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BRASIL

Criminalização das drogas, racismo e resistência ao governo Bolsonaro

Alexis Pedrão*, de Aracaju (SE)
Fernando Frazão / Agência Brasil

“A ‘guerra às drogas’, por exemplo, é uma das ações mais nocivas às populações menos favorecidas, constituídas em sua maioria, por negros. Da forma como é executada pelo poder público, essa ação torna-se um dos muitos discursos enganosos construídos com base no racismo para violentar, estigmatizar e negar direitos às populações negras e indígenas no Brasil e em toda a América Latina. A atual política de combate às drogas, que criminaliza a produção, comércio e uso de certas substâncias, resulta em tratamentos desiguais entre pessoas negras e não negras. Sob a justificativa da promoção da segurança social, esse conjunto de leis e práticas amplia a desigualdade e reforça mecanismos que ceifam vidas negras no país.”
(Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas)

Apesar das declarações do presidente da República de que não há racismo no Brasil e da provocação no episódio envolvendo a presidência da fundação Palmares, sabemos que o racismo existe e continua causando muita dor e sofrimento para a maioria da sociedade brasileira. Nós, negros e negras, continuamos a amargar as piores condições sociais e seguimos perdendo nossas vidas, submetidos ao aparato violento do Estado burguês e racista. A compreensão do racismo enquanto racismo estrutural significa dizer que esta forma de desumanização da população negra é central para a análise de qualquer questão, o que inclui a discussão acerca da criminalização das drogas.

A recente prisão arbitrária da advogada Maitê Ferreira e a chacina de Paraisópolis que vitimou os jovens Marcos Paulo, Bruno, Eduardo, Denys Henrique, Dennys Guilherme, Mateus, Gustavo, Gabriel e Luara, tiveram como justificativa exatamente o combate ao tráfico de drogas. Com esse pretexto, a polícia segue humilhando, prendendo e matando nossos jovens, especialmente a juventude negra.

Encarceramento, Lei de Drogas e Privatização

De acordo com os dados oficiais do Estado brasileiro “em 2018, o Brasil ultrapassou a marca de 800 mil pessoas presas, sendo o terceiro país que mais encarcera no mundo. Desse total, ao menos 30% estão em detenção por crimes relacionados a drogas, sendo que 64% dos presos se declaram negros.”(1) Este número aumentou drasticamente após a nova lei de drogas instituída em 2006. “Em 2005, antes da reforma da lei de drogas, 9% dos presos no Brasil haviam sido detidos por crimes relacionados às drogas. Já entre a população de mulheres presas no Brasil o crescimento foi de 698%, entre 2011 e 2017. Entre elas, 68% estão presas pelo crime de tráfico de drogas.”(2)

Nos últimos anos, devido ao neoliberalismo e sua profunda crise, uma nova mudança vem ocorrendo no sistema prisional por meio da crescente privatização dos presídios. Seguindo a lógica norte-americana este é um dos novos mercados para as grandes empresas capitalistas. Ocorre que para o lucro ser gerado, no caso de um presídio, é fundamental que a mercadoria que “faz girar” as demais em sua volta esteja sempre em abundância: o preso! Isso significa dizer que prender mais pessoas passa a gerar mais dinheiro. A política de encarceramento em massa torna-se funcional às necessidades do capital em crise. Ademais, há uma tendência de utilização e superexploração da mão de obra dos presos, aproximando-os de um regime análogo à escravidão e pressionando o rebaixamento dos salários de uma forma geral na sociedade.

Atualmente temos no país 21 cidades e 32 unidades privatizadas em oito estados brasileiros(3) e críticas e denúncias sobre a efetiva qualidade desse modelo de gestão e o aumento dos custos públicos com o processo de privatização/terceirização(4).

Quem são os encarcerados e mortos pelo tráfico de drogas?

Por conta das omissões históricas no que diz respeito às políticas públicas para a população negra e da ação racista do Estado brasileiro por meio do Direito, da Economia e da Política o sistema carcerário foi construído com o objetivo de controle dos corpos negros. Do conjunto da massa carcerária brasileira temos hoje que 64% são pessoas negras. Para o movimento negro, o cárcere é considerado como parte da estratégia genocida da burguesia branca, uma vez que o encarceramento nas atuais condições do sistema prisional brasileiro representa uma espécie de morte em vida.

