“Esse vírus não vai chegar, é coisa de rico”, dizia Debora*, rindo, no começo da semana. “A gente tem muita coisa pra se preocupar, não tem tempo pra ficar pensando nessas coisas. As doenças aqui são piores, tamo imunes”, diz outra pessoa, provocando risadas. Era sábado, 14, estávamos em uma ocupação urbana, o sol estava reinando absoluto em seus 33 graus, as sombras eram escassas e raras de se encontrar.
Desde então, o assunto é o Covid-19 e sua propagação pelo Brasil. Todo mundo fala disso. Nas ruas de Maceió, o brega funk do coronavírus já é sucesso e pessoas se cumprimentam brincando com a situação: “o corona vai te pegar”, ouvi mais cedo dois vendedores ambulantes no centro falarem um para o outro. A mídia não trata de outra coisa. Nas universidades e escolas as aulas foram suspensas, e as primeiras medidas estão sendo tomadas por governos estaduais e prefeituras. Enquanto isso, Bolsonaro trata do tema com negacionismo e Guedes está mais preocupado em salvar o mercado financeiro do que a vida da população.
Neste momento a maioria dos brasileiros já viu nos jornais ou recebeu pelo whatsapp informações sobre a necessidade de lavar as mãos com frequência, o uso do álcool em gel, e o alerta para o distanciamento social e a quarentena. Uma parcela da população parece entrar em uma espécie de pânico coletivo, um número menor segue o negacionismo de Bolsonaro, e outra parte faz como a companheira Débora, tenta seguir a vida normalmente, pois não têm tempo para se preocupar. Este último grupo não o faz por ser egoísta, ou por não ver os perigos que o coronavírus representa, mas pelo simples fato da vida ser por demais dura para eles. Este último grupo, quando tem possibilidades para se preocupar com a questão, encontra obstáculos reais para efetivar medidas tidas como simples.
Debora e outras dezenas de famílias que moram nesta ocupação sequer tem água encanada nos barracos de lona e madeira que ergueram na periferia da capital alagoana. O banheiro no local é coletivo, e apesar de todos saberem do perigo do covid-19 é realmente impossível seguir as recomendações tidas como básicas pela Organização Mundial de Saúde.
É de conhecimento geral que a forma mais simples de combater o coronavírus e sua disseminação é lavar as mãos com água e sabão regularmente, porém, esse ato cotidiano para muitos, pode não ser tão simples para grande parte do povo brasileiro por um problema maior: a falta de saneamento básico.
Favelas e periferias de todo o Brasil têm uma realidade parecida. O esgoto a céu aberto faz parte da paisagem, a falta constante no abastecimento de água já não surpreende, acúmulo de lixo pela falta de coleta feito pelo serviço público faz com que andar desviando do mesmo ou por cima dele seja natural, sem falar na super densidade demográfica com imensas aglomerações populacionais e na falta de um sistema de saúde que atenda adequadamente os moradores.
Imagine que a água cai de sua torneira apenas três vezes por semana, você tem que estocar a água e buscar racionar seu uso, o mínimo possível para que possa durar durante os dias, e que agora é recomendado que lave as mãos com frequência, com a mesma quantidade de que se tinha antes. A conta não fecha e a orientação dada pelos governos e médicos acaba sendo uma ilusão.
O Brasil não é a Itália, a Espanha ou os Estados Unidos. E o Brasil de verdade, o Brasil profundo, não é o mesmo país no qual vivem a classe média paulista e carioca. No Brasil real, metade da população, mais de 100 milhões de pessoas, vive mensalmente com apenas R$ 413. É com este valor irrisório que pagam as contas, se alimentam, compram produtos e suas necessidades. Existem aqueles que estão ainda piores, 10% dos brasileiros sobrevivem com inimagináveis R$ 51 reais mensais. Estamos falando de um país com 11 milhões de desempregados, e outras 38 milhões que vivem em condições de subemprego ou informalidade. Na população negra, a taxa de informalidade é 48% daqueles que estão no mercado de trabalho. Sem salário fixo, sem direitos trabalhistas, e sem possibilidade de manter a distância social, a possibilidade destes de se auto declararem em quarentena é praticamente nula. Esta é a realidade de grande parte dos trabalhadores do país. Pensar sobre o coronavírus, sua propagação e como impedir a mesma, sem levar em conta estes milhões de brasileiros que são maioria da população é irrelevante.
