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31 de março: a ideologia golpista, ontem e hoje

André Freire

Historiador e membro da Coordenação Nacional da Resistência/PSOL

Nesta semana, será lembrado mais uma vez o aniversário de uns momentos mais repugnantes da história de nosso país. O dia 31 de março de 1964 ficou marcado como a data em que a cúpula das forças armadas brasileiras, especialmente do Exército, derrubou o governo legítimo de João Goulart.

Para consumar este golpe ilegítimo, os comandantes militares da época contaram com o apoio esfuziante de grandes empresas, incluindo a esmagadora maioria da mídia. Além, como é nítido, tiveram também a autorização e o auxílio ativo do imperialismo estadunidense para impor esta ditadura. Na verdade, se inaugurava e consolidava um longo período de presença de ditaduras militares na maioria dos países da América Latina, apoiadas pelos governos dos EUA.

O discurso mentiroso de então, afirmou que o golpe era na verdade uma “revolução democrática”, e seria uma necessidade para o povo brasileiro. Afinal, protegeria o nosso país de uma “ditadura comunista ou sindicalista”. Por isso, seria um governo provisório de curta duração, que logo se encerraria com a convocação de novas eleições, já no ano de 1965.

Este discurso farsante levou a muitas lideranças de partidos burgueses de direita a apoiar o golpe, considerando que ele beneficiaria o seu projeto político eleitoral. Bem, a história já mostrou que tudo não passou de uma grande mentira: a ditadura durou mais de 30 anos. E, além de lideranças da esquerda e dos movimentos sociais, até uma parte dos políticos que apoiaram o golpe de 64 foram perseguidos e cassados pelos governos militares que se sucederam no poder.

As mobilizações pelo fim da ditadura tiveram um grande momento de ascenso no ano de 1968, com um forte movimento democrático de rua, que foi sufocado por uma repressão sangrenta, que culminou com a instituição do Ato Institucional número 5 (AI-5), inaugurando um período ainda mais duro e criminoso deste regime ultra autoritário.

Os movimentos sociais e sindicais só vieram se recuperar da derrota de 1968, cerca de 10 anos depois, com as manifestações que se iniciaram, principalmente no ABC paulista, tendo as greves metalúrgicas à frente, que cobravam melhores salários e condições de trabalho, mas que evoluíram rapidamente para a luta pelo fim da ditadura.

Em 1984, assistimos o grande momento da campanha das Diretas já, com suas gigantescas mobilizações que exigiam eleições presidenciais. Apesar de toda a incrível pressão popular, o Congresso derrotou a emenda das diretas, iniciando uma transição lenta e gradual, que era apregoada pelos próprios apoiadores do regime militar, elegendo um governo civil de forma indireta, prometendo uma nova constituinte e adiando por mais alguns anos às eleições diretas para presidente da República.

A Constituição de 1988 e as eleições presidenciais de 1989 podem ser considerados os principais fatos históricos que encerram por completo esta fase política mais autoritária em nosso país. Portanto, um intervalo histórico de pouco mais de 30 anos nos separa deste período.

Um balanço mais atento das últimas três décadas de funcionamento de um regime democrático liberal – com todos os seus terríveis limites e com a manutenção de muitos traços autoritários de nosso passado recente – não foi suficiente para enterrar de vez a ideologia golpista, ainda presente com muita força na cúpula das forças armadas e nos setores mais reacionários da política brasileira.

Inclusive, os cerca de 13 anos de governos de conciliação de classes encabeçados pelo PT não representaram um avanço substancial neste terreno. Diferentemente de outros países latino-americanos, como a Argentina, em nosso país não houve um processo sério de punições ao verdadeiro terrorismo de estado praticado pelos governos militares.

Apesar de avanços muito pontuais, a Lei de Anistia, uma legislação que sempre limitou muito um processo sério, profundo e transparente de memória e julgamento destes cruéis criminosos, permaneceu intacta em todos estes anos.

Inclusive, sequer esta ideologia golpista e ultra autoritária foi combatida seriamente no interior das forças armadas. Por exemplo, nas escolas de formação de oficiais, nunca houve de fato uma discussão curricular democrática e foi mantido o ensino da História do Brasil dos tempos da ditadura, inclusive, apresentando uma versão extremamente positiva do golpe de 64.

Na verdade, usando termos bastante comuns em tempos de pandemia da Covid-19, o vírus do golpismo esteve incubado (em baixa intensidade) todos estes anos, para voltar com toda a sua força de contaminação principalmente nas passeatas reacionárias que se iniciaram em 2015, com a bandeira do impeachment fraudulento da ex-presidente Dilma Rousseff, um golpe de tipo parlamentar, sem crime de responsabilidade comprovado.

O novo contágio do vírus golpista

O atual presidente Jair Bolsonaro, apareceu no mundo político e se elegeu sucessivamente com deputado federal justamente neste período de funcionamento regular do chamado regime político liberal. Sempre fez questão de se apresentar publicamente como um defensor do “período de chumbo”. Inclusive dos porões da ditadura, com as homenagens a conhecidos torturadores e assassinos, como seu ídolo maior, o coronel Ustra, um dos poucos torturadores que chegaram a ser condenado pela justiça brasileira.

Bolsonaro repetiu, inúmeras vezes, inclusive na bancada da Câmara dos Deputados, muitos dos argumentos usados para tentar legitimar o golpe de 1964. Entretanto, ele nunca foi combatido com a importância devida, sendo tratado apenas como uma espécie de lunático. Mas, o que parecia uma ideologia muito minoritária, ganhou grande relevância na esteira do movimento golpista contra a presidente Dilma Rousseff.

