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A prisão de Battisti e o desfecho da ‘fuga sem fim’

Matheus Gomes

Deputado estadual pelo PSOL no Rio Grande do Sul, Matheus Gomes é historiador, servidor do IBGE e ativista do movimento social há mais de 10 anos. Sua coluna mostra a visão de um jovem negro e marxista sobre temas da política nacional e internacional, especialmente dos povos da diáspora africana.

Numa ação da Interpol articulada entre as polícias brasileira, boliviana e italiana, o escritor e ex-ativista italiano Cesare Battisti foi preso nesse domingo (13), em Santa Cruz de la Sierra. Chega ao fim sua trajetória de andanças e lutas jurídicas exposta em seu romance autobiográfico “Minha fuga sem fim”.

O caso é reconhecido internacionalmente como o mais complexo das relações diplomáticas entre Brasil e Itália. Penso que, em nosso caso, pode ser comparado apenas à entrega de Olga Benário aos nazistas, orquestrada por Getúlio Vargas e Filinto Müller, em 1936. Décadas depois, através do sucesso nas bilheterias do cinema, os brasileiros puderam conhecer a motivação ideológica e o sentido cruel desse aceno de Getúlio a Hitler. E sobre Battisti, quando a verdade virá à tona?

A miséria da imprensa nacional impede que qualquer contextualização histórica seja feita com qualidade. No site GaúchaZH, por exemplo, Battisti é apresentado como “um dos últimos protagonistas dos ‘Anos de Chumbo’ da violência dos anos 1970”. Ora, a expressão grifada é sempre utilizada para descrever situações onde o poderio militar se sobrepõe autoritariamente ao civil e, nesse caso, transmite a ideia de que Battisti era agente desse processo repressivo, o que não tem nada a ver com o contexto da Itália setentista. Battisti é identificado como terrorista pela imprensa corporativa, mas essa definição ampla e imprecisa serve apenas para mobilizar uma campanha anti-esquerda e disseminar desinformação.

A “Estratégia de Tensão” e o combate à esquerda italiana

A verdade é que a Itália do pós-guerra, governada pela Democracia Cristã (DC), foi incapaz de punir de forma consequente os fascistas. Preocupada com a força da esquerda social-democrata e comunista, a burguesia italiana preferiu, em conjunto com a OTAN, perseguir o movimento operário e popular utilizando um método conhecido como “Estratégia de Tensão”.

Colocado em prática a partir de um aparato montado pela inteligência italiana, CIA e combatentes oriundos das antigas milícias fascistas, o “Operativo Gladio”, como ficou conhecido na Itália, foi o responsável por diversas ações terroristas. “Você deve atacar civis, gente comum, mulheres, crianças, gente inocente, desconhecidos alheios a qualquer atividade política. A razão é simples: dessa maneira, você força os cidadãos a exigirem do estado maior segurança.”¹, afirmou em 2001 Vincenzo Vinciguerra, fascista italiano responsável por diversos atentados.

Essa foi a tática utilizada para justificar a repressão estatal e diminuir o espaço político  da esquerda, principalmente dos comunistas. O Partido Comunista Italiano (PCI) era considerado o mais importante de todo o ocidente na época. Entretanto, sua estratégia não passava pela tomada violenta do poder, pelo contrário, após as eleições de 1976 e em meio a uma grande onda de protestos e conflitos sociais, o PCI passa a ter ministros no governo da DC. Ao lado das intensas mudanças no interior da esquerda após os acontecimentos de maio de 68, tal política do PCI está no centro da reorganização dos comunistas no país.

Por um lado, o PCI transforma-se ao longo da década na principal expressão do movimento “Eurocomunista”, um giro dos comunistas à social-democracia; noutra ponta, surgem grupos armados, com destaque para as Brigadas Vermelhas, responsável pelo assassinato do líder da DC Aldo Moro em 1978, fato que rompe a aliança entre os cristãos e o PCI; e ainda vale citar o movimento operaísta idealizado por intelectuais como Mario Tronti, Raniero Panzieri e Antonio Negri.

Battisti integrou o grupo Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), uma pequena organização dentre as diversas que surgiram na época. O PAC não se propunha a tomada do poder, era mais voltado a resolução de problemas imediatos, como a questão dos abusos no sistema carcerário e a resistência à violência policial. No contexto de conflito com as organizações paramilitares fascistas, os assassinatos reivindicados pelo grupo foram as mortes de Antonio Santoro (carcereiro-chefe da prisão de Udine), Pier Torregiani (ourives conhecido por fazer justiça com as próprias mãos), Lino Sabbadin (membro ativo de grupos fascistas) e Andrea Campagna (motorista da polícia de Milão).

Para entender a trajetória de fuga de Battisti é preciso levar em consideração o processo de investigação e o julgamento de tais crimes.

O estudo organizado pelo Prof. Carlos Alberto Lungarzo (Unicamp), com base nos inquéritos, processos, sentenças e relatórios da Anistia Internacional, dentre outras fontes, aponta diversas questões contraditórias.

Primeiramente, o julgamento de Battisti não apresentou nenhuma prova material de sua participação nos crimes; das 10 testemunhas, nenhuma reconheceu Battisti como autor dos crimes; os advogados de Battisti eram desconhecidos por ele e atuaram por procuração falsa, aliás, sequer o réu sabia do processo e pôde comparecer ao julgamento; por fim, as declarações que serviram de base para a sua condenação foram obtidas inicialmente por meio de torturas e posteriormente por meio de delações premiadas.

Fica nítido que para ser solidário a Cesare Battisti não precisa defender a luta armada ou ser comunista, basta compartilhar de princípios democráticos mínimos. O processo que o puniu visava eleger um bode expiatório, não investigar tais crimes. A Itália carrega uma história de injustiças e perseguição política a esquerda: em 1978, 62% dos presos políticos sequer haviam sido julgados e a quantia chegava a quase 4 mil. Enquanto isso, os crimes cometidos por fascistas seguem impunes até os dias de hoje. Por isso, a história de Battisti foi acolhida por intelectuais, artistas e políticos do mundo inteiro nas últimas quatro décadas.

A que(m) serve esse teatro?

A ampla exposição midiática da prisão de Battisti é a “cereja do bolo” que ratifica a aliança entre Bolsonaro e Matteo Salvini, ministro do interior e liderança ascendente da Liga, partido da extrema-direita xenófoba italiana. Para o brasileiro, a prisão é a primeira vitória da campanha ideológica que visa vincular movimentos sociais ao terrorismo. Em pleno domingo, o presidente convocou reunião de emergência e enviou um avião da FAB para Bolívia, tudo para exibir Battisti como um troféu em terras brasileiras. Enquanto isso, Matteo Salvini, promove uma cruzada similar, troca afagos com Bolsonaro e afirma que o “presente” renderá bons frutos para as relações bilaterais.

A tragédia é que, em meio a esses crápulas, Evo Morales tenha silenciado completamente. Com os olhos nas eleições de outubro, onde corre o risco de perder a presidência, em meio à crise na Venezuela e a política de boa vizinhança com Bolsonaro, um dos últimos expoentes do ciclo de governos progressistas na América Latina demonstra que já não vivemos os tempos em que um projeto de unidade dos povos a nível internacional passava necessariamente pelo palacete da Plaza de las Armas, em La Paz.

A essa altura, Battisti já desembarcou em Roma e ficará isolado numa cela por, no mínimo, seis meses. Ele não é o primeiro, nem será o último, mas, aos que lutaram por justiça em torno desse caso permanece o desejo para que a verdade venha a tona.

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