A lei de drogas em sua imprecisão para caracterizar a diferença entre usuário e traficante é um dos fatores que tem colaborado para o aumento do encarceramento de negros e negras, na medida em que o racismo está posto enquanto ideologia que molda a ação dos indivíduos e das instituições. Nas palavras de Daniela Ferrugem no estudo “Guerra às drogas e a manutenção da hierarquia racial”: “A lei sobre drogas brasileira de 2006 diferencia usuários de traficantes e descriminaliza o uso e o usuário de drogas (…) Enquanto as pessoas brancas são associadas a usuárias, as negras e pobres quase sempre são associadas a traficantes. Isso se deve ao fato de a interpretação quase sempre ficar a critério do policial que executa a prisão. O mesmo agente que prende, responde como testemunha, na grande maioria dos casos, a única testemunha. Ou seja, testemunha o trabalho realizado por ele. O sistema penal ratifica o flagrante.”(5)

Não bastasse o cárcere, a população negra vivencia um processo histórico de extermínio. Bastariam os relatos nas comunidades e a denúncia do movimento negro, mas existem ainda os dados e eles são incontestáveis, seja pelos organismos internacionais como a ONU que publicou que um jovem negro morre a cada 23 minutos no Brasil, seja pelo Atlas da Violência ou ainda pela CPI do assassinato de jovens realizada pelo senado da república em 2016. Definitivamente, o efeito da atual política de drogas no Brasil é a necropolítica, a violência e a morte de negros e negras como atual estágio do exercício da soberania do Estado(6).

Resistir ao governo racista de Bolsonaro! Não à Internação Compulsória e ao Pacote Anticrime! 

Pensar uma nova política de drogas é fundamental. Como diz Eduardo Taddeo, implorar pelo cessar fogo, é suplicar pela legalização já”(7). Um ótimo exemplo nesse sentido é a Iniciativa Negra por uma outra política de drogas, ONG que vem desenvolvendo ações no sentido da luta contra o racismo expresso na criminalização. No mesmo caminho, precisamos também enfrentar a política de internamento compulsória. Bolsonaro sancionou a nova lei em junho deste ano para permitir a internação contra a vontade do dependente e como medida inicial de tratamento de saúde. A lógica é a mesma dos presídios, atingindo principalmente a população negra, mas neste caso fortalece as grandes comunidades terapêuticas privadas.

Em paralelo, tramita na câmara o pacote anticrime, conhecido como “pacote antividas negras”. O pacote modifica um conjunto de leis sobre a legislação penal e reproduz a ideia conservadora de legislação mais “dura”, de que aprisionar mais pessoas, por mais tempo, é o caminho para enfrentar a violência, como a proposta do aumento da pena máxima no Brasil de 30 para 40 anos. Fora o maior absurdo do pacote que é o excludente de ilicitude. Na prática os policiais vão receber licença para matar já que não responderão criminalmente caso aleguem “medo, surpresa ou violenta emoção”. A comissão da câmara federal que analisa a proposta retirou esse item do relatório aprovado, mas o governo insiste em recolocar a questão. A aprovação desse pacote implica em mais prisões e mais sangue derramado.

Mas não basta apenas reagirmos. Esse é o primeiro passo. É preciso também construir o futuro no seio da resistência presente. Pensar num modelo de sociedade que supere o racismo implica mais que do que uma reforma no sistema de leis e de justiça. Necessita combinar a luta antirracista com a luta contra o capitalismo. Por essa razão, concordamos com o professor Silvio de Almeida em que além de medidas que coíbam o racismo individual e institucionalmente, torna-se imperativo refletir sobre mudanças profundas nas relações sociais, políticas e econômicas.(8). Para resistir a toda essa ofensiva contra as nossas vidas e termos condições de lutar por um outro futuro é fundamental colocar a questão racial no centro da agenda. 

 

*Alexis Pedrão é professor e militante da Resistência/PSOL. 

 

Notas

(1) Iniciativa negra por uma nova política de drogas. Disponível em: https://iniciativanegra.com.br/ 

(2) Política de drogas e racismo: legislação brasileira contribui para o genocídio e encarceramento das populações negras. Disponível em: https://revistaafirmativa.com.br/politica-de-drogas-e-racismo-legislacao-brasileira-contribui-para-o-genocidio-e-encarceramento-das-populacoes-negras/ 

(3) Onde estão as prisões privadas no Brasil? Disponível em: https://especiais.gazetadopovo.com.br/politica/presidios-privados-no-brasil/ 

(4) Presídios privatizados mais caros e tão ruins quanto os demais: Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/06/01/presidios-privatizados-mais-caros-e-tao-ruins-quanto-os-demais/ 

(5) Guerra as Drogas e a manutenção da Hierarquia Racial. Daniela Ferrugem. Dissertação PUC/RS. Disponível em: http://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/7954/2/Disserta%c3%a7%c3%a3o%20-%20Daniela%20Ferrugem.pdf

 (6) Necropolítica. Achille Mbembe.

(7) A guerra não declarada na visão de um favelado. Eduardo Taddeo. 

(8) O que é racismo estrutural? Silvio de Almeida.