Sobre jornalismo de esgoto e o suposto “anti-imperialismo”

Gilbert Achcar | Traduzido por Bruno de Matos Sá

New Politics

Infelizmente, o jornalismo de esgoto não se reduz às publicações abertamente de direita. Desde o surgimento do stalinismo existe uma corrente “de esquerda” de difamação publica: Zhdanov era o equivalente a Gobbels. As calúnias do aparato stalinista originalmente se voltavam aos críticos à esquerda da União Soviética, descritos como “Hitleristas” nos anos 30 e 40 e “agentes da CIA” depois disto. Esta tradição, porem, não terminou com o fim da União Soviética, apesar de seu impacto ser muito mais fraco hoje se comparado à época em que a máquina de propaganda stalinista operava a pleno vapor.

A máquina de propaganda da Rússia contemporânea promove em escala ampla e profissional difamações e teorias da conspiração, em que a extrema direita ocupa espaço central. Isto não deveria nos chocar, uma vez que a Rússia de Putin possui infinitamente mais afinidades com a extrema direita que com a extrema esquerda. Mesmo assim, Moscou tranquilamente usa supostos propagandistas de esquerda como joguetes nas disputas inter-imperialistas, entre ela e os Estados Unidos – ou, mais precisamente, entre ela e a elite tradicional dos EUA, pois a extrema direita norte-americana, assim como o próprio Donald Trump, tem demonstrado admiração por Putin em diversas ocasiões.

Enquanto resultado disto, pode-se encontrar supostos autores e editores de “esquerda” que sistematicamente apoiam Moscou e seus aliados ditadores, como o criminoso regime sírio de Bashar al-Assad, enquanto se descrevem como “anti-imperialistas”- como se “anti-imperialismo” significasse se aliar ao imperialismo da Rússia contra o imperialismo dos EUA. Na verdade, este suposto “anti-imperialismo” se baseia na descrição apenas de Washington como o inimigo imperialista, assim como uma aplicação pouco reflexiva da máxima da corrupção moral: “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Moscou e Damasco, portanto frequentemente recebem visitas de líderes da extrema direita mundial, incluindo figuras de destaque como a francesa Marine Le Pen ou o italiano Matteo Salvini, assim como visitas ocasionais de pessoas que se dizem de esquerda.

Exemplo de propaganda pro-Putin e pro-Assad de “esquerda” misturada ao jornalismo de esgoto é o site World Socialist Web Site (WSWS), dirigido por uma seita “trotskista” encabeçada por uma figura sinistra chamada David North, que perpetua uma longa e desgastada tradição de bate-boca inter-trotskista sectário, cumprindo função de apologista para Putin, Assad e seus amigos. Outro exemplo é o site Greyzone, criado por uma figura particularmente versátil chamado Max Blumenthal.

Estes sites têm o hábito demonizar todos os críticos de esquerda a Putin ou gente como Assad, os descrevendo como “agentes do imperialismo” ou coisa equivalente. O principal “foco de mercado” deles é naturalmente os leitores de esquerda. Isto implica que eles devem tentar não apenas convencer seus leitores das virtudes de Moscou e seus clientes através de uma serie de mentiras de “esquerda” ou “anti-imperialistas”, mas também principalmente descreditar seus críticos à esquerda. Para isto, recorrem ao truque mais antigo dos caluniadores profissionais: mentiras abertas.

Como crítico marxista a todas as potências imperialistas e regimes tirânicos, e, portanto, tão crítico a Moscou quanto a Washington, a Israel ou à Arábia Saudita ou Egito, assim como dos regimes da Síria e do Irã, este autor tem sido alvo escolhido para os caluniadores profissionais pro-Putin/Assad. Em geral, dificilmente respondo às toneladas de lixo jogadas em minha direção ao longo dos anos por todos os tipos de pessoas que pertencem a este universo, principalmente os lunáticos do WSWS que parecem ter nas calúnias direcionadas contra mim uma prioridade, contando pelo número incrível de artigos que escrevem me direcionando insultos. Estas pessoas não são dignas de resposta; sem tempo e recursos, espero que a inteligência do leitor o permita identificar um site como este pelo que ele realmente é: um desprezível empreendimento sectário.

