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BRASIL

A esquerda e os democratas liberais: crônica de uma luta anunciada

Conforme estamos vendo, instaurou-se no Brasil uma crise política, uma crise na cúpula, em meio a uma pandemia, e, à vista disso, o cabo de guerra tensiona duas alas da burguesia que, não faz muito tempo, estiveram unidas e empenhadas no golpe institucional que desalojou Dilma Rousseff do governo, conduziu  ilegalmente Lula da Silva à prisão, atacou direitos sociais e trabalhistas e ensejou a ascensão de Jair Bolsonaro à chefia do executivo federal. Objetivamente, este artigo trata desse processo e de seus trajetos possíveis, bem como do lugar da esquerda nessa discussão.

Fábio José de Queiroz, de Fortaleza, CE
RawPixel.com

A “burguesia civilizada” e o bolsonarismo

Há dúvidas em relação à conduta política da ala burguesa que, recentemente, partiu para o ataque ao ocupante do Palácio do Planalto. A intenção é encurtar o mandato de Bolsonaro e entregá-lo ao vice-presidente Mourão ou o propósito real é desgastá-lo, reduzi-lo quase a pó, e, desse modo, preparar o retorno da velha aliança burguesa PSDB-DEM em 2022? Ou, quem sabe, tão só cortar as unhas compridas do presidente e deixá-lo, ainda que formalmente, na cadeira presidencial?

Convém destacar que o governo de Jair Bolsonaro não está completamente desamparado, e busca se apoiar no militarismo, no pentecostalismo e em alas do empresariado. Conforme vemos, a cúpula militar parece desempenhar, paulatinamente, o papel de poder moderador e isso tanto pode significar o definhamento do atual condomínio governamental como abrir caminho a uma aventura “salvacionista” que empurre o país à conflagração aberta.

Dialogar com essa realidade implica reconhecer o seguinte: o fato mais visível é o que conduz ao isolamento do presidente de extrema-direita e ao malogro de sua estratégia genocida de enfrentamento à crise sanitária. O deslocamento de órgãos midiáticos muito poderosos – Globo, Folha, Estadão etc. – em relação ao governo federal não é um raio no céu azul. Na razão inversa, responde ao delineamento de um projeto que passa ao largo da legitimação política da família Bolsonaro e de seu esquema próprio de poder.

Do ponto de vista da gramática política, esse movimento de um amplo setor da burguesia liberal-democrática não deve ser desprezado no âmbito da esquerda. Mas no mesmo ato, à medida em que não renunciamos a acordos táticos com esse setor, com vista a defenestrar o neofascismo do poder central do país e salvaguardar às pessoas de soluções criminosas, em meio à calamidade pública em andamento, não devemos nos esquecer de que, do ponto de vista estritamente social e econômico, não há diferença qualitativa entre o bolsonarismo e a alternativa de centro-direita que se desenha no horizonte político.

Afinal, deve-se desconsiderar que o empresariado, o Centrão e a mídia (em particular, a que se opõe às brutalidades da extrema-direita), sob muitos aspectos, defendem o mesmo programa econômico de Guedes e do bolsonarismo? Basta recordar os acordos que os unem no que toca a temas tão sensíveis quanto o desmonte dos últimos direitos trabalhistas, a precarização (vide a proposta da carteira verde-amarela) e o congelamento do salário dos servidores públicos. Mais uma prova de que a burguesia e as suas representações parlamentares e midiáticas, que passaram ao campo da crítica ao governo federal, em última análise, perseguem um trajeto no qual a economia política do bolsonarismo sobreviva à exaustão, e, no limite, à derrocada de Jair Bolsonaro. 

É por esse caminho que se prepara progressivamente o retorno da “direita civilizada” ao coração do poder. 

A crise da cúpula e as esquerdas

Não é uma mera manifestação tópica: o setor burguês que se opõe às tagarelices antidemocráticas e anticivilizatórias, e, portanto, anticientíficas, da família Bolsonaro e de sua trupe não é só uma gama de híbridos que gira em torno de uma perspectiva de centro-direita, mas equivale, na presente situação política, a uma proposta de silenciamento e invisibilização de qualquer proposição com o simples odor de esquerda.

Aliás, não custa rememorar que foi exatamente no confronto com a esquerda que a burguesia liberal recorreu aos serviços do capitão Jair Bolsonaro. Era preferível flertar o neofascismo a correr o risco de ver seguir no comando do país uma esquerda modestamente intervencionista e assentada em uma base socialmente incômoda. 

