Lembrava que em alguns países, além das delegacias para mulheres, há associações estruturadas para esconder as vítimas, porque sabem que se muitas delas voltarem para casa serão até assassinadas
(Affonso Romano de Sant’Anna, “Nem com uma flor”, in A mulher madura, Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 55).
Tatiane Spitzner, de 29 anos, morreu no dia 22 de julho de 2018, em Guarapuava (Paraná), após ter sido jogada do 4º andar pelo marido. Carla Grazielle Rodrigues Zandoná, de 37 anos, morreu no dia 6 de agosto de 2018, em Brasília, após ter sido jogada do 3º andar pelo marido. Fátima Aparecida Bertoline, de 40 anos, morreu no dia 12 de março de 2019, em Campinas, seis dias após ter 80% do corpo queimado pelo companheiro. Isabela Miranda de Oliveira, de 19 anos, morreu no dia 7 de março de 2019, em São Paulo, quatro dias após ter sido estuprada pelo cunhado e ser jogada em um colchão em chamas pelo namorado: ela também teve 80% do corpo queimado.
Laniele Santos Duque da Silva, de 20 anos, morreu no dia 23 de agosto de 2017, em Mauá (Grande São Paulo), após ser baleada na cabeça pelo marido. Géssica Ramos Carvalho, de 26 anos, morreu no dia 23 de setembro de 2018, em Porto Seguro (Bahia), após ser baleada várias vezes pelo ex-marido. Deidiane de Paula Monteiro, de 33 anos, morreu no dia 6 de março de 2019, em Angra dos Reis (RJ), após ter sido esfaqueada pelo ex-companheiro. Nadia Sol Neves Rondon, de 38 anos, morreu no dia 9 de março de 2019, em Corumbá (MS), após ter sido esfaqueada vinte vezes pelo ex-marido.
Katia Keiko Picioli Ferreira, de 40 anos, morreu no dia 22 de outubro de 2018, na divisa entre Americana e Nova Odessa (interior de São Paulo), após ter sido estrangulada pelo ex-namorado. Thaís de Andrade, de 29 anos, morreu no dia 5 de março de 2019, em Borborema (interior de São Paulo), após ser estrangulada pelo namorado. Janice Oliveira dos Santos Almeida, de 30 anos, no dia 25 de novembro de 2018, em Tangará da Serra (MT), após ser espancada pelo marido com golpes de tijolo na cabeça. Nicolly Guimarães Sapucci, de 22 anos, morreu no dia 27 de janeiro de 2019, em Jundiaí (interior de São Paulo), após ser espancada pelo marido com chutes e socos.
Infelizmente, os exemplos de feminicídio poderiam se estender por milhares de páginas, identificando cada uma das mulheres assassinadas pela reacionária ordem moral machista, enraizada historicamente nos valores culturais do patriarcado. Em todos os casos acima, independentemente da idade (mulheres de 19 ou 40 anos), da cor (mulheres brancas ou negras), da região (mulheres do Centro-Oeste ou do Sudeste), da classe social (mulheres pobres ou ricas) ou da profissão (mulheres balconistas ou empresárias), enfim, todas as mulheres foram vítimas da onipotência dos homens.
Os doze homens que julgaram e mataram essas doze mulheres – condenando-as à queda livre, ao fogo, à bala, à faca, ao estrangulamento, ao soco ou ao tijolo – eram ou foram seus namorados ou maridos. Apesar das seis variações das penas capitais arbitradas autoritariamente e executadas cruelmente pelo “tribunal falocêntrico”, todos os doze homens julgaram as doze mulheres de acordo como os mandamentos da “tradição, família e propriedade”. Aliás, por falar nisso, na obra A Origem da Família, da Propriedade e do Estado, Engels mostra as raízes arcaicas da cultura opressiva masculina, sintomaticamente refletidas na raiz etimológica latina da palavra “família”:
Famulus quer dizer escravo doméstico, e família é o conjunto de escravos pertencentes a um mesmo homem. Nos tempos de Gaio, a família “id est patrimonium” (isto é, herança) era transmitida por testamento. A expressão foi inventada pelos romanos para designar um novo organismo social, cujo chefe mantinha sob o seu poder a mulher, os filhos e um certo número de escravos, com o pátrio poder romano e o direito de vida e morte sobre todos eles. (1)
A despeito das diferenças históricas entre a antiga Roma e o Brasil contemporâneo, mesmo considerando que a nossa legislação não conceda ao homem o “direito de vida e morte” sobre os membros da família, os doze assassinatos (e a impunidade da justiça) evidenciam a continuidade da lógica do “poder do chefe”. Essa mentalidade tacanha que “naturaliza” a opressão da mulher, fazendo parecer justas aos olhos dos machistas todas as formas de punição – como se qualquer rito condenatório, sob qualquer pretexto, pudesse não ser abjeto, mas “legítimo” – reflete a mesma ordem valorativa em que a mulher é vista como propriedade do homem.