Recentemente, porem, Grayzone se dedicou a um longo artigo de calunias contra mim escrito por Ben Norton, um de seus colaboradores. Blumenthal, o fundador de Grayzone, gera confusão se passando por de esquerda ao atualmente denunciar as mesmas ideias que defendia no passado, após ter visto a “luz”. Junto a isto, a conhecida editora de livros de esquerda Verso, recentemente publicou um livro controverso do autor. Como Ben Norton também pode ser confundido com um autêntico repórter de esquerda, decidi abrir uma exceção desta vez e me dar o trabalho de mostrar como a matéria do Grayzone pertence inteiramente à escola estalinista de falsificações. Isto é para o bem de qualquer leitor que possa ter se deparado com aquela matéria difamatória e possa acreditar em boa fé que era motivada por valores de esquerda.

As mentiras da matéria do Grayzone começam escancaradas desde o início, seguindo o pior da tradição sensacionalista. Seu título é “Elite militar do Reino Unido é treinada secretamente por Gilbert Achcar e outros acadêmicos de esquerda que pregam mudanças de regime.” Sua principal frase diz que, assim como outros acadêmicos, eu teria ajudado “o exército britânico a desenvolver suas táticas de contra insurreição.”; o artigo começa se referindo a “documentos desclassificados do governo britânico obtidos por The Grayzone.” Isto é uma mentira deslavada: não há absolutamente nada de “secreto” sobre os cursos que a SOAS (Universidade de Londres) mantem junto ao Ministério da Defesa britânico (MoD); os documentos detalhando estes cursos nunca foram “classificados” (caso contrario, a SOAS não os teriam providenciado ao grupo de alunos que o requisitou); a descrição de que os alunos eram da “elite” não é real (eles são membros das unidade de conselho cultural e outros vários tipos de integrantes do exército, incluindo reservistas, e os cursos são abertos a todos os interessados); e os cursos que dou em nada aumentaram as “táticas de contra insurreição” (algo na verdade bastante grotesco). Pelo contrário, eu critico duramente as intervenções do Reino Unido e Estados Unidos no Oriente Médio, como qualquer pessoa inteligente teria adivinhado pelo título de uma das palestras que o próprio Norton cita contra sua vontade: “petróleo e hegemonia norte-americana.”

Não repetirei aqui aquilo que já escrevi em outro lugar respondendo ao grupo de estudantes mencionados acima, depois que publicaram um dossiê que incluía um relato distorcido de cursos dados pela SOAS à Unidade de Especialistas Culturais do Ministério da Defesa (DCSU), que ganhou maior exposição através de um artigo publicado no jornal britânico de esquerda Morning Star. Ao invés disto, irei comentar brevemente alguns exemplos das perolas presentes no artigo de Norton.

