“Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d’água”
(Chico Buarque)
Nesta semana completaram-se 50 anos do Massacre de Tlatelolco, no México. No mesmo momento em que as eleições do Brasil assumem uma face inimaginável. A tensão política atual leva ao questionamento: Até onde se pode chegar? E qual a responsabilidade histórica do Poder Judiciário nestas situações?
Massacre de Tlatelolco
O México estava às vésperas da abertura dos Jogos Olímpicos. Jogos que ficariam famosos por conta do simbólico gesto dos corredores Tommie Smith e John Carlos, que ergueram o punho, no famoso gesto dos Panteras Negras quando subiram ao pódio. O México, formalmente, era uma democracia, pois existiam eleições a cada quatro anos.
Naquela tarde de 2 de outubro de 1968, na praça de Tlatelolco, estava marcado um ato contra o governo. Quão dura poderia ser uma repressão à uma manifestação pública às vésperas das Olimpíadas?
Um grupo de manifestantes se reúne às 17h30. Em menos de trinta minutos, o exército cerca o local, armado com fuzis e baionetas. Às 18h10, helicópteros lançam bombas nos manifestantes. O exército inicia um massacre. Policiais infiltrados, escondidos dentro dos prédios residenciais ao redor da praça, disparam das janelas contra os manifestantes. Mais tarde foi comprovado que existia um grupo de policiais da guarda presidencial, a chamada Brigada “Olimpia” (em referência às Olimpíadas), que atuou como polícia secreta infiltrada, efetuando os primeiros disparos.
A carnificina continua, as pessoas são mortas tentando fugir. Existe um banho de sangue. As torturas dos presos continuam pela madrugada. Foram centenas de mortos, mais de trezentos no mesmo dia, em praça pública. Posteriormente, a matança continua pela noite, com policiais entrando nas casas das pessoas nos arredores. Crianças foram alvejadas por disparos. Muitos moradores e pessoas que passavam pela rua também foram mortos. A força sanguinária não conhecia limites.
Dez dias depois, iniciaram-se os jogos Olímpicos, como se nada tivesse ocorrido. Recentemente foi comprovada a participação do serviço secreto norte-americano, a CIA, no massacre. Os responsáveis ficaram impunes. Onde estavam os juízes? Onde está a Justiça?
Naquele momento, no México, havia uma concentração de poder imensurável nas mãos de um único Partido, o PRI. O percurso histórico do México é extremamente peculiar. Entretanto, o enfoque que se pretende notar aqui é o que pode resultar de uma grande concentração de Poder.
O PRI era o controle completo do aparato do Estado. De modo que não existia um Poder Judiciário que viesse a condenar os agentes do Estado por seus abusos.
Esse trágico episódio não é um caso isolado no México. Em 2014, foram mortos 43 estudantes, da cidade de Ayotzinapa, moradores de uma zona rural. Eles participaram de um protesto contra um governante local, que pediu a ajuda do crime organizado para exterminar os seus opositores.
Comprovadamente os bancos internacionais fazem a lavagem de dinheiro dos carteis mexicanos, como foi o caso comprovado do HSBC. Que simplesmente fez um acordo e não houve depois qualquer punição. O Poder Judiciário foi usado como forma de atenuar os impactos do crime organizado e proteger o sistema financeiro.
No México durante mais de 70 anos um mesmo partido, o PRI, ficou no governo. Isso foi chamado da ditadura perfeita, pois é uma ditadura onde existem formalmente eleições a cada quatro anos. Episódios como o dos 43 estudantes mostram que agora o crime organizado passa a ser parte da repressão ilegal. Até mesmo as eleições presidenciais deste ano no México foram marcadas por centenas de assassinatos políticos.
Tal violência deveria ser lembrada por aqueles que relativizam os golpes ou ditaduras. Como também devem ser recordados todos que tombaram na luta contra as ditaduras na América Latina. As crueldades de níveis abissalmente desumanas, desumanizam o conjunto da sociedade. Que passa a relativizar todas as atrocidades. Vimos isso quando uma desembargadora relativizou o assassinato de Marielle Franco.