A cultura falocêntrica do capitalismo faz da mulher mais um objeto de acumulação, mais um “bem” que se soma às suas “conquistas”. Aliás, o trocadilho é sintomático, mostrando que a relação de posse se traduz na língua em níveis “desiguais e combinados” de sentido: a “conquista” pode ser tanto de um carro ou de uma casa quanto de uma mulher; o homem trata a mulher pelo epíteto de “meu bem” (o pronome possessivo é marca linguística inequívoca desse tipo de relação), igualando-a ao carro e à casa (como parte dos “bens” dele, uma “coisa” não raro considerada como de menor “valor”).
Na epígrafe que abre este artigo, o excerto da crônica do escritor Affonso Romano de Sant’Anna aborda exatamente as cruéis formas de opressão machista, as perversas manifestações de violência contra a mulher, focalizando o abjeto feminicídio e a criminosa impunidade dos assassinos pela justiça misógina. No início da narrativa, o autor recorda um colega que assistiu a uma cena deplorável: passando pela Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, testemunhou um homem batendo em uma mulher dentro de um carro estacionado.
O trecho a seguir ilustra esse tão recorrente quanto execrável comportamento masculino, seguido de outra observação do cronista que corrobora a tese:
Resolveu parar e chamar a polícia. Mas iam passando pelo calçadão dois garotões atléticos que, vendo o tumulto, pararam também para saber. Meu amigo então lhes explica que o sujeito estava batendo na mulher.
– Mas a mulher não é dele? – indagou o garotão.
– E só porque é dele pode bater? – diz o amigo (…).
Nesta semana (2) a OAB descobriu que em Imperatriz, no Maranhão, nos últimos cinco anos, maridos mataram 30 mulheres. Mas o fizeram por razão muito clara: não queriam pagar pensão nem partilhar os bens na separação. Diante dessa estatística da terra de Sarney, os machos da terra de Tancredo (3) ficam humilhados, porque eles só matam mulher por “traição”, e, mesmo assim, em menor escala. (4)
Nessas poucas linhas, há uma série de implícitos reveladores do modo de funcionamento da cultura machista. Logo de cara, por exemplo, chama a atenção o fato de o “amigo” ter de “explicar” aos “garotões” o óbvio, isto é, que “o sujeito estava batendo na mulher”: a dupla parou exatamente porque estava “vendo o tumulto”. Essa atitude implica que, na ótica míope dos dois, o problema não era o ato de violência em si, mas o motivo que o justificaria (?): na verdade, qualquer que o fosse, para eles a mulher estaria “errada”, merecendo, logo, a punição.
Em outros termos, é como se ambos dissessem que ela não estaria apanhando se não tivesse se comportado mal: ou seja, que o “sujeito” não estaria batendo nela se não houvesse uma razão. Seguindo essa torta linha de raciocínio, provavelmente os “garotões atléticos” não estranhariam se, em vez de apanhar, aquela mulher fosse esfaqueada, ou baleada, ou queimada, ou estrangulada, ou jogada da janela. Fiéis ao “corporativismo” dos homens, advogariam em favor dos namorados e maridos “traídos”, isentando-os de culpa sob a alegação de que os “eventuais excessos” seriam efeito de um “estado de violenta emoção” provocado pela “devassidão” das companheiras.
Infelizmente, não faltam exemplos de assassinos absolvidos, em artificiosos e viciados julgamentos, sob essa previsível e maquiavélica retórica machista das “atenuantes” e “excludentes de culpabilidade”. Para ilustrar, lembremos o assassinato de Ângela Diniz em Búzios (RJ), em 1976, aos 32 anos: a socialite foi morta com quatro tiros (três no rosto e um na nuca) pelo namorado, o playboy Doca Street. Inconformado com a separação, ele apontou-lhe a arma e disse: “Se você não vai ser minha, não será de ninguém”. Essa frase, a propósito, reflete os mesmos valores da fala de um dos “garotões atléticos” da crônica: – Mas a mulher não é dele?
