Pular para o conteúdo
Colunas

O privilégio de viver: o caráter classista da pandemia

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
(Caetano e Gil em “Panis et circenses”)

 

A universalidade de um fenômeno, como a atual pandemia, ajuda a explicitar as relações contraditórias entre as particularidades que constituem essa mesma universalidade. Ainda que originariamente de natureza “biológica”, a relação “coronavírus e corpo humano”, por se manifestar em uma totalidade concreta, a sociedade capitalista, adquire, ou melhor, é “sobredeterminada” por, uma dimensão social. Tal dimensão é, em última análise, o estrutural antagonismo material entre as classes sociais, que por sua vez se encontra condensado no Estado capitalista, responsável pelas políticas públicas (sempre classistas) adotadas em meio à crise. Também na luta contra o coronavírus se manifesta, e não poderia ser diferente, a luta de classes.

Transportada, internacionalizada e propagada pelos setores burgueses e médios altos, mais cosmopolitas e adoradores de aeroportos, a doença tende a se difundir inicialmente nos bairros mais abastados para, depois, vertiginosamente, se espalhar pelas regiões centrais e, sobretudo, periféricas das grandes cidades, áreas estas habitadas e/ou frequentadas pelos trabalhadores e setores populares em geral. E é justamente entre a classe trabalhadora, aquela que não dispõe daquilo que Marx chamou certa vez de “o poder dos poderes” do nosso tempo, o dinheiro, que os casos se tornarão mais volumosos, mais graves e, portanto, mais letais. Já os grandes capitalistas, os homens de grande fortuna, conquanto se constituam também em seres biologicamente humanos (apesar de em boa parte já subjetivamente desumanizados e desprovidos da virtude), possuem desproporcionalmente recursos, contatos e poderes que lhes permitirão melhor se precaver e se tratar diante do caos viral que assola o país, e que torna o caos social ainda mais caótico, para sermos pleonásticos. São eles os que têm, hoje mais do que antes, o privilégio de viver.

Do outro lado, dos lados daqueles que vivem ou tentam viver da venda da sua força de trabalho, é o medo, a angústia e a morte que se avizinham. Alguns trabalhadores, com contratos formais tanto nas empresas privadas (como os operários da construção civil e os comerciários, por exemplo), quanto no setor público (como os bancários e petroleiros, entre outros) estão compulsoriamente indo ao trabalho, e sendo colocados em risco contra a sua vontade, contra a sua vida. Já alguns trabalhadores precarizados ou informais temem que suas ausências possam ocasionar suas demissões, enquanto outros destes sabem que se não trabalharem de dia não terão o que comer à noite com suas famílias, e nem terão água, luz e gás em suas casas. Dentre o conjunto da classe de trabalhadores, muitas mulheres, em função da paralisação das escolas e creches, acabam tendo que ficar o dia inteiro no cuidado da prole, enquanto a juventude negra tem que ao mesmo tempo se precaver perante o vírus biológico e seguir se protegendo do letal vírus policial. Os trabalhadores mais empobrecidos, por sua vez, com menos acesso à saúde, habitando lugares degradados e dormindo em moradias apinhadas e sem higiene adequada, tornam-se ainda mais vulneráveis nesta pandemia, e é certamente entre eles que o vírus terá maior proliferação e levará a mais mortes. Não obstante essas inúmeras particularidades no interior da classe trabalhadora, marcada por sua heterogeneidade e complexidade, ela é um sujeito social universal, posto que estruturado por oposição ao capital na vida material e constituído subjetivamente por experiências comuns de luta contra ele. E é esta classe, como um todo, a maior vítima potencial desta pandemia que começa a grassar no Brasil, favorecida pelas posturas ultraneoliberais e neofascistas do governo Bolsonaro. Em uma palavra: existe uma determinação classista na pandemia e, por isso, justamente por isso, é necessário travarmos uma luta, uma luta de classes, em meio a ela.

Faz-se necessário e urgente difundirmos nossas exigências e reivindicações, de modo a pressionar o Estado capitalista para que aplique políticas públicas que atendam ao conjunto da classe trabalhadora, o que significa, por óbvio, que tais políticas devem dar conta das especificidades e particularidades dos diferentes estratos que a constituem. Em um momento de crise aguda como este, o verdadeiro privilégio, o privilégio da vida, torna-se cada vez mais um privilégio de classe, um privilégio do capital. De nada adianta agora uma retórica entre nós que impute àqueles que podem trabalhar em casa uma condição de “privilegiado”, nem atribuir este labéu aos trabalhadores de certas empresas privadas, aos quais foi permitido fazer rodízio. Igualmente infrutífero e divisionista é, corroborando a antiga e incontinente narrativa neoliberal, taxar como “privilegiados” alguns servidores públicos que puderam suspender total ou parcialmente suas atividades. É necessário lutarmos, todos e todas, para defender a saúde e a vida do conjunto dos trabalhadores e trabalhadoras nesse momento, e isso deve ser feito com a defesa de políticas que permitam tanto ao sistema público de Saúde, o SUS, estar pronto para recebê-los, como lhes proporcionem condições materiais para se alimentarem e viverem dignamente. Fundamental também é exigirmos melhores condições e cuidados especiais para aqueles que atuam nos serviços essenciais, em especial os trabalhadores e trabalhadoras da área da Saúde.

O privilégio, convém lembrar, não está do lado de cá, e sim do lado de lá, do lado onde o lucro vale mais que a vida. Os verdadeiros parasitas, os verdadeiros privilegiados, são eles, são aqueles que desfrutam de modo exclusivo e egoísta daquilo que deveria ser de todos, mas que no capitalismo ultraneoliberal e neofascista mostra-se cada vez mais como um privilégio, o privilégio de viver.

 

Marcado como:
coronavírus