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Aonde vamos? Três hipóteses sobre a dinâmica da crise política

Valerio Arcary

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

A situação vai ficar muito mais grave, antes de melhorar. Ela vai nos colocar diante de desafios perigosos. A possibilidade de interrupção do mandato se abriu, embora não seja a mais provável, porque não tem apoio de nenhuma fração burguesa importante. Mas a crise sanitária pode ser explosiva, Bolsonaro pode cometer erros muito mais graves, e as massas populares podem entrar em cena.

Viemos há cinco anos de acumulação ininterrupta de vitórias das forças reacionárias, mas não houve derrota histórica. Há que evitar tanto os otimismos “selvagens”, quanto os pessimismos “hipocondríacos”. Sejamos realistas, portanto, paciência revolucionária. Nossa aposta repousa na confiança de que em situações extremas as massas populares e a juventude liberam forças extraordinárias, e tiram lições políticas mais rapidamente.

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Os cenários políticos serão condicionados pela evolução da crise sanitária e da crise econômico-social. Eles serão decisivos para prever os desdobramentos políticos. Os parâmetros objetivos que permitem projetar a dinâmica da evolução da pandemia no Brasil serão, essencialmente, a extensão e intensidade do contágio, e a taxa de letalidade.

Não há dados incontroversos, porque não foram feitos testes em massa e é improvável que se consiga fazê-los antes de maio. Não está claro quais serão as terríveis dimensões da catástrofe. Mas serão dramáticos, porque as projeções mais moderadas consideram dezenas de milhares de óbitos já na primeira onda, e as mais apocalípticas não menos de centenas de milhares.

O impacto poderá favorecer as inevitáveis conclamações à “unidade nacional” contra o vírus. Governos e mídia apresentarão o flagelo como inevitável, anistiando os governos em todas as esferas. Mas é possível que este discurso não seja suficiente para acalmar o mal estar popular. Porque associada ao crescimento da demanda por atendimento hospitalar, veremos as condições materiais de sobrevivência das grandes massas se deteriorar. A aprovação do programa de renda mínima de emergência para cinquenta milhões de pessoas será um fator de relativa atenuação da catástrofe, mas tem prazo curto de validade, porque uma segunda onda de contágio é previsível.

Nesse contexto, temos três grandes cenários políticos. O primeiro e mais provável, neste momento, é que a pressão pelo enquadramento de Bolsonaro seja, em alguma medida, bem sucedida durante a crise. Enquanto ganha tempo, e procura sair do isolamento, Bolsonaro pode tolerar um “freio de arrumação” das alas em disputa, ou uma gestão do ministério articulada pelos generais do Planalto, e mediada por Braga Neto. Seria um passo atrás, transitório, enquanto se verifica o ritmo da pandemia e suas sequelas econômicas.

Ninguém sabe, realmente, as negociações que aconteceram nestas últimas duas semanas na cozinha do Palácio. Mas parece prevalecer um acordo de divisão de tarefas, em que Bolsonaro e sua ala neofascista, contrariados, aceitaram que a linha de Mandetta continue sendo aplicada, diante do jogo de pressões. Mas Bolsonaro já provou que é incontrolável. Essa hipótese é a que tem hoje o apoio explícito da maioria da classe dominante.

A segunda hipótese é que diante de um agravamento desastroso da pandemia, de uma insatisfação social crescente, de um comportamento irresponsável de Bolsonaro, e o perigo de uma subversão revolucionária a chilena, uma maioria burguesa se constitua defendendo um deslocamento de Bolsonaro a “frio”, pelas regras constitucionais. Acontece que o Brasil não é a Argentina. Seria uma solução extrema para a burguesia brasileira, portanto, menos provável. A tradição da cultura política em Brasília é a negociação permanente.

O maior problema é que Bolsonaro não aceitará nunca a renúncia. Não é o seu perfil político, social ou psicológico. Não é Jânio Quadros, embora venha ensaiando blefes bonapartistas, como o de 15 de março. Por outro lado, a urgência de manutenção da linha de distanciamento social não é a mesma do início dos anos sessenta. Líderes como Bolsonaro lutam até ao fim. Preferem a morte à rendição sem luta. Apelaria à mobilização de massas de suas hordas envenenadas pela ideologia neofascista.

Nessas circunstâncias, porque um animal político encurralado é muito perigoso, Bolsonaro poderia apelar para a decretação de Estado de Sítio, a tentação golpista. Um deslocamento a “frio” teria que ser, portanto, uma intervenção implacável, cirúrgica, instantânea: um impeachment de emergência, feito às pressas, e negociado com o Supremo, “com tudo”. Ou uma combinação de impeachment parlamentar com julgamento do STF. Sempre existem advogados habilidosos para a arquitetura de um processo.

A terceira hipótese seria a abertura de um deslocamento a ”quente”, uma derrubada revolucionária de Bolsonaro. Essa hipótese, que deve ser a estratégia do PSol, e por ela deve lutar para construir a Frente Única de Esquerda é, por enquanto, infelizmente, muito improvável. Por várias razões. O maior obstáculo é que ela não depende somente das sequelas do cataclismo sanitário e social, ou das barbaridades que Bolsonaro venha a cometer.

Para que a situação venha evoluir nessa direção são necessários, também, outras três condições. A primeira é que a burguesia e seus representantes, tanto no Congresso Nacional e STF, como nos governos estaduais, venham a cometer erros de gestão da crise que levem a uma ruína nacional sem precedentes, um fracasso retumbante. A segunda é que as massas entrem em cena com disposição revolucionária de luta. A terceira é que os partidos de esquerda com maior influência não aceitem os cantos de sereia da classe dominante, e não abracem a estratégia quietista de deixar sangrar Bolsonaro até 2022, aceitando dar tempo para Bolsonaro se recuperar, com medo de medir forças nas ruas. Ou, tão grave quanto, uma rendição diante de Mourão como um mal menor.

O papel da esquerda deve ser a defesa de uma saída anticapitalista. O Brasil precisa de uma esquerda com instinto de poder. E um programa socialista.