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Cinco perguntas para uma esquerda do século XXI

Valerio Arcary, militante do MAIS

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Por Valério Arcary, Colunista do Esquerda Online. Publicado originalmente no Site Marxismo 21.

1.O que significa ser de esquerda hoje?

Esquerda e direita são conceitos da nossa linguagem coloquial, da cultura popular, portanto, aproximativos, relativos e, em geral, imprecisos. Mas são, politicamente, muito usados e, nessa medida, úteis. Quatro grandes escolhas definem o que significa ser de esquerda. Em primeiro lugar, ser de esquerda é uma escolha moral. Ao ser de esquerda abraçamos uma visão do mundo que considera todas as formas de exploração e opressão indignas. Quem explora ou oprime alguém não pode ser livre. Não é possível a liberdade entre desiguais.

Em segundo lugar, ser de esquerda é uma escolha de classe. Ao ser de esquerda abraçamos uma visão do mundo que considera que o movimento dos trabalhadores é a nossa referência de esperança, e suas lutas são as nossas. Em terceiro lugar, ser de esquerda é uma escolha política. Ao ser de esquerda abraçamos um projeto de luta pelo poder. Os trabalhadores devem governar para transformar a sociedade em função da satisfação das necessidades da maioria.

Por último, ser de esquerda é uma escolha ideológica. Ao ser de esquerda abraçamos o socialismo como programa, ou seja, defendemos uma sociedade em que deveremos ser socialmente iguais, humanamente diferentes, e totalmente livres. Essa opção nos coloca em oposição à propriedade privada, portanto, ao capitalismo. Esse programa não é possível em um só país. Ser de esquerda, portanto, significa ter um compromisso internacionalista com a luta pela igualdade social[1].

2.Qual é a relação entre a luta por reformas e pela revolução?

São duas estratégias antagônicas. Uma estratégia de reformas pressupõe a preservação do capitalismo como sistema, portanto, do capital, da propriedade privada e da regulação mercantil, ainda que as relações sociais sejam modernizadas pelo reconhecimento de alguns direitos. Uma estratégia revolucionária tem como fim a destruição do capitalismo em um processo de transição ao socialismo.

A diferença não é que revolucionários não lutam por reformas. A diferença é que reformistas não lutam pela derrubada do capitalismo. Todos lutam por reformas. A tradição revolucionária defendeu a luta por reformas como parte de um processo de experiência dos trabalhadores – a chamada escola sindical-parlamentária-, ou seja, uma tática subordinada à estratégia de luta revolucionária pelo poder. O reformismo defendeu a luta por reformas em oposição à luta pela conquista do poder. Os reformistas aspiram, evidentemente, chegar ao poder. Mas defendem, a partir do poder, um programa de colaboração de classes com os capitalistas.

Os homens fazem a história, mas nenhuma sociedade “escolhe” se prefere mudanças mais rápidas ou mais lentas, mais conflituadas ou mais concertadas. Depende das circunstâncias. A luta de classes ora permite o sucesso de reformas, pela via das conquistas e ou das concessões, ora impõe o recurso à mobilização revolucionária. O perigo de revoluções pode favorecer a introdução de reformas. A concessão de reformas pode atrasar a abertura de situações revolucionárias.

Em determinadas épocas, em que uma formação social é progressiva, ou seja, em que as relações de produção dominantes ainda  impulsionam o progresso social, quando existem margens de mobilidade social elásticas (ainda que a ordem social seja infame e injusta), as reformas alteram de forma quantitativa, aperfeiçoam e legitimam e, portanto, conservam a ordem social. O que não impede que a classe ascendente se beneficie das reformas. São quase sempre as classes oprimidas e exploradas as protagonistas da luta pelas reformas. Somente quando as reformas não são mais possíveis, porque as classes dominantes não podem ou são incapazes de fazer concessões, as classes oprimidas são empurradas no caminho da revolução.

A polêmica sobre a estratégia, no interior do marxismo, surgiu no final do século XIX. Aonde Marx tinha afirmado a dialética entre as tarefas – entendidas como o programa – e os sujeitos sociais – entendidos como o bloco de classes protagonistas – e destacado a primazia dos segundos sobre as primeiras, Bernstein defendeu a centralidade dos meios sobre os fins, e da moral sobre a política.

