravos. É nesse local que encontra-se a infame Porta dos Sem Retorno. Ao final de um corredor, nos fundos da construção e de frente para o Oceano Atlântico, a porta era a passagem pela qual todo homem, mulher ou criança que ali passasse, deveria abandonar de vez a esperança de um dia voltar a sua terra.

Por essas e outras portas sem retorno, passaram do século XV ao XIX, um total de 14 milhões de africanos trazidos a força para o “novo mundo”. Um terço de todos estes apenas para o Brasil, a América portuguesa. O flagelo da escravidão e do tráfico, essenciais para acumulação capitalista, são uma confissão incontornável de que o racismo estrutural faz parte do DNA do capitalismo.

Berlim, 1884. Em pomposos salões, hipócritas diplomatas europeus reuniram-se para redesenhar o mapa da África, partilhando um continente inteiro ao bel prazer da Inglaterra, França, Portugal, Espanha, Alemanha, Holanda e Bélgica. “Generosos”, convidaram para o banquete a ascendente potência dos Estados Unidos da América. Antes da famigerada Conferência de Berlim, o domínio direto dos Europeus sobre a África não chegava a 10% do seu território. Após a partilha imperialista a situação se inverteria drasticamente, às custas de um banho de sangue, genocídio étnico, e toda espécie de crimes contra a humanidade. 

Mas o que tem a ver esse prólogo histórico com o fato atualíssimo da pandemia de Covid-19? Em uma palavra: tudo. Em recente entrevista, o diretor geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Adhanom, afirmou que “A África precisa acordar”. Essa declaração, lamentavelmente vinda de um homem nascido na Etiópia, revela a reprodução de um discurso que há décadas, porque não dizer séculos, estigmatiza e cria caricaturas com intuito de naturalizar e, pior, culpabilizar a África pelo quadro econômico, político e social no qual se encontram a maioria de suas nações. 

Não se pode tratar desiguais como iguais

Num momento onde a curva de infectados e mortos pela Covid-19 se acelera, não pode ser que a conclusão do mundo ao voltar seus olhos para África seja: O que eles estão esperando? Não, não se pode tratar desiguais como iguais. As responsabilidades das nações imperialistas são incontavelmente  maiores, inclusive sobre as vidas que poderão ou não ser salvas em África. Afinal, os séculos de saques de riquezas, de opressão, de conflitos financiados pelos senhores da guerra e todos os crimes da Europa e EUA contra África, cobram sua fatura na ausência de um sistema de saúde preparado, e também de uma estrutura de proteção social para salvar vidas e mitigar os abalos econômicos da pandemia.

É ilustrativo o relatório publicado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em dezembro do ano passado, a partir de dados coletados em 2018, sobre o mapa mundial do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). O IDH é uma fórmula que leva em conta riqueza, alfabetização, educação, natalidade e expectativa de vida. No relatório divulgado, a ONU listou os 189 países dividindo-os em quatro grupos. Os países de IDH muito alto, alto, médio e,  por fim, os de IDH baixo. Entre os 62 países que possuem um IDH considerado muito alto, há apenas um país africano. Já entre os 35 países com o IDH mais baixo estão 30 países africanos.

Já um outro estudo, esse divulgado pelo Banco Mundial em 2015, listou 188 países levando em consideração o seu produto interno bruto (PIB) e um calculo de paridade de poder de compra (PPC) que leva em conta as diferenças de custo de vida de país para país. Entre os 50 maiores PIB’s listados, apenas 4 países são africanos. Já entre os 50 menores PIB’ listados, encontramos 20 países africanos.

Esses números revelados pelos estudos se traduzem, no mundo real, num quadro de vulnerabilidade social dramática no continente africano perante a pandemia do corona vírus. Com níveis distintos de abrangência, vários países do continente estão seguindo as orientações da OMS e adotando medidas de isolamento social. Contudo, como falar em isolamento social quando segundo o UNICEF (Fundo das Nações Unidas para Infância e Juventude) apenas na África Subsaariana, 63% da população que vive em área urbana (263 milhões de pessoas) não tem sequer acesso a água potável? Como, nesse quadro, cumprir a medida básica de higienização que é lavar as mãos?

