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BRASIL

O materialismo da moral ou por que Damares é querida pelo povo

John Aquino*, de Pacatuba (CE)
Reprodução Youtube / Roda Viva

 

Li recentemente que a Damares é uma das ministras mais bem avaliadas do Governo Bolsonaro pela população mais pobre [1], principalmente pelas mulheres. Escutei muitas pessoas aqui pelo Conjunto Jereissati III [2] (não foi pelos bares boêmios do Benfica ou nos bosques do Centro de Humanidades da UFC) elogiando a proposta do governo de uma suposta “abstinência sexual” como forma de prevenir a gravidez na adolescência. Enquanto isso uma parcela considerável da esquerda, geralmente de origem pequeno burguesa, ficou ridicularizando a proposta da Damares.

Recentemente um aluno meu de Itapipoca [3] disse que o bairro onde ele morava estava muito perigoso até chegar uma igreja e os “pivetes” começarem a se converter e sair da “pirangagem” (palavras dele) e que isso fez com que a maior parte da vizinhança se convertesse e fosse para igreja em reconhecimento ao papel que ela desempenhou em tirar a juventude do mundo do crime. Um alívio para os pais e segurança para o bairro.

Quando eu era professor da rede municipal de Pacatuba, um dos maiores medos das mães e pais dos meus alunos era que suas filhas engravidassem ou seus filhos entrassem para o crime. São esses pais e mães pobres, em sua grande maioria negros, que estão enchendo as igrejas e comprando o discurso moralista enquanto nós ficamos ridicularizando ou menosprezando-os, dizendo que são ignorantes e conservadores. Ridicularizamos e menosprezamos a classe trabalhadora por conta do seu moralismo, enquanto as igrejas, e a direita abraçam esse discurso e acabam levando os trabalhadores para seu lado, nadando de braçada na famigerada “onda conservadora” [4].

Como sabiamente disse o filósofo Espinoza, a questão não é “nem rir, nem chorar, mas compreender”.

Existe um texto do filósofo alemão Herbert Marcuse, da famosa Escola de Frankfurt, recentemente publicado chamado O destino histórico da democracia burguesa. Esse texto escrito, mas não publicado, entre 1972 e 1973, no contexto da eleição do republicano Richard Nixon, defende que a democracia burguesia teria atingido seu limite, chegando num empasse em que ela permitia não só a divulgação, como a eleição de candidatos com tendências claramente fascistas e com forte apoio popular. Em determinado momento do texto, Marcuse se pergunta por qual motivo a população norte-americana diante do pior e o do “menos pior” ter preferido o pior, o candidato que deixava claro em seu discurso que ia manter tudo como estava, a guerra, a saúde privatizada, desemprego, inflação, confiando única e exclusivamente nas “leis do mercado”, enquanto reforçava o conservadorismo do senso comum. Para Marcuse a eleição de Nixon e de qualquer candidato com tendências fascistas não é compreensível caso as motivações morais sejam negligenciadas.

Para Marcuse existem “conteúdos materiais em questões morais” e tais conteúdos não podem ser descurados. Acho que nós, esquerda de todas as vertentes, estamos negligenciando esse conteúdo.

Segundo pesquisas [5] as famílias que se convertem ao protestantismo acabam em certa medida melhorando de vida quando, por exemplo, o marido deixa de beber e consequentemente se reduz a violência doméstica e aumenta a renda da família, já que o marido ao invés de literalmente beber a renda da família, usa o dinheiro para fazer uma feira ou quando os filhos preferem ir ao culto que aos “proibidões” com drogas e bebidas nos finais de semana, diminuindo as preocupações dos pais e mães com esses filhos, em suma, as pessoas tendem a ver na conversão ao protestantismo e na ajuda do pastor a causa da paz e “prosperidade” de suas famílias. Daí, o que o pastor pedir será facilmente atendido, afinal existe uma dívida com aquela instituição e liderança pela melhora na vida da família.

Portanto, antes de ridicularizarmos o discurso moralista dos trabalhadores precisamos identificar quais os interesses materiais subjacentes a esse discurso ideológico, pois toda ideologia camufla, intencionalmente ou não, interesses materiais. Esse é o B-A-B do materialismo histórico. O “moralismo” dos trabalhadores tem um fundamento bastante material, não é resultado da ignorância ou conservadorismo.É o moralismo da classe média que não tem nenhum fundamento material e que se baseia apenas no ressentimento.

 

*John Aquino é Professor de filosofia do IFCE/Campus Itapipoca e filiado ao PSOL

 

NOTAS

[1] https://brasil.elpais.com/brasil/2020-01-28/damares-demonstra-forca-entre-os-mais-pobres-e-acende-alerta-na-esquerda.html

[2] Bairro da periferia da cidade metropolitana de Pacatuba no Ceará. “O nome Conjunto Jereissati é uma homenagem ao ex-senador Carlos Jereissati. A região foi criada com a perspectiva de ser a solução para famílias de baixa renda. A promessa era de que haveria no local toda a infraestrutura adequada à moradia. Mas não foi isso que os moradores encontraram. Logo após o sorteio das chaves, as primeiras famílias que lá chegavam não gostavam do que viam. Em tudo havia dificuldade. Transporte era precário, segurança não existia e, para piorar, a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) cobrava taxas inacessíveis pelo consumo de água encanada, já que as residências não possuíam medidor. Há relatos de que alguns moradores chegavam a pagar mais caro pela água do que pelas prestações da casa. A insatisfação era tanta que muita gente abandonava o conjunto já nos primeiros dias” (https://www.oestadoce.com.br/ceara/conjunto-jereissati-ii-completa-hoje-25-anos).

[3] Cidade do interior do Ceará.

[4] “Parte da sociedade brasileira atrela os partidos, lideranças e militantes de esquerda a ideias de caos, conflito, defesa de pautas identitárias, arrogância e doutrinação. A direita, por sua vez, é atribuída às noções de ordem, hierarquia, respeito pela opinião do próximo, igualdade, valorização da família, e defesa do esforço individual/livre- mercado” (https://www.cartacapital.com.br/sociedade/brasileiro-atrela-esquerda-a-conflito-e-direita-a-ordem-diz-pesquisa/).

[5] Indico os textos e pesquisas do demógrafo José Eustáquio Diniz Alves sobre o perfil do evangélico brasileiro, suas projeções, como vota o eleitorado protestante e como o voto das mulheres evangélicas foi decisivo para a eleição de Jair Bolsonaro.

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