Disto resulta um curioso paradoxo: o “apóstata” que acusou Marx de resíduos de utopismo insurrecionalista, atribuídos à herança de hegelianismo (uma de suas cruzadas era contra a dialética) confessou, sem pudores, que os novos fundamentos do socialismo deveriam ser éticos. Daí que a antinomia reforma e revolução surgisse nos termos de uma escolha voluntária, um dilema moral, em que os dois caminhos teriam vantagens e senões. Sendo o primeiro o mais conveniente, porque não só menos custoso, socialmente, como mais apropriado diante da inevitabilidade da dinâmica de progresso sob o capitalismo.

Rosa Luxemburgo respondeu afirmando que não se deve estabelecer uma oposição irreconciliável entre a luta por reformas e a luta pela revolução. A perspectiva dos dois autores é oposta pelo vértice. Qual é o limite de expansão de uma determinada ordem econômico-social? Quando se manifesta o esgotamento de um determinado modo de produção? Esse é justamente o centro do debate sobre a natureza da época, e este foi o cerne da querela do primeiro “revisionismo”.

Quando a época é revolucionária, portanto, em períodos históricos em que é insustentável a preservação de uma ordem social e política sem que a sociedade não se veja ameaçada de regressão, não são mais possíveis reformas de forma perene e sustentada. Mas desta premissa não decorre que os marxistas se dediquem a anunciar a revolução como um cataclismo escatológico.

Para Rosa Luxemburgo, se impunha a luta pelas reformas como um caminho de amadurecimento do sujeito social, pela via da experiência histórica, para a necessidade da luta pelo poder político, ou seja, pela revolução, porque as mais mínimas concessões estariam permanentemente ameaçadas, exigindo uma mudança qualitativa das relações sociais. Assim a luta por reformas era entendida como a antessala da luta revolucionária.

3.Qual é a relação entre a questão social e a questão nacional?

A obra histórica mais importante do capitalismo foi impulsionar a formação do mercado mundial liberando a aceleração de forças produtivas, até então, inimagináveis. A humanidade estava ainda dividida em civilizações autárquicas até o século XVI. Na Europa, no Oriente Médio, na Índia, na China, no planalto do México, e na cordilheira dos Andes, entre outras, existiam culturas isoladas e fechadas. Os contatos, quando existiam, eram tênues e irregulares. Muitas nem sabiam da existência das outras. Ao estimular a crescente integração de um mercado mundial que foi se estendendo até à última fronteira, uma das tendências mais poderosas do desenvolvimento do capitalismo foi fomentar, também, a constituição de um sistema europeu de Estados e, depois, de um sistema internacional de Estados.

O nome deste sistema é ordem mundial imperialista. Esta ordem mundial quase destruiu a vida civilizada em duas guerras mundiais. O capitalismo já demonstrou, portanto, que não pode unificar a humanidade. O capitalismo é um obstáculo intransponível para a tendência mais profunda do desenvolvimento histórico que o próprio capital criou e potencializou. Mas esta tendência é uma possibilidade. Possibilidade é a forma como se manifestam as leis da história. O nome dessa tendência é a unificação da civilização humana.

A Internacional é hoje entendida como o desafio de construir um instrumento de luta mundial contra o capitalismo. Mas o objetivo estratégico do combate pelo socialismo é a unificação da humanidade em um governo mundial, uma Internacional. O nome deste governo mundial deverá ser socialismo. O programa do marxismo é revolução mundial. E o internacionalismo é o coração do projeto da revolução socialista.

Quando dizemos que a ordem mundial se estrutura, pelo menos nos últimos cem anos, como uma ordem imperialista não estamos afirmando que exista um governo mundial. O capitalismo não conseguiu superar as fronteiras nacionais dos seus Estados imperialistas e permanecem, portanto, rivalidades entre as burguesias dos países centrais nas disputas de espaços econômicos e arbitragem de conflitos políticos.

Não se confirmou a hipótese de um superimperialismo, discutida na época da II Internacional: uma fusão dos interesses imperialistas dos países centrais. É certo que lutamos contra uma ordem política imperialista. Mas permanecem intactas disputas entre as burguesias de cada uma das potências, e os conflitos entre frações em cada país. O ultraimperialismo, pelo menos até hoje, nunca foi senão utopia reacionária. Mesmo na etapa político-histórica do pós-guerra, no contexto da chamada guerra fria, entre 1945/1991, quando o capitalismo sofreu a onda de choque de uma poderosa onda revolucionária que subverteu os antigos impérios coloniais. Afirmou-se uma inequívoca liderança política norte-americana, mas esta supremacia não dispensa a necessidade de negociações.

