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BRASIL

O assassinato de um pintor baiano e o uso do ‘kit flagrante’ pela polícia

Henrique Oliveira*, de Salvador (BA)

O artista plástico Arnaldo Filho, conhecido como Nadinho, foi morto pela Polícia Militar na noite de sábado (21) dentro do seu ateliê na cidade de Candeias, a 50 km de Salvador. Os policiais militares disseram que receberam um chamado após um homem invadir uma residência, e que ao chegarem no local indicado bateram na porta da casa, se identificaram como policiais, mas o morador do imóvel os teria recebido empunhando uma arma de fogo e atirado, mas os dois tiros disparados pelo artista plástico teriam falhado. Após isso, para se defender, os policiais teriam baleado duas vezes a vítima, no peito e no braço.

A PM apresentou uma arma calibre 32, com duas munições travadas e não deflagradas e quatro intactas. Segundo a família de Arnaldo, a arma foi plantada pelos policiais militares. Os vizinhos do pintor ainda relataram que informaram aos policiais que ali ‘era casa de um morador e que não havia nenhum bandido por ali’. A sobrinha do pintor relatou que os policiais estavam fazendo uma perseguição a assaltantes, e que os mesmos chegaram metendo o pé na porta e atirando.

Em uma nota, a PM afirmou que a morte aconteceu por volta das 20h, no bairro do Santo Antônio. Segundo a versão, após receberem um chamado pelo Centro Integrado de Comunicação, equipes da Operação Força Tática de Candeias se dirigiram até a casa, identificaram-se, mas o dono do imóvel apareceu na janela armado e atirou nos policiais que, para se protegerem, atiraram contra o pintor. A Corregedoria da PM esteve no local e instaurou um Inquérito Policial Militar para colher provas e elucidar o ocorrido. O prazo de apuração é de 40 dias, com prorrogação por mais 20 dias.

Ainda no sábado, a família de Nadinho, de 61 anos, tentou registrar a morte através de um boletim de ocorrência na delegacia, só que não conseguiu. A Prefeitura de Candeias e a Paróquia Nossa Senhora das Candeias também lançaram notas lamentando a morte de Nadinho e exigindo celeridade nas investigações.

Protesto no enterro do artista plástico. Foto Anna Vitória/TV Bahia
Protesto no enterro do artista plástico. Foto Anna Vitória/TV Bahia

No domingo, uma marcha foi realizada pelos moradores que carregaram o caixão e os quadros do artista até a Igreja onde foi realizada uma missa de corpo presente. O corpo de artista plástico, que também dava aula de pintura no seu ateliê, foi enterrado no Cemitério Recanto da Saudade, logo após a missa.

Na manhã de segunda feira um grupo de familiares e amigos de Arnaldo fizeram um protesto fechando por momentos a BA 522. Em contraponto a versão Policial que Nadinho estava armado, os manifestantes gritavam que a única arma do artista era o pincel.

Depois os manifestantes também se dirigiram a delegacia da cidade. O delegado informou que as investigações serão realizadas pela Corregedoria da PM em Salvador e que a competência é da Justiça Militar.

Durante a matéria realizada pela TV Bahia, a filha de Nadinho fez uma pergunta que não quer calar sobre a prática policial brasileira: “Até quando a Polícia vai matar e colocar provas para incriminar as pessoas?”

 

O uso do ‘kit flagrante’ e os tiroteios forjados, para construir a legítima defesa
A morte do artista plástico Nadinho é mais uma morte registrada pela PM como auto de resistência, na qual o policial alega que agiu em legítima de defesa. Mas na verdade esta pode ser  um assassinato amparado por fraude processual.

Há muitos anos vem sendo amplamente denunciado e constatada por meio de investigações que a PM brasileira utiliza a prática do ‘kit flagrante’ – colocar armas e drogas na cena do crime – para legitimar as mortes e prisões realizadas, armas e drogas essas, que são guardadas pelos policiais para justamente serem usadas nesses momentos.

Em São Paulo, a Corregedoria da PM prendeu 11 policiais militares que estavam envolvidos na perseguição que terminou com a morte de um jovem, no dia 13 de outubro de 2017. Na ocorrência, os policiais registraram um auto de resistência, após perseguirem suspeitos de roubo em uma moto, só que as investigações encontraram contradições com depoimentos e nas provas da perícia balística, que confirmou que a bala que acertou uma lixeira não saiu da suposta arma encontrada com a vítima, mas sim da arma de um dos policiais.

Ao realizarem uma revista no dormitório dos policiais envolvidos, a Corregedoria encontrou quatro armas de brinquedos, 36 ‘parangas’ de Maconha, meio tablete de substância análoga a Cocaína, celulares sem chip, placas de carro, e munições disparadas de calibre 38,.40 e 380. Além de uma arma calibre 38 e munições intactas, pedras de crack, microtubos com substâncias análogas a cocaína e tabletes de Maconha. Em um alojamento isolado no fundo da sede, tinham mais duas armas de brinquedo e um revólver calibre 22.

No dia 14 de abril, o Diário Oficial do Estado de São Paulo publicou a demissão de dois PMs acusados de homicídio e alteração da cena do crime, mais as expulsões de outros quatro policiais por envolvimento com o tráfico de drogas.

Dois dos quatro policiais expulsos foram presos no dia 30 de Janeiro de 2017, quando dirigiam uma viatura da corporação, com uma mala cheia de drogas. Segundo o Ministério Público Militar (MPM), as drogas que estavam com os soldados serviriam como ‘kit flagrante’.