Os pronomes possessivos “minha” e “dele”, nunca é demais sublinhar, são marcas gramaticais que denunciam a cultura machista, a “falsa consciência” segundo a qual a mulher é vista como “propriedade” do homem, como extensão lógica do seu “patrimônio”, que o faz acreditar que seja “natural” que ele tenha sobre ela, portanto, um direito “inalienável” de “posse” exclusiva. Essa ideia absurda (tão autoritária quanto anacrônica e injustificável) da mulher como “bem patrimonial” do “senhor”, aliás, é a mesma que se manifesta no discurso cotidiano sob diferentes variações, que evidenciam a presença dos traços arcaicos da mentalidade patriarcal (traduzida naquele – aparentemente superado – conceito romano de famulus).
Só para ilustrar, não dá para esquecer o tão repetido quanto repudiável provérbio de que “mulher é como carro, não se empresta”: ou, em outra versão do impropério, como queiram os machistas de plantão, “mulher, carro, dinheiro e escova de dente não se emprestam”(5). Em outros termos, o mesmo raciocínio expresso na máxima de que “amizade é amizade, negócios à parte” fundamenta o princípio da falha “ética fálica”: com toda a “propriedade” do trocadilho, que revela a imoral e cínica falta de escrúpulos, que repete como “verdade” o cínico “pacto de paus” firmado entre os pares na corporativa mesa de negociação machista do “jogo de caralho”: “amigos, amigos, mulheres à parte”.
Nesse imoral jogo de machos, regido pelas regras desiguais e combinadas da exploração e da opressão, a mulher não é mais do que uma carta (dentro ou fora do baralho), um mero “joguete” nas mãos sujas deles: nesse inglório papel, ou são ocultadas, como se fossem dispensáveis “coadjuvantes” da vitória masculina, ou são expostas, como se fossem as “protagonistas” responsáveis pela derrota dos “broxas”. No final das contas, as mulheres são sempre as “perdedoras”: conforme a observação de Affonso Romano, ou elas são assassinadas para que não recebam, no processo de separação, a parte que lhes cabe “nesse latifúndio” (lembrando os versos de João Cabral em Morte e Vida Severina), ou para que não passem a ser “patrimônio” de outro homem.
Numa outra passagem da crônica, depois de contar várias histórias trágicas de violência contra as mulheres, lê-se o seguinte comentário incisivo do autor, indo direto ao ponto que corrobora a análise histórica de Engels e a nossa denúncia neste artigo:
Na primeira [narrativa] vocês viram que um acha que a mulher é propriedade privada do marido, por isso pode apanhar. Quer dizer: é igual quando a gente tem um cavalo ou um cão (…). E lá ia explicando o bê-a-bá da violência dos homens sobre as mulheres, lembrando que, quando uma mulher é violentada ou espancada, nas delegacias comuns têm que passar por vexames e cantadas, que os homens veem a vítima como culpada, porque nossa sociedade nos convenceu de que a mulher é sempre uma Eva pecadora. (6)
Vale ressaltar que o texto Nem com uma flor é de 1985, e se refere à mulher como “propriedade privada” do homem da mesma maneira que A Origem da Família, da Propriedade e do Estado, publicado um século antes (a primeira edição é de 1884). Como Engels apontou na genealogia do conceito de famulus (de que deriva a noção tradicional de “família”), na Roma Antiga (fundada em 753 a.C., atenção!), o “chefe mantinha sob o seu poder a mulher, os filhos e um certo número de escravos, com o pátrio poder romano e o direito de vida e morte sobre todos eles”.
É sintomático que originariamente a mulher e os filhos fizessem parte da mesma organização formada também por escravos, e que se submetesse, como os cativos, à mesma vontade despótica do patriarca, ao mesmo poder tirânico do pater familias (de que deriva a noção tradicional de “pai de família”). Apesar de a mulher não viver mais, evidentemente, naquele arcaico modo de produção, naquela primitiva ordem escravocrata, por mais anacrônico que pareça, ainda é tratada como “escrava”, sendo submetida a todos os desejos do “senhor”, obrigada a satisfazer todas as necessidades do “chefe”.