Os conflitos entre os interesses dos EUA, Japão e Europa Ocidental levaram Washington a, por exemplo, romper, parcialmente com Bretton Woods, em 1971, e suspender a conversão fixa do dólar com o ouro, desvalorizando sua moeda para defender o seu mercado interno, e baratear suas exportações. A concorrência entre corporações e a competição entre Estados centrais não foram anuladas, embora o grau em que se manifestam tenha oscilado.

Mas seria obtuso não reconhecer que as burguesias dos principais países imperialistas conseguiram construir um centro no sistema internacional de Estados, depois da destruição quase terminal da II Guerra Mundial. Ele se expressa ainda, institucionalmente, vinte e cinco anos depois do fim da URSS, pelas organizações do sistema ONU e Bretton Woods, portanto, através do FMI, do Banco Mundial, OMC, e BIS de Basileia e, finalmente, no G7. A contrarrevolução aprendeu com a história.

Neste centro de poder está a Tríade: os EUA, a União Europeia e o Japão. União Europeia e Japão têm relações associadas e complementares com Washington, e aceitam a sua superioridade desde o final da II Guerra Mundial. A mudança de etapa histórica internacional em 1989/91 não alterou este papel da Tríade e, em especial, o lugar dos EUA[2]. Embora sua liderança tenha diminuído, ainda prevalece. A dimensão de sua economia com um PIB de US$18 trilhões (o PIB mundial está estimado em US$80 trilhões, a da China em US$10 trilhões); o peso de seu mercado interno; o apelo do dólar como moeda de reserva ou entesouramento; a superioridade militar; e uma iniciativa política mais ativa permitiram, apesar de uma tendência de debilitamento, manter a posição de liderança no sistema de Estados.

Nenhum Estado da periferia passou a ser aceito no centro do sistema nos últimos vinte e cinco anos. China e Rússia são Estados que preservaram a independência política, embora tenham restaurado o capitalismo recorrendo a endividamento no mercado mundial, e exercem papel subimperialista em suas regiões de influência. Mas mudanças ocorreram na inserção dos Estados da periferia. São muitas as “formas transitórias de dependência estatal”, nas palavras de Lênin[3]. Alguns têm uma situação de dependência maior, e outros uma dependência menor. O que predominou, depois dos anos oitenta, foi um processo de recolonização, ainda que com oscilações. Há uma dinâmica histórico-social em curso. E ela é inversa daquela que predominou depois da derrota do nazi-fascismo, quando a maior parte das antigas colônias na periferia conquistou, parcialmente, independência política, ainda que no contexto de uma condição semicolonial.

A maioria dos Estados que conquistaram independência política na onda de revoluções anti-imperialistas que se seguiram à vitória da revolução chinesa, coreana e vietnamita perdeu esta conquista: Argélia e Egito, na África, Nicarágua, na América Central, e Vietnam na Ásia são exemplos, entre outros, desta regressão histórica, posterior a 1991. Ainda existem, porém, governos independentes. O Irã e Cuba são exemplos.

A peculiaridade da inserção do capitalismo brasileiro, tanto no mercado mundial quanto no sistema de Estados é que sendo um país periférico, seu lugar é singular, porque atípico na América do Sul. O Brasil deve ser compreendido como uma semicolônia privilegiada e, ao mesmo tempo, como submetrópole regional. A chave de interpretação do conceito deve ser procurada na ideia de síntese entre semicolônia e submetrópole. Ou de síntese entre a condição de dependência econômica, limitada pela necessidade de importação de capitais, e a posição subimperialista de potência regional. Por isso, o Brasil tem um estatuto híbrido. Porque o país se explicaria como uma mistura e amálgama estranho que só o desenvolvimento desigual e combinado poderia elucidar. Um híbrido é algo de uma qualidade diferente, tanto de uma semicolônia privilegiada, quanto de uma submetrópole regional, porque combina qualidades de ambos.