Em 2015 no Rio de Janeiro, policiais da Unidade de Polícia Pacificadora do Morro da Providência foram flagrados e filmados, no exato momento em que colocaram uma arma na mão do adolescente Felipe Santos de 17 anos, que já se encontrava morto no chão, realizando dois disparos, com a clara intenção de forjar um tiroteio que justificasse o assassinato da vítima como uma troca de tiro.

No mesmo ano de 2015 a revista Época, publicou uma matéria na qual um subtenente, que era instrutor de um curso de reciclagem da Polícia Militar, ensinava a prática da ‘mãozinha’, que é pôr uma arma na mão do morto para simular que houve um confronto.

O delegado da cidade de Candeias, Marcos Laranjeira, disse que foi lavrado um auto de resistências pelos policiais militares que mataram o pintor Nadinho. No artigo Letalidade policial e indiferença legal: A apuração judiciária dos autos de resistência no Rio de Janeiro (2001 – 2011), os autores que analisaram por 10 anos os autos de resistência no Rio de Janeiro, falam como os homicídios realizados por policiais se diferenciam em alguns aspectos dos homicídios dolosos em geral. E um desses aspectos, é que as circunstâncias em que aconteceu a morte já são esclarecidas no momento do registro, porque são os próprios policiais, os autores do fato, que são responsáveis por comunicar a ocorrência, fazendo prevalecer a versão a policial.

O relato policial é sempre dominado por um discurso padrão, que busca construir a legítima defesa, na qual primeiramente as vítimas sempre atiraram ou apresentavam grave ameaça a vida dos agentes, e que só depois os policiais atiraram para se defender. A narrativa dos autos de resistência é elaborada na perspectiva de culpabilidade do morto. Além da estratégia de socorrer a pessoa baleada para o hospital, cuja morte não é descrita como acontecida no local, pois se a vítima ainda estava viva, não se faz necessário preservar a cena do homicídio para realizar perícia.

Em outro caso envolvendo execução policial e fraude processual em auto de resistência, quatro policiais militares do Rio de Janeiro, que participaram do fuzilamento de 5 jovens negros dentro de um carro na região de Costa Barros, em novembro de 2015, vão ser levados a júri popular. Segundo a perícia realizada, os policiais dispararam 111 tiros, sendo 81 de fuzil e 30 de pistola, o carro foi atingido por 63 tiros.

Os PM’s foram denunciados por homicídio qualificado e tentativa de homicídio qualificado, também foram denunciados por fraude processual, por apresentar um revólver quebrado para alegar troca de tiro. O assassinato brutal dos 5 jovens, que mais pareceu um ataque terrorista, não se encerrou por aí. Após 8 meses da chacina, Joselita de Souza, mãe de Roberto que tinha apenas 16 anos, morreu de depressão com a perda do filho caçula, 3 dias após se internar no Posto Médico de Vilar do Teles, com parada cardiorrespiratória, antes de descobrir um quadro de pneumonia e anemia. Segundo os parentes, Joselita ficou 4 meses apenas só tomando sopa, pois não conseguia se alimentar normalmente.

Os tiroteios forjados por PM’s é uma prática da Polícia brasileira, em uma pesquisa na internet podemos ver alguns casos que aconteceram em estados como Goiás, Tocantins e Paraná. A utilização de ‘kit flagrante’ pela Polícia baiana também já veio a público numa matéria do portal UOL em 2016, quando a Corregedoria da PM encontrou dentro da sede da 37ª CIPM (Companhia Independente da Polícia Militar), armas de fogo falsas, drogas, placas frias e balança de precisão.

O uso do ‘kit flagrante’ não pode ser entendido apenas na dimensão dos interesses do policial em criminalizar as pessoas, após um assassinato ou uma prisão. O ‘kit flagrante’ é legitimado pelo poder judiciário. Promotores e juízes atuam de forma articulada na produção da legalidade da ação da Polícia. No Rio de Janeiro, mais de 50% das pessoas condenadas por tráfico de drogas, foram presas apenas com base no depoimento dos policiais. E 70% das prisões em flagrantes de tráfico drogas tem apenas os policiais militares como testemunhas. Em uma pesquisa realizada em São Paulo, ficou comprovado que o Ministério Público estadual arquiva 90% dos autos de resistência registrados por policiais em serviço.

O ‘kit flagrante’ existe, porque promotores e juízes são cúmplices da violência policial, colocando ações ilegais dentro do Estado Democrático de Direito. O policial não atira sozinho, por trás dele, instituições e a própria sociedade dão o aval para que o gatilho seja apertado.

A luta da família do pintor Nadinho, não é um caso isolado, como muitas vezes trata o Comando da Polícia Militar e os governadores, e nem estar apartada da experiência vivida por outros familiares que tem seus entes queridos assassinados em ações policiais, sejam as pessoas mortas envolvidas ou não com a criminalidade. A dor que a família de Nadinho sente nesse momento, é a mesma sentida pelos familiares da Chacina do Cabula, na qual 12 jovens foram assassinados no ano de 2015, com claros indícios de execução, ou de outros casos que se multiplicam cotidianamente na cidade de Salvador, nos quais a família questiona a versão de troca de tiro alegada pela PM. Não a toa, o traços comuns são encontrados na maioria deles, se não em todos, do pintor Nadinho, com 61 anos, aos suspeitos mortos pela PM que são mais jovens, trata se de homens negros e pobres, que são mortos supostamente reagindo a abordagem policial.

Henrique Oliveira é estudante de mestrado em História Social na UFBA e colaborador da Revista Rever/Salvador

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