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MUNDO

O golpe na Bolívia e o papel da Organização dos Estados Americanos (OEA)

Gabriel Santos, de Cândido Rondon (AL)

Luis Almagro, da OEA

O golpe contra o presidente Evo Morales na Bolívia está perto de completar duas semanas. A situação no nosso país vizinho é de confronto entre militares e policiais contra indígenas, camponeses, e trabalhadores que combatem o golpe de Estado. O número de mortos pela repressão já ultrapassa três dezenas e os golpistas não conseguem governar o país.

Evo e seu vice, Álvaro Garcia Liñera, conseguiram asilo no México, local que foram para escapar da morte. No país vizinho, em Washington, fica a sede da Organização dos Estados Americanos (OEA), entidade que teve papel fundamental no golpe na Bolívia.

Os golpistas afirmam que a eleição que terminou por eleger Evo (vitorioso com 46,86% dos votos, contra 36,72% de Carlos Mesa) teria sido fraudada pelos tribunais eleitorais para assim confirmar a vitória do candidato do MAS, que preside o país desde sua primeira vitória nas urnas em 2005.

Assim, a oposição a Evo passou a não reconhecer o resultado eleitoral e a chamar atos e protestos de rua. Diante disto a OEA endossou a tese de que as eleições ocorreram sob “fraude” lançando um relatório duvidoso em que questionava a vitória de Evo.

Porém, para entender esta posição da OEA, da direita boliviana e seus argumentos, assim como a própria eleição na Bolívia, é preciso voltar um pouco no tempo, mas especificamente para 2017. Naquele ano foi realizado um referendo sobre a possibilidade ou não de se concorrer ao quarto mandato seguido para presidente da república. O “não”, vetando uma quarta reeleição, saiu vitorioso das urnas por apenas 1,6% de diferença. Porém, o Tribunal Constitucional Plurinacional da Bolívia, um tribunal eleito diretamente pelo povo, declarou que colocar limites para exercer um mandato era inconstitucional e ia contra os direitos humanos.

Esta fato gerou uma acusação por parte da direita boliviana e de toda direita no continente de que Evo passava por cima da lei. Confirmada candidatura do primeiro indígena a se tornar presidente na história da América Latina, o secretário geral da OEA, declarou no início do ano: “dizer que Evo Morales não pode participar é absolutamente discriminatório, considerando outros presidentes que participaram de processos eleitorais com base em uma decisão judicial”.

A declaração de Luis Almagro foi entendido como um aceno a legalidade da proposta da reeleição de Evo, o que gerou um desconforto entre grupos de oposição. Nas eleições, dia 20 de outubro, a OEA foi convidada para atuar como observadora eleitoral internacional, algo comum em diversos países latinos.

A eleição contou com dois métodos de contagem de votos, uma de contagem rápida, ou TREP (Transmissão de Resultados Eleitorais Preliminares), fornece resultados preliminares e não-legais na noite da eleição. E uma outra oficial ou TREP (Transmissão de Resultados Eleitorais Preliminares), fornece resultados preliminares e não-legais na noite da eleição. E outra de contagem mais lenta feita pelo tribunal eleitoral. A implementação desse sistema com duas contagem de votos foi implantado na Bolívia com recomendação da própria OEA em 2016. É importante lembrar que as eleições na Bolívia são feitas por meio de cédulas de papel.

Quando na noite da eleição, foi divulgado por meio da contagem rápida os resultados preliminares da mesma, tendo sido cobertos 83,9% dos votos válidos, Evo liderava com 45,7% e Carlos Mesa com 37,8%.

Na Bolívia para vencer o primeiro colocado deve ter pelo menos 40% dos votos e 10% à frente do segundo colocado. Os resultados indicados pela contagem rápida davam que as eleições iriam para o segundo turno, onde Mesa teria mais chances de se sair vitorioso. Dado o informe, as autoridades eleitorais suspenderam a contagem de votos por meio do método TREP, como havia sido informado anteriormente que seria feito. A OEA prontamente se mostrou surpresa com algo que todos já sabiam que iria ocorrer e exigiram que a contagem rápida fosse reiniciada.

No dia seguinte, os resultados com 95,7% dos votos apurados foram anunciados. Estes mostraram que Evo havia alcançado pouco mais de 10% de diferença, com 46,9% contra 36,7% de Mesa. A OEA mais uma vez entrou em cena, soltando um comunicado no qual se dizia “surpresa” e “preocupação” com o crescimento de Evo, e afirmando que foi houve uma mudança “drástica” e “inexplicável” do que havia sido expresso pela contagem rápida.