É um país dependente, ou uma semicolônia privilegiada porque, apesar das dimensões de sua economia, permanece um país atrasado em toda a linha. Sempre dependeu da importação de capitais e tecnologia, e tem uma burguesia resignada a um papel subordinado a Washington no sistema de Estados, entre outros muitos fatores. Não obstante é um país dependente e periférico muito especial, privilegiado. Tem um dos maiores mercados internos de consumo de bens duráveis do hemisfério sul, e a acumulação de capitais ganhou escala, de tal forma que se formou uma burguesia nacional. Não temos uma burguesia somente compradora.

4.Qual é a relação entre crescimento das forças produtivas e capitalismo hoje?

Revoluções aconteceram porque eram necessárias, mas não quando foram necessárias. “Revoluções são impossíveis, até que são inadiáveis”, cunhou Leon Trotsky. O século XX foi um século tão revolucionário que a intensidade das transformações que ele testemunhou, equivaleria, comparativamente, à de dois ou três séculos que o antecederam.

A fórmula clássica marxista sobre os limites do capitalismo foi apresentada no Prefácio à Crítica da Economia Política: a abertura de uma época revolucionária teria como determinação chave uma grande estagnação histórica. Antes que o capitalismo tivesse esgotado as possibilidades de desenvolvimento das forças produtivas, transformando-as de forças de impulso em forças de destruição, mergulhando a sociedade num interregno de barbárie crescente, não seria possível a revolução mundial. Hoje podemos constatar a que ponto as forças destrutivas se agigantaram. A barbárie avança atingindo até os países centrais, enquanto a perseguição de taxas médias de lucro mais altas ameaça a civilização com uma crise ambiental terminal, um cataclismo ecológico incontornável.

Marx nunca foi atraído pelas concepções blanquistas, o conspirativismo mais influente do seu tempo, herdeiro das tradições das sociedades secretas carbonárias. Já nos primeiros trabalhos, tendo identificado a luta de classes como uma das forças motrizes do processo de mudança histórica, Marx tinha clareza da necessidade de definir o papel destrutivo/revolucionário do sujeito social diante da propriedade burguesa. Sua aposta era que os trabalhadores assalariados, o proletariado, se levantaria quando os limites das relações sociais capitalistas transformassem o impulso das forças produtivas em forças destrutivas.

Ao contrário dos substitucionistas, sempre confiantes nas virtudes da ação exemplar de uma vanguarda decidida, a atenção de Marx, já antes das revoluções de 1848, tinha se voltado para o Cartismo. Observou com entusiasmo a nova experiência de organização operária inglesa, capaz de libertar as possibilidades de mobilização de massas. Mas unia seu interesse pela mobilização política do proletariado às conclusões de seus estudos de economia política. Pretendia oferecer fundamentos históricos sólidos para a corrente socialista: aspirava unir filosofia, história, economia e sociologia em uma totalidade teórica que elevasse o projeto socialista acima dos imperativos éticos. Fascinado pela revolução francesa, estudou o encontro da revolução com a história.

O movimento igualitarista de seu tempo, nas suas próprias palavras, não ia muito além de “comunismo sentimental”. Dedicou-se, em contrapartida, à análise do capitalismo e suas tendências endógenas à crise econômica, e potencializou uma teoria da história ancorada na luta de classes. Esta era, para Marx, a premissa que permitiria refletir o processo da transição pós-capitalista como uma transição revolucionária.

O “padrão” histórico contemporâneo atesta que revoluções se precipitam, justamente, quando e por que fracassam as transformações negociadas. Quando a força obtusa da reação mantém a dominação tirânica e a exploração econômico-social muito tempo além do que seria admissível, ou tolerável, a revolução social se coloca em movimento. Foi assim na Rússia em 1917, na Alemanha em 1918, na Espanha nos anos trinta, na Itália e França em 1943, ou na China em 1949, ou ainda em Cuba em 1959, etc… A contenção política de conflitos insolúveis sem mudanças tem limites históricos. A exacerbação da luta de classes explode na irrupção das amplas massas populares, até então, inativas. Os limites de tempo podem ser, exasperadamente, longos para a extensão de uma vida humana, mas são na escala da história, incontornáveis. As concessões às reivindicações sociais das classes exploradas e oprimidas, mesmo quando foram articuladas no interior institucional dos regimes democráticos não foram feitas nunca sem muita luta, portanto, cedidas, preventivamente, pelo “grande medo” da “parteira” da história do século XX: a revolução.

5.Qual socialismo?