Novamente, políticos da direita tradicional “namoraram” abertamente com o golpismo, especialmente o PSDB, considerando que seriam os depositários naturais dos dividendos da derrubada ilegítima dos governos de conciliação de classes encabeçados pelo PT. Ledo engano, mais uma vez, a história se repete como farsa. Igualmente aos políticos do velho PSD da década de 60 do século passado, os tucanos de hoje foram consumidos pelo próprio golpismo, que estimularam de forma criminosa e irresponsável.

Num curto período, das manifestações reacionárias de 2015, passando pelo golpe parlamentar de 2016 e os breves anos do governo ilegítimo de Temer, tomou corpo e ganhou grande apoio um projeto de extrema direita neofascista, o chamado bolsonarismo. Nas eleições presidenciais de 2018, marcadas pelas fraudes do impedimento da candidatura do ex-presidente Lula e pelas “Fake News”, Bolsonaro se elege presidente.

O que parecia improvável, e até impossível para alguns, acabava de acontecer. Aquele deputado desprestigiado no Congresso virava presidente, nos escombros de partidos tradicionais da velha direita. Como uma conclusão evidente, desde pelo menos o golpe do impeachment de 2016, não vivemos de fato uma normalidade democrática em nosso país. E este processo só vem se aprofundando, com um sentido reacionário, com a chegada de Bolsonaro ao governo.

Para quem ainda está na dúvida sobre a escalada golpista deste governo, basta ler a “ordem do dia” enviada hoje aos quartéis, assinada pelo ministro da defesa e os três comandantes gerais das forças armadas, defendendo o golpe militar de 64 e a ditadura”.

Ou postagens como essa, do vice-presidente Hamilton Mourão, elogiando o golpe de 1964.

 

Derrotar a estratégia golpista do bolsonarismo

Durante seus 15 meses de governo, Bolsonaro buscou a todo momento consolidar seu projeto autoritário de fechamento do regime político atual. Trouxe para o núcleo central de seu governo neofascista novamente a elite das forças armadas, especialmente do Exército.

Além dele e do vice-presidente Hamilton Mourão, outros oito ministros possuem origem direta em alguma das forças militares. Não é difícil achar, por exemplo, no Google, declarações públicas de figuras como os generais da reserva Mourão e Augusto Heleno, favoráveis a ditadura, além do discurso anti-comunista e contra a esquerda e os movimentos sociais de conjunto.

Também como nos idos de 1964, buscam legitimar seu projeto golpista na falsa necessidade de evitar uma rebelião de esquerda em nosso país. Como ficou nítido na ameaça de um novo AI-5, saída da boca de Augusto Heleno, Paulo Guedes e Eduardo Bolsonaro, caso acontece no Brasil mobilizações legítimas que estamos assistindo recentemente no Chile. Inclusive, os ataques permanentes a Soberania da Venezuela demonstra que se repete, novamente, até a estreita vinculação do novo projeto golpista brasileiro com o imperialismo estadunidense.

O governo Bolsonaro é uma combinação perversa entre um projeto econômico ultra liberal e um projeto político ultra autoritário. Uma ameaça constante aos mínimos direitos sociais e as já limitadas liberdades democráticas existentes. E, agora, mais recentemente, diante da hecatombe da pandemia do novo Coronavírus, este governo se transformou numa ameaça direta a vida da maioria do povo brasileiro, com a sua cruzada assassina de acabar com o necessário e urgente isolamento social, ara tentar evitar um maior contágio da desta pandemia.

O bolsonarismo ainda não forjou as condições necessárias para impor sua saída de força, de forma completa e absoluta. Mas, sejamos realistas, os grandes testes para isto ainda estão por vir. O que fica mais nítido, a cada dia, é que o bolsonarismo já iniciou seu processo de golpe contra o regime político atual. Este projeto neofascista quer impor um novo regime político, onde a figura do presidente esteja acima de todas as instituições e governe de forma autoritária sem nenhum limite relevante.

Grande parte das grandes empresas e bancos, embora busque – sempre suavemente – tentar colocar algum limite no ímpeto autoritário de Bolsonaro, no fundamental apoia este governo, pela aplicação arrisca da agenda econômica de Guedes.

Felizmente, as posturas absurdas e criminosas de Bolsonaro, diante da tragédia anunciada em nosso país devido a Covid-19, o desgaste deste governo se ampliou na maioria da população. Nas próximas semanas, devemos observar com mais nitidez a consolidação de uma maioria popular contra a manutenção deste governo, principalmente entre os trabalhadores e a juventude.

Mesmo com os limites objetivos impostos pela “quarentena”, os partidos de esquerda e o conjunto dos movimentos sociais devem aproveitar o momento para consolidar e fortalecer uma frente única dos explorados e oprimidos, com o objetivo de criar as condições necessárias para derrubar Bolsonaro, Mourão e esse governo neofascista de conjunto.

Não será a maioria reacionária e corrupta do Congresso ou do poder judiciário que fará parar o atual projeto golpista da bolsonarismo. Mais uma vez, esta tarefa recai sobre os ombros do povo trabalhador e da juventude, de suas organizações políticas, movimentos e entidades.

Na construção de ações concretas de proteção da vida da maioria durante a pandemia e na luta pelo Fora Bolsonaro e Mourão, devemos unir todos os setores democráticos que se oponham a escalada autoritária do bolsonarismo e queiram lutar nas ruas para dar fim a este governo de extrema direita neofascista.

No próximo período, viveremos novamente importantes capítulos do combate ao vírus do golpismo na política brasileira. Uma tarefa inadiável, que deve estar cada vez mais no centro das preocupações da esquerda brasileira e dos movimentos sociais. Mãos à obra.