Da República para a ditadura
Para entendermos melhor como uma República pode se tornar uma ditadura seria interessante refletir um pouco sobre a primeira ditadura que se tem notícia. A Roma Antiga foi uma República. A Lei Romana proibia o uso de forças armadas no interior de suas fronteiras, que era demarcado pelo rio Rubicão. Júlio Cesar com suas tropas atravessou essa fronteira. Até hoje a expressão “atravessar o Rubicão” é usada para dizer que um passo sem volta está sendo dado.
César na ocasião teria dito que “a sorte está lançada”. De modo que após este passo Roma deixa de ser uma República, passando a ser um ditadura. Posteriormente, tal concentração de poder leva a formar um Império. Cujos imperadores, com tanto poder, ficaram famosos por seu hedonismo, como Nero e Calígula. A questão é que o poder concentrado corrompe. São necessários mecanismos de controle democráticos. A população precisa controlar o Estado, e não o inverso.
Maquiavel, em sua clássica obra, O Príncipe, indica que seria um risco manter um exército armado em tempos de paz, com cidadãos desarmados. Pois, segundo o próprio Maquiavel, haveria o risco destes soldados em tempos de paz tomarem o poder.
Togas e coturnos
O ministro e presidente do STF, Dias Toffoli, nesta semana protagonizou duas situações emblemáticas. Uma que relativizou o golpe de 1964. Outra que consagrou uma censura política institucional, proibindo um preso político de dar entrevistas. Independentemente do que se pense sobre Lula, ou mesmo do seu processo, qualquer preso deve ter o direito de poder falar. Todavia, o que está ocorrendo são os vazamentos seletivos das supostas delações e a censura, nas vésperas da eleição. Quando um País tem assassinatos políticos, como foi o de Marielle, um ex-presidente como preso político, jornais censurados e proibição de entrevistar um preso, esta nação definitivamente não está em uma democracia.
Logo quando ocorreu o golpe de 2016 o ministro Dias Toffoli deu a seguinte declaração: “Vamos levar a um totalitarismo do judiciário e do sistema judicial. Isso é democracia? Isso é Estado Democrático de direito?” Mais adiante: “Vamos cometer o mesmo erro que os militares em 1964 querendo se achar donos do poder.”
Nitidamente existem duas análises de Toffoli: uma logo após o golpe de 2016, a outra logo após ele próprio se tornar presidente do STF, e, portanto, o homem mais poderoso da República. Cabe portanto, entender com mais profundidade o que foi dito por Toffoli em 2016. O Poder Judiciário é hoje, sim parte fundamental do golpe. Passa a ser uma engrenagem com vida própria. Onde os juízes passam a ter mais poder do que a Lei. Portanto, quem julgará os julgadores?
A História certamente dará o seu veredicto. Mas não se pode esperar a banda passar de forma contemplativa. Cabe a nós entendermos o presente momento e os riscos que estamos vivendo. Rufam os tambores as margens do Rubicão. As togas encobrem reluzentes coturnos.
Nesta semana um bando fascista comemorou o assassinato de Marielle Franco quebrando uma placa em sua homenagem. Afrontando a sua memória e todas as milhares de pessoas que foram às ruas do país em março, contra o assassinato, e que até hoje pedem por Justiça.
O Poder Judiciário passou a assumir um protagonismo político cada vez maior. De modo que passa também a assumir a responsabilidade por qualquer escalada autoritária que possa ocorrer. Como também suas belas togas não seriam suficientes para esconder o sangue que possa escorrer por suas mãos. Até qual limite estão dispostos a chegar? Para que propósito?
Entretanto, a classe trabalhadora não está assistindo passiva a tudo. Houve uma grande manifestação anti-fascista no dia 29 de setembro, o #ELENÃO. O jogo não está jogado. Não é o momento de nenhuma rendição. Mesmo que haja uma derrota nesta batalha, a resistência cresce. O momento histórico da classe trabalhadora virá. O momento atual é de construir a resistência, de combater o golpe de 2016. Construir nossas trincheiras da classe. Não se sabe o quão dura será a batalha, mas a classe trabalhadora há de triunfar. De modo que o momento é de luta.
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