O projeto socialista do marxismo não propõe somente um plano bem-intencionado, embora seja impossível derrotar o capital sem uma repulsa moral contra a injustiça. O socialismo não nasce somente da imaginação humana, mas de uma experiência histórica. O socialismo não se confunde, tampouco, com a estatização da economia. A defesa do igualitarismo social repousa em uma análise das condições objetivas e subjetivas que a própria experiência do capitalismo amadureceu ao longo dos últimos dois séculos.

A produção já foi socializada pelo capital. Nas mais variadas cadeias produtivas, é necessária a união de esforços de milhares de pessoas, em vários países, para completar a montagem dos produtos. No entanto, a crescente socialização produtiva não diminuiu a desigualdade, mas a aumentou. Se há uma constatação inescapável no mundo capitalista que nos cerca, é a comprovação da desigualdade crescente entre os países do centro e os da periferia, e da disparidade social dentro dos países.

Argumentou-se, no passado, que apesar de ser irrefutável que o capitalismo gera crescente desigualdade social e nacional, permanecia como o horizonte da sociedade contemporânea. Porque esta deformação de maior injustiça estaria compensada pelo aumento da riqueza. A crise mundial aberta em 2008 veio desmentir esta ideologia, embora tenha sido evitado uma depressão de tipo catastrófica como nos anos trinta do século XX. A estagnação da economia norte-americana, e a regressão européia confirmaram a vigência da teoria das crises cíclicas do capital. O desperdício de recursos naturais e humanos não deixou de aumentar nos últimos dez anos. A segunda década do século XXI será uma década recessiva.

O projeto do socialismo é a distribuição da riqueza entre todos os que trabalham, eliminando a renda do capital. Não nos deve surpreender, no entanto, que muitos acreditem na acusação dirigida aos marxistas de que todos deveriam receber o mesmo salário, ou que todos os salários deveriam ser iguais ao valor agregado pelo seu trabalho. Isso não é verdade. Não há um só texto de Marx ou, de resto, de qualquer um dos principais herdeiros de sua tradição, que defenda salário igual para trabalho diferente, nem foi este o critério dos comuneiros na França em 1871, dos bolcheviques na Rússia em 1917 ou de qualquer das outras experiências pós-capitalistas do século XX. Enquanto a disparidade de condições e intensidade do trabalho persistirem, trabalhos diferentes terão, obrigatoriamente, remunerações desiguais, portanto, umas serão maiores que outras. Enquanto a capacidade de produção da abundância for somente relativa, a distribuição gratuita e universal dos produtos mais intensamente necessários será condicionada, e a forma salarial será preservada.

É verdade que a Comuna de Paris estabeleceu que o salário médio operário deveria ser a referência para os funcionários da própria Comuna – uma função pública, portanto, removível, do primeiro e efêmero Estado dos trabalhadores –, mas não estendeu este máximo para todas as funções sociais. A construção do socialismo, um projeto de dimensão internacional, só pode ser imaginada no marco de uma crescente redução da desigualdade entre as pessoas e entre as nações.

Os socialistas sempre defenderam a posição de que as diferenças salariais existentes na maioria dos países, com diferenças entre o piso e o teto que excedem a variação de um para cem, não correspondem às diferenças de qualidade nem à quantidade de trabalho efetivamente realizada. Não é nem razoável nem admissível que um trabalho possa ser gratificado com um salário muitas dezenas de vezes maior que outro. O dia tem 24 horas para todos.

A revolução de outubro procurou estabelecer limites entre o piso e o teto que não fossem além da variação de um para 10, mas poderiam ter sido de um para 20, ou qualquer outra fórmula, desde que dentro de limites que estimulassem a qualificação do trabalho e a produção, sem garantir privilégios. Critérios semelhantes foram considerados nos primeiros anos das Revoluções chinesa e cubana.

Os marxistas não defendiam, tampouco, que os salários poderiam ser iguais ao valor transferido à produção. Isso seria uma quimera, porque supõe ser possível que cada um receba integralmente de acordo com o que produz. Os socialistas reconheciam a necessidade de fundos públicos, tanto para garantir os investimentos ou para financiar os serviços sociais, quanto para assegurar a proteção dos inaptos para o trabalho, como doentes ou idosos.