Usaremos aqui a realidade da favela do Sururu do Capote, apenas uma das que existem a beira da Lagoa Mundaú (que na verdade é uma laguna) em Maceió. Onde as residências são improvisadas com uma combinação de pedaços velhos de madeira, papelão e uma lona preta. Lá são três mil lares improvisados, onde moram dez mil pessoas, a imensa maioria com um cômodo apenas, onde se amontoam roupas, lixo, garrafas, materiais de trabalho e eletrodomésticos (quando se tem). As barracas levantadas também se amontoam uma ao lado da outra, no máximo espaços de um metro e meio entre as lonas pretas. A energia é por meio de gatos e gambiarras, água potável não faz parte do cotidiano de parte das famílias, que utilizam água dos vizinhos quando estes têm. Muitos trocam o fogão a gás por lenha por conta do alto preço do gás, e banheiro é literalmente a beira da lagoa. É comum os chamados “pombos sem asa”, que é quando se defecam em sacolas e jogam a mesma em direção a lagoa ao grito de “olha o pombo”, em um aviso aos distraídos que podem ser atingidos.
Em locais assim, onde a miséria absoluta é presente, e em grande parte das favelas e periferias do Brasil, teremos um problema de saúde pública gigantesco caso o covid-19 chegue antes do saneamento básico e de políticas públicas efetivas.
Se a população de risco para o covid-19 é em especial pessoas idosas, quando o covid-19 encontra as favelas no Brasil isso pode mudar. Em cidades como São Paulo, a expectativa de vida nas áreas periféricas é de apenas 59,8 anos, 23 a menos que aquelas pessoas que moram em áreas nobres da capital paulista. É um fato que no Brasil moradores de periferias e favelas, sendo estes em maioria pessoas negras, sofrem com mais doenças crônicas, e vivem menos. Com as favelas e periferias sendo locais de potencial contaminação em massa, por conta da super densidade populacional, existe um triste e real possibilidade de que aqui no Brasil a população de risco para o covid-19 tenha endereço definido e cor de pele bem marcada.
A soma entre falta de saneamento básico e ao acesso a saúde pública nas favelas e periferias mais o racismo institucional que faz parte do modo de produção capitalista no Brasil e que gera uma necropolítica por parte do Estado brasileiro, pode ter um resultado nefasto.
Por mais que ações individuais sejam importantes, jogar medidas de prevenção apenas para o âmbito pessoal não é a melhor forma. É preciso exigir do Estado políticas públicas para a população e uma ampla campanha de conscientização. Infelizmente nem todos podem, por decisão pessoal, ficar em isolamento social. Não estamos fazendo política no abstrato. São pessoas de carne e osso, e também de cor da pele e endereço, que serão infectadas e que precisarão ficar em quarentena, assim como utilizar o Sistema Único de Saúde. Um grupo social específico infelizmente irá sofrer mais com o crescimento da pandemia no Brasil. Existe um fator que deve nortear a nossa política também neste caso e ele é essencialmente a raça e classe.
É de urgência que os governos pensem políticas públicas de prevenção com foco na população negra e periférica. Simplesmente pelo fato das medidas propostas até agora serem de realização difícil por conta das condições de vidas que estas pessoas estão submetidas.
Como limpar as mãos com álcool em gel e usar lenços quando não se tem condições para comprar os mesmos? Como lavar as mãos regularmente quando se falta ou não se tem acesso á água encanada? Como ficar de quarentena quando não há cômodos suficientes para isolar o doente dos demais? Como seguir a recomendação para ficar em casa sem dinheiro para pagar contas de água e luz, e para a alimentação e sem a liberação do patrão? A pessoa simplesmente falta ao trabalho correndo o risco de ser demitida? Com a liberação das escolas públicas, quem acompanha as crianças mais novas em casa no caso dos responsáveis terem que ir para o trabalho? Com o cancelamento das aulas, como ficam a alimentação dos alunos que necessitam da merenda? São essas questões e através destas perguntas que devemos fazer política para a crise do Covid-19.
*Debora é um nome fictício usado para manter de forma anônima a pessoa em questão.
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