  • A matéria do Grayzone me descreve como alguém “que se identifica publicamente como marxista enquanto advoga veementemente pela derrubada dos governos independentes pós-coloniais da Líbia e Síria.” Esqueçam a inepta descrição do regime líbio de Gaddafi e o regime sírio de Assad como “pos-coloniais”. O que o artigo não diz, é claro, é que advogo veementemente pela derrubada dos governos árabes financiados pelos EUA, especialmente os do Egito e Arábia Saudita – derrubados por seu povo, é claro, não por uma intervenção externa sob qualquer condição.
  • A matéria do Grayzone diz que eu assinei, em 2018, uma carta aberta “chamando pela intervenção estrangeira na Síria, citando a doutrina da ‘responsabilidade de proteger’ para ‘forçar o encerramento’ da guerra.” O que eles não dizem é que esta carta aberta não estava chamando o mundo a intervir militarmente, mas para “exigir um cessar-fogo imediato, um fim a todos os cercos, acesso imediato às agencias de ajuda humanitária, libertação dos presos políticos, e imediata proteção de todas as vidas sírias”. Tivesse eu defendido a intervenção militar direta do ocidente na Síria, eu não teria assinado esta carta por simplesmente ter sempre argumentado de forma consistente contra tal intervenção desde os primeiros estágios da guerra naquele pobre país. Eu primeiro defendi esta perspectiva em debates com membros de esquerda da oposição síria. Depois desenvolvi esta posição em um artigo que publiquei no jornal A-Akhbar, de Beirut, em novembro de 2011. Ele foi traduzido e publicado em uma versão inglesa daquele diário, que não existe mais (uma cópia do meu artigo foi reproduzido pelo que parece ser um site acadêmico turco).
  • A matéria no Grayzone diz que a SOAS, universidade na qual estou baseado “é conhecida por contratar e produzir acadêmicos pós-modernos que são progressistas mais abertamente anticomunistas, e em geral apoiam esforços da Otan por mudanças de regime e o islamismo.” Qualquer um que conhece a SOAS sabe que esta é uma discrição inteiramente ridícula de uma instituição que é cotidianamente denunciada por todos os tipos de reacionários por ser um antro de acadêmicos de esquerda, anti-imperialistas e antissionistas.
  • A matéria no Grayzone diz (os links abaixo são do original): “Quase nada que Achcar diz desafia os desenhos da politica externa norte americana e britânica no Oriente Médio, a exceção de seu trabalho sobre Israel. Isto talvez explique porque um falso ‘marxista’ da academia ligado a numerosos grupos trotskistas recebe criticas literárias positivas de jornais da grande imprensa pro-Otan como o Guardian.” Qualquer um que conheça os meus trabalhos e palestras sabem o quão distante a primeira sentença está da realidade. Quanto ao Guardian “pro-Otan”, todos sabem que alguns de seus jornalistas e contribuintes são autores radicalmente anti-Otan: pessoas como Seumas Milne, atual diretora de comunicações de Jeremy Corbyn, Owen Jones, ou meu ex-aluno de doutorado David Wearing, cuja tese se tornou um excelente livro. O link dado pela Grayzone leva a uma crítica neutra ao meu livro de 2016 por Ian Black no Guardian (não foram publicadas outras críticas em jornais da grande imprensa). Grayzone obviamente não se referiu à critica muito mais positiva que meu livro anterior recebeu do mesmo Guardian “pro-Otan” escrito por Tariq Ali, até então desconhecido como fã da Otan.
  • A matéria no Grayzone afirma que “em uma entrevista publicada no Znet no dia em que a intervenção militar da Otan se iniciou na Líbia em março de 2011,” eu “fortemente apoiei a resolução 1973 do conselho de segurança da ONU, que impunha uma chamada ‘zona de exclusão aérea’ sobre a Líbia e abria o caminho para a intervenção militar da Otan” e que eu “condenei os críticos do movimento anti-guerra que alertavam que a resolução do Conselho de Segurança iria ser usado para justificar uma guerra por mudança de regime.” Qualquer um que tivesse a curiosidade de checar a entrevista clicando no link teriam descoberto que na verdade estava falando que “não há salvaguardas suficientes na linguagem da resolução para impedir seu uso para fins imperialistas. Apesar de qualquer proposta de ação ter enquanto intenção expressa proteger os civis, e não a ‘mudança de regime’, determinar se uma ação atende este proposito ou não é de responsabilidade das forças interventoras e não do levante, nem mesmo o Conselho de Segurança.” Nenhuma pessoa sã pode confundir isto com “forte apoio” a resolução e à “mudança de regime” – ninguém, a exceção de um caluniador profissional voltado a distorcer deliberadamente os fatos.
  • A matéria do Grayzone me cita dizendo que falei que “há na verdade casos em que os Estados Unidos apoia como faz na Síria hoje, uma força progressista que está lutando contra um inimigo reacionário” a citação por extenso é: “Há na verdade casos, que são inteiramente excepcionais, em que os Estados Unidos apoia, como faz na Síria hoje, uma força progressista que está lutando contra um inimigo reacionário.” E a referência que fazia era ao apoio dado por Washington aos curdos do YPG em sua guerra contra o autointitulado Estado Islâmico. Com qual das duas afirmações Grayzone discorda: que o YPG é uma força progressiva, ou que o Estado Islâmico é reacionário?
  • Uma ultima citação, que não se refere a mim, mas a minha amiga de longa data e excelente expert em Iêmen, Helen Lackner, que felizmente foi adicionada à equipe de professores contratados para dar aulas pela SOAS ao DCSU, substituindo um colega que estava se aposentando. Quis incluir Helen na equipe exatamente por ela ser uma das críticas mais duras ao papel das potências ocidentais naquele outro pobre país cuja destruição é feita em conluio com a Grã Bretanha. A matéria no Grayzone, que inclui os dois links acima, culpa Helen por ter “uma posição liberal de ‘rogar praga sobre ambas as casas’, e, portanto “atacar o grupo armado revolucionário anti-imperialista Ansarallah (conhecido informalmente como os Houthis),”que, segundo Ben Norton, “se inspira na Venezuela de Hugo Chavez assim como modela suas táticas de resistência no exemplo da Frente de Libertação Nacional do Vietnam.” Esta é provavelmente a mais hilária das declarações de um artigo que combina a desonestidade pura com a ignorância grosseira. Os Houthis, obviamente, são uma organização ultra fundamentalista sectária que lançou uma ofensiva em 2014 para conquistar o poder no Iêmen. Até dois anos atrás, o faziam em aliança com o ex-presidente do Iêmen Ali Abdallah Saleh, que foi forçado a renunciar pelo levante popular no Iêmen em 2011 após anos de ditadura e colaboração próxima aos EUA e Arábia Saudita.