Existiram, todavia, historicamente, diferentes tradições igualitaristas. Entre elas, recordemos também os defensores da igualdade pela distribuição da propriedade, a aspiração secular dos camponeses pobres com sua fome crônica por mais terra ainda no horizonte da propriedade privada. O marxismo distinguiu-se destas correntes por defender a tese de que a passagem a uma sociedade socialista deveria ser compreendida pelo critério “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”, construída pela socialização da propriedade em correspondência com a socialização crescente da produção realizada pelo capitalismo.

A distribuição segundo as necessidades presume a desmercantilização dos produtos mais intensamente necessários, ou seja, a gratuidade crescente da alimentação, da educação, da saúde, dos transportes, do lazer, etc. A gratuidade dos produtos é o objetivo de uma distribuição socialista. A distribuição segundo a satisfação das necessidades exigirá, portanto, ir além do regime do trabalho assalariado, que deixará de ser um martírio, para alcançar o estatuto de plena realização.

Os marxistas nunca tiveram, todavia, a ilusão de que este princípio organizador da distribuição pudesse ser implantado imediatamente, ou à escala de um só país. Os marxistas consideravam que o socialismo teria uma fase inicial em que deveriam ocorrer duas profundas transformações: a eliminação da remuneração do capital, ou seja, a garantia de que a riqueza produzida socialmente deveria ser distribuída entre todos, e uma substancial redução das diferenças entre os salários. Direitos são compreendidos, pelos socialistas, como proporcionais aos deveres. Como nos versos da Internacional, o hino que cantamos: não mais direitos sem deveres, não mais deveres sem direitos.

De cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo o trabalho realizado. O marxismo estabeleceu como princípio de distribuição para uma sociedade de transição “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo o trabalho realizado”. Ao reconhecer que a distribuição seria ainda regulada segundo o trabalho realizado – portanto, salários desiguais –, os socialistas estavam anunciando sua intenção de pôr fim à remuneração do capital, mas admitindo transitoriamente uma distribuição desigual, o que é o mesmo que aceitar algum critério de racionamento. O cancelamento da renda do capital corresponderia a uma socialização, nas condições atuais, de pelo menos um terço da riqueza nacional produzida a cada ano. O estabelecimento de um piso e de um teto salarial em que a diferença entre o menor e o mais alto dos salários não excedesse, por exemplo, dez vezes o valor do mínimo, permitiria uma elevação rápida do padrão de vida da maioria da população. Os critérios de remuneração do trabalho deveriam reconhecer a necessidade de recompensas materiais extras para os trabalhos que pressupõem longa educação e treinamento – um estímulo à reposição e ampliação da mão-de-obra hiper-especializada – ou das tarefas especialmente penosas ou perigosas.

Deveria ser considerada também a necessidade de acabar com os supersalários dos administradores e diretores que realizam funções de confiança dos patrões e do Estado, que recebem pagamentos nababescos para manterem a obediência às hierarquias de comando. As tarefas de administração, mesmo quando especializadas, não exigirão qualificações que possam dispensar a confiança dos que trabalham, e não há razão para que os encarregados não sejam eleitos por mandatos e regularmente substituídos.

Os próprios marxistas foram os primeiros a reconhecer que a diminuição da desigualdade social impulsionada pelo princípio meritocrático (a tirania do esforço ou do talento) “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo o trabalho realizado”, não garantiria uma justa igualdade social. A explicação é simples: porque estaríamos diante de um tratamento igual para os desiguais. Quando aqueles socialmente desiguais recebem o mesmo tratamento, a desigualdade, necessariamente, se perpetua. O princípio de tratar de forma igual os desiguais seria igualitário, formalmente, mas não permitiria eliminar a desigualdade. A igualdade de oportunidades não é o mesmo que a igualdade social. O princípio abstrato da igualdade meritocrática preserva um tratamento desigual.

As condições de uma sociedade livre, em Marx, só se vislumbram a partir do momento em que o “reino da necessidade” é superado, ou seja, quando cessa o trabalho determinado pelas necessidades. A partir deste momento, o trabalho não será mais a alienação compulsória imposta pela necessidade, mas uma forma de livre exercício da criatividade humana. A manutenção das diferenças salariais seria explicada não só pelas habilidades individuais inatas, ou pelas diferenças que resultam de inúmeros fatores socialmente involuntários (oportunidades distintas, situações familiares específicas, dificuldade de acesso à educação, diversidade das condições materiais e culturais) que podemos definir como a herança da etapa histórica anterior. Em uma sociedade em transição ao socialismo na qual a escassez relativa ainda exigiria a preservação da forma salário – expressando uma forma de racionamento ou regulação do consumo –, estaríamos apenas diante de uma igualdade crescente. A preservação da forma salário, mesmo se alguns dos produtos mais necessários tiverem distribuição gratuita, significa que a economia ainda mantém, essencialmente, relações mercantis. Porque a chave do desafio histórico deve ser a desmercantilização do próprio trabalho.

