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CULTURA

Coringa: saúde mental e desigualdade social (Contém spoilers)

André Azem, de Campinas (SP)

I said that’s life (that’s life), and as funny as it may seem
Some people get their kicks stompin’ on a dream
But I don’t let it, let it get me down
‘Cause this fine old world, it keeps spinnin’ around

That’s Life, Frank Sinatra

Eu disse que é a vida (é a vida), e por mais estranho que pareça
Algumas pessoas se divertem pisoteando sonhos
Mas eu não deixo, deixo isso me deprimir
Porque esse velho e belo mundo continua a girar

 

O noticiário relata que uma greve de lixeiros está em seu décimo quinto dia. A preocupação do jornal é com o mal cheiro na cidade que já começa a chegar nas regiões mais abastadas. Os políticos cogitam a intervenção da guarda nacional para resolver a situação. O palhaço Arthur Fleck (Joaquim Phoenix), aspirante a comediante, vende sua força de trabalho para uma pequena empresa de animadores. Seu sonho é se apresentar no programa de seu ídolo, Murray Franklin (Robert De Niro), como na referência O Rei Da Comédia (Martin Scorsese, 1982). Também é de Scorsese, em Taxi Driver (1976), a inspiração ao diretor e roteirista Todd Philips para a ambientação e fotografia, mostrando uma Gotham suja, fria e com muita desigualdade social. O prédio em que mora é horrível, como descreve a personagem Sophie Dumond (Zazie Beetz), uma mãe solo que está cansada demais para interagir com sua filha. Os pobres se amontoam nas ruas e nos transportes públicos, com visível falta de perspectiva de vida. A violência gratuita é naturalizada. As crianças hospitalizadas se esforçam para se animarem com o palhaço. Enquanto isso os ricos frequentam sessões de cinema clássico em teatros chiques e tratam o povo como palhaços, que precisam de um salvador. 

Enquanto Arthur se prepara para trabalhar percebemos que ele está chorando, ao mesmo tempo que manipula seu rosto para forçar um sorriso. Ele precisa sorrir, afinal, foi isso que lhe foi dito durante sua vida, que ele é Feliz. Seja apanhando na rua ou no metrô, sendo tratado com desprezo pelos colegas de trabalho, demitido, perdendo seu acesso a medicamentos ou tendo uma história de vida de abusos e violência, você precisa ser feliz. É isso que a sociedade quer. É isso que o capitalismo quer te vender e precisa que você seja (menos se você for louco, esquisito, uma aberração. Sendo assim você será trancado em um local apropriado). Portanto: “Put on a happy face” (“Faça uma cara feliz” – frase icônica do filme)

Somos introduzidos à uma condição de Arthur, de riso incontrolável, quando está sendo atendido pela assistente social Debra Kane, do Departamento de Saúde de Gotham. A cena a nos causa confusão e aflição, pois até então a condição neurológica não era conhecida por nós espectadores, que só veremos quando o palhaço apresenta um cartão explicativo à uma estranha no ônibus, como forma de se defender dos julgamentos das pessoas, contendo os motivos de suas risadas involuntárias. Pela atuação inicial de Phoenix vemos que Todd Philips nos promete um filme profundo e complexo. Normalmente, as origens do Coringa em filmes e revistas apresentam o personagem como louco e ponto final. A loucura é algo genérico e relativamente simples em um roteiro descompromissado. Não são necessárias grandes explicações e soluções. Também são igualmente encaradas desta forma as condições especiais psicológicas fora das telonas. É mais fácil apresentar as consequências dessa “loucura” do que se aprofundar em suas origens. Não se trata disso nesta história.

Fica claro que o serviço de saúde, precário, não tem a menor condição de acompanhá-lo em seu sofrimento. A frase em seu diário “será que minha morte fará mais sentido que minha vida?” nos revela um personagem depressivo e com tendências suicidas. Com o corte no programa de assistência e, consequentemente, o corte do fornecimento de seus remédios, a situação fica bem clara. Debra afirma “Eles não dão a mínima para pessoas como você. Nem a pessoas como eu”.

Existência

Durante todo o filme Fleck reflete sobre sua existência. Por ser tratado como lixo, invisibilizado enquanto uma pessoa com condições especiais, a frase de Arthur “Por toda minha vida eu não sabia se existia” demonstra sua angústia. Porém ele existe “e as pessoas estão começando a perceber.” Após se defender e matar 3 jovens agressores no metrô, que o espancaram, esse momento causa-lhe uma sensação de libertação e justiça. O pierrô dança a dança da morte, se sente vivo e, talvez pela primeira vez, feliz de verdade. É na negação da vida de quem o oprime que garante sua existência. Assim passa a crer que existe. A partir deste momento o assassinato começa a ser investigado, o caso ganha visibilidade na imprensa e o assassino passa a ter popularidade. 

O filme quase cai em um clichê com a possibilidade de Arthur ser meio irmão de Bruce Wayne e filho de Thomas Wayne (Brett Cullen), descoberto através de uma carta de sua mãe Penny Fleck (Frances Conroy) endereçada ao empresário. Quase cai porque essas constatações ficam propositalmente confusas e em aberto. Isso acende a esperança do palhaço, que cresceu sem um pai, ter o acolhimento de uma figura paterna. Vimos na cena em que se imagina participando do programa de Murray e o mesmo lhe diz uma frase carinhosa, sobre como adoraria ter um filho como ele. Mas essa possibilidade é frustrada quando o mordomo Alfred Pennyworth (Douglas Hodge) e o próprio Wayne negam a ligação, chamando sua mãe de louca, doente mental e outros adjetivos normalmente atribuídos a mulheres que tem sua versão da história distorcida e contestada. 

