“Reduza os livros às cinzas e, depois, queime as cinzas. Este é o nosso slogan oficial (…). Tudo o que queremos é manter o conhecimento, que, pensamos, precisamos manter intacto e seguro (…). Pois, se formos destruídos, o conhecimento estará morto, talvez para sempre”
(BRADBURY R., Fahrenhait 451: a temperatura na qual o papel do livro pega fogo e queima. São Paulo: Globo, 2009. pp. 21-215).
No Museu Nacional do Rio de Janeiro, o mais antigo do Brasil e um dos maiores do continente, havia um inestimável acervo de fósseis vegetais, esqueletos de dinossauros, múmias egípcias, cerâmicas indígenas, artesanatos pré-colombianos, móveis do Império, documentos coloniais… No Museu Nacional estava o fóssil humano mais antigo encontrado no Brasil: “Luzia”, a grande atração do Museu Nacional, tinha cerca de 11.300 anos (conforme a arqueóloga francesa da equipe que a encontrou em 1974, em Minas Gerais). No Museu Nacional morava “Maxakalisaurus topai”, o primeiro grande dinossauro montado no país: bem mais velho que “Luzia”, tinha cerca de 80 milhões de anos (seus ossos também foram descobertos em Minas Gerais).
Bem mais velho ainda que o gigante herbívoro era o fóssil do “Angaturana”, o maior dinossauro carnívoro brasileiro, com cerca de 110 milhões de anos. Bem mais nova que “Luzia”, a moradora ilustre da seção de arqueologia egípcia (com 700 peças, a maior e mais antiga da América) era “Sha Amun”, cantora e sacerdotisa que “vivia” em seu sarcófago no Egito desde 750 a.C, até chegar ao Brasil em 1876, como presente de viagem a Dom Pedro II. Bem mais novo que o sarcófago, o destaque da seção de etnologia africana (com mais de 700 peças) era o “Trono do Daomé”, presente do rei africano Adanzoban (1718-1818) a Dom João VI – que era bem mais velho que seu neto, que ganhou “Sha Amun”.
Aliás, Dom Pedro II, que reinou de 1831 até a Proclamação da República, nasceu no mesmo Palácio de São Cristóvão onde seu avô fundou o Museu Nacional, no mesmo ano em que morreu o monarca do “Trono do Daomé”. Lá ficava a célebre sala do trono em que ocorria a histórica cerimônia de “beija mão” do último imperador: para que o herdeiro de Dom Pedro I parecesse maior que o pai e o avô, o artista italiano Mario Bragaldi até criou uma ilusão de óptica de alto relevo nas paredes. No Museu Nacional também dormia “Ismail”, um “soberano local” (intitulado quediva) do Império Otomano: diz a lenda que Dom Pedro II se aconselhava com a múmia do século XV, por quem tinha predileção entre os milhares de objetos únicos do acervo.
A propósito, no Museu Nacional havia um dos dois únicos exemplares de uma Bíblia mais velha que “Ismail”, em cuidadosa edição do século XI, com belíssimas iluminuras (a que sobrou está bem guardada no museu britânico). Por falar em livros, o Palácio de São Cristóvão abrigava uma preciosa biblioteca com cerca de 480 mil volumes: além do “texto sagrado”, ainda havia mais de 2,4 mil obras raras no catálogo. Enfim, entre dinossauros, tronos, múmias, cerâmicas, esculturas, máscaras, papiros e livros, o Museu Nacional reunia 20 milhões de peças.
Para organizar esse “puzzle” gigante, foi necessário o trabalho hercúleo – coordenado e contínuo – de uma equipe multidisciplinar de especialistas, formada por arqueólogos, geólogos, paleontólogos, antropólogos, biólogos e historiadores (entre outros profissionais): enfrentando a escassez de verbas para as pesquisas, a falta de recursos para a preservação do acervo, as restrições orçamentárias para a manutenção do prédio. Do dinossauro carnívoro “Angaturana” ao herbívoro “Maxakalisaurus topai”, do “Trono do Daomé” à “Sala do Trono” de Dom Pedro II, da ancestral brasileira “Luzia” à sacerdotisa egípcia “Sha Amun”, da Bíblia medieval ao caixão turco-otomano de “Ismail”, todas as partes deste enorme quebra-cabeça que vinha sendo montado ao longo de 200 anos foram impiedosamente destruídas em poucas horas pelas chamas do descaso.
Lembremos que os golpistas tomaram o poder extinguindo já de cara o Ministério da Cultura: apesar de a pressão de artistas e intelectuais terem obrigado o governo a voltar atrás, na prática é como se o órgão não existisse. O golpe de misericórdia foi dado pela Emenda Constitucional n.º 95, de 2016: com a aprovação, no Senado, da PEC 55, os gastos públicos (nas áreas da saúde, educação e cultura) ficam congelados por 20 anos. O seu efeito é mais devastador do que o do vulcão Vesúvio, que destruiu as cidades de Herculano e Pompeia em 79 d.C.
Na tragédia histórica italiana, nem tudo desapareceu: por exemplo, os afrescos que estavam no Museu Nacional da Quinta da Boa Vista. Entretanto, depois de terem resistido às cinzas vulcânicas e gases quentes do Vesúvio, eles não conseguiram sobreviver aos “fluxos piroclásticos” da erupção golpista do vulcão neoliberal, cuja fúria voraz apagou todos os vestígios civilizatórios.
*Paulo César de Carvalho (Paulinho) é militante da RESISTÊNCIA-PSOL
Foto: Vigilante Felipe Farias da Silva devolve página de um livro pertencente ao Museu e encontrado por ele na Quinta da Boa Vista. Tânia Rego / Agência Brasil
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