Estes são apenas alguns dos exemplos das mentiras e calúnias nesta matéria de 4.800 palavras, que exemplifica a versão “de esquerda” do jornalismo de esgoto. Quanto a mim mesmo, continuarei a agir em pleno acordo com minha consciência política e valores éticos – como sempre tenho feito ao custo de me tornar alvo prioritário do stalinismo e da esquerda semi-stalinista (que inclui alguns dos que se apresentam como “trotskistas”).

Portanto irei continuar a dar aulas, em nome de minha universidade, para o pessoal do exército (soldados, oficiais de baixa patente e reservistas) que desejam atende-las, e continuar a explicar a minha audiência minhas leituras sobre a islamofobia e o racismo, a opressão israelense do povo palestino, o papel desastroso do imperialismo britânico no Oriente Médio, principalmente seu papel na criação e manutenção das monarquias petroleiras do golfo, as calamitosas consequências da cumplicidade do ocidente com regimes despóticos no Oriente Médio, os desastrosos resultados da invasão britânica e norte americana do Iraque, etc. Continuarei a fazê-lo até que o ministério da defesa, ouvindo aqueles como Ben Norton ou outros possíveis alunos de direita que reclamem das minhas visões de esquerda, me vete ou cancele ao todo o contrato com a SOAS – algo que certamente irá satisfazer meus detratores que estão felizes em manter os militares britânicos protegidos da exposição de minhas opiniões critica e verdadeiramente anti-imperialistas.

 

Gilbert Achcar dá aula em Estudos de Desenvolvimento e Relações Internacionais na SOAS (Universidade de Londres). Seus livros incluem Os Árabes e o Holocausto: A guerra de narrativas árabe-israelense (2010), O povo exige: uma exploração radical dos levantes árabes (2013), Marxismo, Orientalismo e Cosmopolitismo (2013), e Sintomas Mórbidos: Relapso na primavera árabe (2016).