Enquanto não forem atingidos os graus superiores de desmercantilização, entendida como a disponibilidade universal dos bens e serviços mais intensamente desejados, condicionada pelo desenvolvimento das forças produtivas, pela superação da divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, e pela participação coletiva nas decisões-chave da vida econômica e social, desfrutaremos de graus crescentes de liberdade, proporcionais à redução da desigualdade.

Em resumo, a superação do capitalismo começa pela expropriação do capital, mas permanece incompleta enquanto não se conseguir libertar a humanidade da escravidão do trabalho assalariado. É possível? Se tudo que é real é racional, tudo que é racional, pode ser real. Enquanto houver luta e resistência, é possível. Será a luta de classes que decidirá.

 [1] Não vou recorrer neste artigo a citações. Não abusarei, portanto, dos argumentos de autoridade, embora eles sejam legítimos. Afinal, a tradição tem importância. Seria ingénuo, contudo, ignorar que a tentação é grande, porque a presença de citações de Marx, Engels, ou outros clássicos como Lenin, Trotsky, Rosa Luxemburgo, como aliados ou adversários, engrandece qualquer exposição. Os argumentos de autoridade têm, todavia, os seus limites. Este procedimento revela, invariavelmente, mais sobre o seu autor, do que sobre as idéias indefesas dos clássicos, que podem ser vítimas dos que se escondem atrás do seu prestígio. Não é, portanto, gratuito que se busque nos seus escritos um ponto de apoio para idéias que estão hoje em disputa, como já foi certamente feito incontáveis vezes, sejam essas estranhas ou herdeiras do seu pensamento. O peso do passado e das idéias do passado governam a imaginação do presente e cada geração tem o seu desafio de reinterpretar a memória da tradição, o que é legítimo e necessário. No entanto, toda tradição teórico-política, em especial a marxista, deveria estar em “aberto”, no sentido de que é uma obra em contrução, portanto, permanentemente em disputa.

[2] Uma excepcionalidade econômica intrigante no mundo contemporâneo desafia nossa compreensão: há mais de quinze anos os EUA têm déficits gêmeos, o déficit fiscal e o déficit comercial. “Gêmeos” porque ambos oscilam em torno de US$500 bilhões. O déficit orçamental subiu para US$ 587 bilhões no ano fiscal que terminou em 30 de setembro de 2016. Como resultado, o déficit subiu para 3,2% do Produto Interno Bruto, em linha com a média que foi executada ao longo dos últimos 40 anos. Por que os déficits gêmeos podem ser considerados excepcionalidades ou anomalias? Porque deveriam ser, em princípio, inflacionários, reduzindo os custos produtivos no interior dos EUA e, em decorrência, favorecendo o barateamento de suas exportações, mas na longa duração o baixo crescimento teve consequências deflacionárias. Porque as outras duas forças competidoras dentro da “Tríade” aceitaram a ruptura de Bretton Woods, mas a luta pela hegemonia nunca se interrompeu, como ensina a experiência histórica: competitividade e cooperação no sistema internacional de Estados se alternam em função das relações de forças. A passagem do Mercado Comum Europeu a União Europeia foi um esforço de unificação de mercados de capitais, de consumo, de força de trabalho e de unificação jurídica que permitiu que o lançamento do Euro tivesse bases sólidas de competição com o dólar pela disputa do entesouramento mundial. A emissão de dólar sem lastro, portanto, sem conversibilidade ao ouro, desde 1972, quando da ruptura unilateral de Nixon com o acordo de Bretton Woods de 1944, que criou o FMI, permitiu o relaxamento monetário (os QE, ou Quantitative Easing), durante dois mandatos de Obama. A mudança de padrões monetários é um processo histórico dos mais complexos. Também foi lenta a passagem da libra ao dólar.

[3] LENIN, Vladimir Ilitch Ulianov. Imperialismo, estágio supremo do capitalismo, cap.VI sobre países dependentes. https://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/imperialismo/cap6.htm

Consulta em 12/12/2016.