Semanas depois, no dia 10 de novembro, a OEA publicou um relatório preliminar de auditoria. No qual, de forma bastante vaga, tenta apontar vulnerabilidades técnicas que poderiam ter ocorrido no processo. Apesar de demonstrar a “preocupação” que a OEA teria com a democracia boliviana e a “legalidade do processo eleitoral”, ele falhou em demonstrar que tais falhas fossem utilizadas para fins fraudulentos interferindo no resultado eleitoral favorável a Evo. O relatório da OEA termina concluindo que novas eleições deveria ser convocadas, coisa que Evo tentou fazer no dia anterior, porém teve proposta rechaçada pela oposição golpista. Horas depois do relatório da OEA ter sido publicado, os militares solicitaram e indicaram que Evo deveria renunciar. Estava consumado o golpe de Estado.

Uma análise detalhada do relatório da OEA foi feito pelo Centro de Pesquisa e Economica e Política (CPER), que mostrou que a projeção do crescimento de votos destinados a Evo nas parcelas de urnas que faltavam para ser apuradas seria algo provável e possível estaticamente.

A OEA afirma: “Nos últimos 5% do cálculo, foram contabilizados 290.402 votos. Destes, Morales ganhou 175.670, ou seja, 60,5% dos votos, enquanto Mesa obteve apenas 69.199 votos, ou seja, 23,8%. Em outras palavras, nos últimos 5% dos votos, Morales aumenta a média de votos em 15% em comparação aos 95% anteriores.” Porém, o que o relatório da OEA não aponta e ignora, é que o apoio de 60% a Evo não é incomum se vermos as áreas rurais, em especial de locais como Cochabamba e Oruro, nas quais em cidades rurais o apoio ao MAS chegou a ser 84%, e no plebiscito de 2016, 71% votou favorável ao “sim”. E foram justamente as áreas rurais de Cochabamba e Oruro que tiveram os votos analisados por último. Ou seja, o crescimento de votos em Evo foi algo natural e normal.

O relatório da OEA aponta também que houve uma suposta falsificação de assinaturas nas atas do cálculo oficial. Porém, o CEPR mostra que a OEA coloca no documento a análise de apenas 333 atas de um total de 34.555. E destas apenas 78, ou seja 0,22% do total, teriam algum problema.

Por fim o relatório da OEA ao invés de mostrar que ocorreu uma irregularidade nas eleições, mostra apenas o óbvio. Primeiro, que o sistema TREP teve sua contagem interrompida no sistema quando 83,85% dos votos foram computados, como já era esperado. E depois, que nas áreas analisadas no sistema por último, ou seja, as áreas rurais, o apoio a Evo foi muito superior do que em outros locais.

O papel da OEA na Bolívia, onde apresentou uma suposta preocupação com a democracia do país, e com a legalidade das eleições, apenas comprova que o órgão é completamente subordinado aos interesses do imperialismo norte-americano e do neoliberalismo. A OEA se calou diante do Golpe contra Dilma no Brasil, contra o Estado de exceção e violência preparada por Piñera no Chile contra manifestantes, e chegou ao absurdo de dizer que Lenin-Moreno garantia a democracia no Equador, justamente no momento que este reprimia de forma violenta os protestos no país.

Ao longo dos anos a OEA segue contabilizando ações que ajudam a desestabilizar governos populares em nosso continente. No Haiti por exemplo o papel da mesma é trágico. Ela construiu o caminho para o golpe de 2004 no país e reverteu os resultados eleitorais de 2010. Ainda na América Central, a OEA legitimou as eleições abertamente fraudadas que colocou Juan Orlando Hernandes (JOH) no governo de Honduras. Este ano a OEA afirmou seu papel de submissa aos interesses dos norte-americanos ao reconhecer Guaidó como presidente da Venezuela.

A OEA cumpre bem seu papel de desarticular governos de esquerda e populares na América Latina, a Bolívia é um exemplo disso. O primeiro presidente indígena da região foi derrubado, a OEA se calou, e acusou a eleição deste como fraudulenta, sem apresentar nenhuma prova. O ensinamento de Che Guevara segue válido, mesmo muitos anos: “não se pode confiar no imperialismo nem um pouquinho que seja”.

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