No início deste artigo, lembramos os nomes de doze mulheres que foram assassinadas entre 2017 e 2019. Em pleno século XXI, doze assassinos – que eram ou foram seus namorados ou maridos – as jogaram da janela, as incendiaram, as balearam, as esfaquearam, as estrangularam, as espancaram. As doze mulheres foram condenadas à morte por doze homens que, apesar de não serem romanos, as julgaram e as executaram segundo aquele código de valores dos antigos patriarcas, que conferiam a eles o “direito de vida e morte” sobre elas.
Usando a triste coincidência a nosso favor, para encaminhar a conclusão e atar as pontas (históricas) das histórias, recordamos que o Direito Romano – que denominou e formalizou o conceito de famulus e pater familias – tem como base fundadora o conjunto de princípios reunidos na “Lei das Doze Tábuas”. Na “Tábua IV”, que regulava especificamente o “pátrio poder”, é que se encontra o germe da mentalidade autoritária patriarcal, da tirânica cultura machista dos doze feminicidas. É nela que estava escrito que o pater familias tinha vitae necisque potestas: ou seja, “poder de vida e morte” sobre as “suas” mulheres.
Enfim, que os exemplos do trágico destino das doze mulheres assassinadas – cuja memória honramos em nome de todas as vítimas da impiedosa violência dos tribunais falocêntrico – sirvam ao menos para que fiquem mais claras as sutis e perversas relações entre a exploração econômica e a opressão de gênero, para que sejam combatidas e derrotadas, em todos os desiguais e combinados níveis em que elas se manifestam. Há, de fato, mais em comum entre os maranhenses que assassinavam as mulheres para não lhes pagar pensão ou dividir com elas o capital acumulado, e os mineiros que as condenavam à morte por “traição”, do que mostram as diferenças de superfície entre os enredos trágicos.
Para encerrar, como estímulo para amadurecer a reflexão e dar sequência ao debate, Marx ajuda a explicar que não foi por mera coincidência que a palavra “propriedade” apareceu aqui em todas as histórias e momentos históricos, em sentido literal e figurado, na boca de Engels e de Affonso Romano de Sant’Anna, reverberando nos pronomes possessivos “dele” e “minha” na boca dos “garotões atléticos” e do playboy Doca Street, usada e abusada em sentido literal e figurado. Não é por acaso que seja exatamente em nome da “propriedade privada” – termo perversamente ambíguo – que os assassinos tentem legitimar os seus crimes (sempre bárbaros, sempre injustificáveis).
Em síntese, os homens matam as mulheres tanto sob o pretexto econômico da defesa dos “bens materiais” conquistados, quanto as assassinam sob o álibi moral e jurídico da “legítima defesa da honra”. Esta observação de Marx, enfim, aponta para as complexas mediações entre os conceitos de exploração e de opressão, revelando que o assassino é, em diferentes contextos, sempre o “proprietário”:
O ciumento necessita de um escravo; o ciumento pode amar, mas o amor é para ele apenas um sentimento extravagante; o ciumento é antes de tudo um proprietário privado. (7)
NOTAS
1 – Friedrich Engels, A Origem da Família, da Propriedade e do Estado, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1978, p. 61.
2 – A crônica foi publicada em 27 de outubro de 1985.
3 – Minas Gerais.
4 – Affonso Romano de Sant’Anna, “Nem com uma flor”, in A mulher madura, Rocco, Rio de Janeiro, 1986, p. 54.
5 – O tema da fabricação discursiva da “inferioridade” da mulher como reflexo ideológico da exploração (em geral) e da opressão de gênero (em particular), da construção linguística do imaginário social que “legitima” a dominação falocêntrica (nas piadas, xingamentos, provérbios, títulos de jornal, etc.), enfim, merece um artigo específico, que oportunamente escreveremos.
6 – Obra citada, p. 55. Affonso Romano de Sant’Anna está se reportando a uma entrevista de Franco Montoro, eleito governador de São Paulo em 1982, pelo PMDB. Em sua gestão, foi criada a primeira Delegacia de Defesa da Mulher, em agosto de 1985 (Decreto nº 23.769/85.2), proposta pelo Conselho Estadual da Condição Feminina (órgão criado em 1983).
7 – Karl Marx, Sobre o suicídio, Boitempo, São Paulo, 2006, p. 41.
Foto: wikipedia
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