Na Somália são 15 leitos de UTI para 15 milhões de habitantes

Outros dados que assustam é o de acesso aos respiradores mecânicos, fundamentais para os pacientes que desenvolvem sintomas mais graves de complicação respiratória. A OMS recomenda como ideal de 1 a 3 respiradores para cada 10 mil habitantes. Em Serra Leoa tem apenas 18 respiradores para 7,5 milhões de habitantes, ou seja, 1 respirador para cada 416 mil pessoas. Em Burkina Faso, o quadro é ainda pior com 11 respiradores para 19 milhões de habitantes. Em relação aos leitos de UTI, outro cenário arrasador. Na Somália são 15 leitos de UTI para 15 milhões de habitantes. Em Uganda, 55 leitos para 43 milhões de pessoas. Caso ainda mais extremo é o da Gâmbia, pequeno país com 2 milhões de habitantes e nenhum leito de UTI.

Neste momento a África ainda não é o epicentro da pandemia, mas já há uma aceleração na curva ascendente de contaminação. Os dados atualizados até o dia 14 de abril apontam números mais elevados nos países do norte da África: Egito (2.190 casos e 164 mortes), Argélia (1.983 casos e 313 mortes) e Marrocos (1.793 casos e 126 mortes). Porém, infelizmente o vírus já se espalhou pelo continente e tem ceifado vidas também na África subsaariana, chamando atenção os números da África do Sul, com 2.272 casos e 27 mortes. Aqui é preciso registrar que a subnotificação, confessada por governos como os do Brasil e EUA em seus países, também se aplica na África. O que significa dizer que esses números sobre a África são inferiores ao alcance real da doença no continente.

A África não precisa de caridade, precisa de reparação histórica

Em março, durante reunião do G-20 (grupo das 20 nações mais ricas do mundo), o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, fez um discurso de apelo à suspensão do pagamento da dívida externa dos países africanos. Na última segunda, dia 13, o presidente francês Emmanuel Macron defendeu que França e Europa devem ajudar a África perdoando as suas dívidas. Credores internacionais divulgaram uma lista com 76 países, destes 40 da África Subsaariana, considerados elegíveis para ter a suspensão por um ano no pagamento de dívidas que somam 20 bilhões de dólares.

É insuficiente falar em suspensão da dívida por um ano

É preciso rasgar o véu da hipocrisia imperialista. É insuficiente falar em suspensão da dívida por um ano, e tampouco o continente africano precisa de perdão dos seus algozes europeus. Ambas ideias tem um vício de origem: Atribuem legitimidade a uma dívida que nada mais é que a forma contemporânea de pilhagem da África pela Europa, EUA e agora também pela China. Pilhagem elevada a máxima potência pela agiotagem dos juros.

Para usar as próprias palavras do presidente francês, só é possível construir “uma nova solidariedade e cooperação” se for pela via da reparação histórica ao continente africano. Não se trata de perdoar ou suspender, é preciso anular a dívida externa dos países africanos. Também é preciso devolver a esses países o controle de suas próprias economias, nacionalizando todas as empresas imperialistas que controlam setores econômicos chaves nos países do continente. 

Contudo, é preciso de um plano de apoio imediato com transferência de recursos e apoio logístico. Os números dessa ajuda já existem, e foram apresentados pela Comissão Econômica da ONU para África, que revelou que as perdas no continente africano em 2020 serão de 100 bilhões de dólares. Esse é o recurso que deve ser destinado imediatamente para um plano emergencial de combate ao corona vírus e medidas de proteção social.

Trata-se de uma corrida contra o tempo. Segundo relatório da União Africana, cerca de 20 milhões de empregos formais e informais devem ser perdidos por causa da recessão econômica na África. As condições objetivas, resultantes de séculos de rapina, não nos deixam dúvida de que um desastre humanitário, medido na escala de milhares de vidas, pode ocorrer se o mundo seguir de costas para o continente africano. É tempo de salvar vidas, de reparação histórica e não de caridade hipócrita.

 

“O Machado esquece, mas a árvore recorda”

provérbio africano