Após investigar seu passado no Asilo Arkham vemos que Arthur sofreu violência ao longo de toda sua infância, viveu em péssimas condições de higiene e alimentação, foi criado por uma pessoa com condições psicológicas comprometidas e igualmente sem tratamento, com vínculos abusivos. Uma realidade que se repete de geração em geração, sem políticas públicas eficientes, situação agravada pela desigualdade social. Porém, como na realidade, a única responsabilizada é sua mãe, cujo delírio é representado para nos confundir acerca de uma dualidade que não existe: se o Coringa é realmente mau ou “louco” ou se é produto de uma sociedade decadente. 

Quem trabalha com crianças e adolescentes, na educação pública ou nos sistemas públicos de saúde e assistência social, sabe que são justamente essas as condições em que vivem muitas crianças da classe trabalhadora, que acabam tendo sua saúde mental abalada em sua etapa de desenvolvimento. E sob essa condições as pessoas são tratadas da mesma forma que o personagem do filme: falta-lhes assistência médica e social, emprego, renda. Falta inclusão nas escolas e no trabalho, empatia, solidariedade e respeito. ”A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse”.

Reprodução

Cena onde Arthur Fleck, o Coringa, escreve seus pensamentos em um diário. (Coringa, 2019)

 

Os relatórios médicos do manicômio, pelos quais o Arthur tem acesso à história de sua mãe e de sua possível adoção, têm chances de terem sido adulterados, visto o poder da família Wayne. Próximo ao desfecho do filme, ele encontra uma foto de sua mãe jovem, com uma dedicatória assinada por Thomas Wayne, o que sugere que os dois podem ter tido um caso no passado, como afirmava a Sra. Fleck. Ou pode ter sido escrito pela própria Penny. Quem sabe? O filme deixa essas questões desta forma para nos fazer sentir como o próprio Arthur, cheio de dúvidas, confuso, incerto de sua origem. Quer nos “enlouquecer”. E isso dá combustível para o personagem agir. 

A transição

É impossível dizer que existiu um momento definitivo na transformação de Arthur Fleck no Coringa. Mas certamente os espancamentos que sofreu, sua demissão injusta, o corte de seus medicamentos, as mortes que causou no metrô e a de sua mãe, sua humilhação em rede nacional no programa de Murray, as desilusões e incertezas de sua origem e o próprio contexto de desprezo social, somado ao fato de que tudo isso aconteceu motivado pela sua condição de pessoa com deficiência, compuseram o nascimento de Coringa. Antes, o velho palhaço derrotado, comediante amador frustrado e humilhado, que subia desalentadamente as escadarias de Gotham para seu bairro. Depois a descida triunfal, colorida, dançante e alegre das escadas. Sem remédios, sem amarras. Aliás, este foi o único momento que mostrou Arthur descendo estas longas e cansativas escadas no filme. A partir daí vemos o personagem em seu total brilho, divertindo-se em meio ao caos das manifestações de Gotham, fugindo de policiais e indo ao talk show o qual fora convidado.

Para sua existência continuar é crucial que comporte-se de forma inversa ao que é esperado. São os diferentes dele que decidem o que é engraçado ou não. Os mesmos diferentes que passam por ele na rua e fingem que ele não existe. São estes (in)diferentes que riram de sua humilhação na TV. É em oposição a essa sociedade que seu mundo se inverte. A tragédia vira comédia. É nessa linha que decide tirar a própria vida, essa seria sua piada final. Porém, quando se depara com outro opressor, Murray, o Coringa decide contar outra piada. 

 

“O que acontece quando você cruza o caminho de um doente mental, abandonado e tratado como lixo pela sociedade?” 

Apesar de toda a polêmica não enxergo este como sendo um filme pra ser usado de justificativa da violência, de justiça com as próprias mãos ou de inversão de valores. É uma reflexão realista de como o capitalismo constrói sua própria violência, seus próprios vilões, a partir de suas contradições. Vemos no filme que as manifestações políticas são secundarizadas e pouco desenvolvidas, talvez a parte menos realista escrita por Philips. E não traz nenhuma solução a isso. Mas o longa também dá as dicas para vivermos em uma sociedade melhor: é preciso inverter o sinal da desigualdade social para que os indivíduos não invertam por si mesmos. É preciso distribuição de renda, serviços públicos acolhedores, condições de trabalho, educação inclusiva. 

As discussões sobre saúde mental tiveram transformações ao longo do século XX. Nos séculos anteriores eram tratadas genericamente como loucura, demônios, bruxaria ou castigo divino. A solução, até pouco tempo atrás, era trancar o louco e jogar a chave fora. Ou matar. Ao passar do tempo a compreensão sobre as condições psicológicas e sociais aumentaram, a partir de estudos das áreas da saúde e das ciências sociais. Hoje temos importantes conquistas no Brasil como o SUS que sempre esteve na mira da privatização e estão seriamente ameaçadas pelas alas mais obscurantistas da política nacional. O filme Coringa nos demonstra que o capitalismo que nos adoece também tira nossa possibilidade de cura. E no final reserva a todos nós uma piada mortal.

 

Coringa e a distopia niilista pós-moderna

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