Não por acaso, em suas polêmicas ao redor da conjuntura, a mídia ignora qualquer força política que não seja a da direita clássica ou a da extrema-direita. É como se só existissem unicamente esses dois caminhos, e entre esses dois itinerários a classe trabalhadora morre espremida. Por isso, somente através do trabalho paciente e nunca fora dele, a esquerda, e dentro dela a esquerda socialista, pode oferecer uma saída que corresponda aos interesses da classe trabalhadora.

Essa alternativa não se cria por si mesma e não espera inerte o dia de amanhã. Ela começa hoje e passa por lutar ao redor de um programa econômico dos trabalhadores e do povo pobre, que faça frente à crise sob o ângulo da nossa classe. Isso implica lutar por destituir o governo Bolsonaro e negar categoricamente o programa com o qual ele governa o país. Quando hoje se fala de uma agenda de flexibilização dos direitos sociais e trabalhistas, malgrado o furor da catástrofe atual, ressalta-se uma plataforma programática que une da ultradireita ao centrão, da Globo a FSP, do DEM ao PSDB, dos Bolsonaros ao Maia.

Nessa perspectiva, se as forças que se opõem aos retrocessos e preconizam a mudança social não compreenderem a tática preferencial da burguesia, e não lutarem contra ela, os riscos que ameaçam os trabalhadores e os pobres, ameaçam, também, às organizações de esquerda. Todo discurso de civilidade da burguesia e de seus meios de comunicação estão tingidos de reserva à esquerda e de elevação do Centrão, do ministro Mandetta e do governador de São Paulo à condição de únicos opositores sensatos e moderados às sandices do governo Bolsonaro. 

Esse procedimento equivale a um mecanismo de garantia de que tudo se altere sem nada, efetivamente, se modificar. Assim, a esquerda, mesmo a mais comedida (PT, PCdoB), que se contenta, muitas vezes, a se colocar a reboque das forças de centro, de fato, permanece como se não existisse e estivesse condenada ao exílio em seu próprio país. Não é por coincidência que, em sua polêmica com Dória, por esse haver agradecido a um elogio de Lula da Silva, a jornalista do Estadão, Vera Magalhães, deixa nítida esta delimitação: Lula, PT, esquerdas – não passarão! A sua declaração tosca e raivosa é, também, sincera. Magalhães e os parceiros da classe burguesa querem resolver entre eles as contendas em curso, sem que isso signifique abrir espaço às forças de esquerda, mesmo àquelas mais brandas e contidas. 

Se essa tática triunfa, os que vivem da venda de sua força de trabalho, e pior, aqueles que sequer conseguem vender a força de trabalho, e, mais do que isso, os seus porta-vozes na superestrutura, as agremiações de esquerda, pagarão um alto preço pela crise. Pagarão, hoje; seguirão pagando, amanhã. 

Uma última questão

Há uma baixa notável de expectativa quanto à persistência de um governo atípico, que se sintoniza com o programa econômico da burguesia, mas cospe na mesa, limpa a boca com a mão e arrota bem no meio da boa prosa pós-ceia. Esse problema pode favorecer à luta pelo Fora Bolsonaro, ou, mais amplamente, o Fora Bolsonaro-Mourão. 

Se alguém enuncia que se trata de uma questão de civilidade, de retirar do caminho a expressão mais típica da barbárie, que é o governo de Jair Bolsonaro, não há grandes dificuldades de se estabelecer um acordo pontual em torno a esse caminho imediato. Mesmo um compromisso tácito com órgãos da mídia, governadores, congresso e STF, na defesa da política de isolamento social e das orientações da comunidade científica, tem pertinência. 

O que não devemos renunciar, no entanto, é a um programa que indique a necessidade de defesa incondicional da integridade física e histórica de trabalhadoras e trabalhadores, começando por protegê-los da fome e do vírus. Daí a urgência de unir às organizações do nosso campo e fomentar a resistência, pois se trata de desprecarizar quem está precarizado e não de precarizar os que ainda não são vítimas da precariedade. Essa é a tarefa imediata da nossa classe, é o que nos divide dos democratas liberais e anuncia os alinhamentos da luta de classes; e é aqui, por fim, que estão ancorados o presente e o futuro da esquerda, notadamente da esquerda socialista. E isso, seguramente, não pode esperar por 2022