Por: Gisele Peres, de São Paulo, SP
Argentino radicado no Brasil desde os anos 80, o cineasta Carlos Pronzato é um dos principais documentaristas da atualidade, com foco em temas populares e processos de lutas, entre eles os aclamados “Carabina M2, uma arma americana – o Che na Bolívia”; “O Panelaço – a rebelião argentina”; “Bolívia, a guerra do gás”; “A Revolta do Buzu”; “Buscando a Allende”; e “Madres de Plaza de Mayo – memória, verdade, justiça”.
Pronzato, que também é escritor, lançou no início deste ano o livro “O Milagre da Luz e outros contos em Trastevere – Roma- (150 páginas, editora Multifoco, RJ), além do documentário “OCUPA TUDO, Escolas Ocupadas no Paraná”, que retrata a luta dos estudantes secundaristas contra a Reforma do Ensino Médio proposta pelo governo Temer.
Mas, é com exclusividade para o Esquerda Online que o documentarista fala sobre o seu próximo projeto, um filme sobre os cem anos da Greve Geral 1917, uma das mais abrangentes e longas mobilizações operárias da história do Brasil.
Esquerda Online: Sua obra transita pela literatura, teatro e cinema. Mas, foram através dos documentários com temas políticos, que geralmente estão fora dos circuitos privados e institucionais de cinema, que você alcançou reconhecimento e prêmios internacionais. Em sua opinião, qual a importância de escolher documentar a trajetória de personagens de esquerda e também manifestações populares, sindicais e estudantis?
Carlos Pronzato: A maioria das escolhas são pessoais, outras através de convites. A importância dessas escolhas é fundamental para o trabalho que desenvolvo, já que através desses personagens históricos da esquerda que revivemos episódios marcantes da nossa história, uma história sequestrada e escondida pela direita. Como exemplo posso citar Che Guevara (Carabina M2, um arma americana, Che na Bolívia, 2007) e Marighella (Carlos Marighella, quem samba fica, quem não samba vai embora, 2011), por citar apenas dois das mais proeminentes lutadores sociais, ambos sem espaço nos currículos escolares.
Ambos impulsam hoje, ao meu entender, propostas político-sociais de enfrentamento à opressão, com as peculiaridades contemporâneas, se conseguirmos entender a amplidão dessas históricas mensagens de coragem que não sucumbiram no tempo e são sempre necessárias para alavancar um presente de lutas, e principalmente agora em que muitas das conquistas do passado estão sendo pisoteadas por um grupo político da pior linhagem que usurpou o poder executivo. Quanto a documentar manifestações populares é outra faceta da mesma proposta, imbuídas de uma pegada diferente, já que nesses trabalhos não há muito tempo para a reflexão histórica e sim de um constante e alerta ativismo, ainda que registrando grupos e coletivos com suas divergências políticas, mas que apontam todas para a emancipação da classe trabalhadora.
Esquerda Online: O tema do seu próximo documentário será a Greve Geral de 1917, promovida por organizações operárias de inspiração anarquista aliada à imprensa libertária. Como foi o processo de produção desse filme? Quais foram os principais desafios e dificuldades?
Carlos Pronzato: O processo foi iniciado em meados de 2016 com visitas aos arquivos de São Paulo e Campinas, onde se encontra o Arquivo Edgard Leuenroth, em homenagem ao célebre jornalista e militante anarquista, e muitas leituras do material acadêmico produzido até hoje e que atualmente continua em andamento. Todas as entrevistas já foram realizadas e continuamos com a pesquisa em arquivos, jornais, documentos, panfletos, material iconográfico etc. O primeiro desafio é sempre aceitar o desafio de trabalhar sem grandes recursos, com muita solidariedade daqueles que acreditam no potencial transformador deste tipo de obra, sempre realizado às margens do Estado.
O segundo é tentar configurar um retrato fidedigno dessa que foi a primeira Greve Geral do país e tentar trazer para estes tumultuados dias atuais o espírito da revolta – este é o título do livro da pesquisadora Christina Lopreato, certamente a obra principal que resgata o episódio e uma das entrevistadas. O que sempre me move ao iniciar documentários históricos de corte político é justamente isso, abordar as questões principais que deflagram os acontecimentos e os próprios acontecimentos em si, mas sempre dentro de uma perspectiva de provocar ações concretas hoje, através dos exemplos do passado.
O longo e extenuante trabalho de encontrar a linha narrativa no decurso da escuta de horas e horas de entrevistas é o processo mais complexo antes de partir para a montagem da obra, incluindo os outros elementos. Talvez seja essa a maior dificuldade neste trabalho, já que se trata de um fato histórico de cem anos atrás, para o qual contamos com um número reduzido de imagens, embora muito material de imprensa, notadamente a imprensa anarquista e socialista da época, alguns em italiano. A maior dificuldade é a infelicidade de não encontrar mais sobreviventes da Greve Geral, inclusive descendentes, o que teria sido fundamental em termos de História oral que é tão importante quanto os excelentes depoimentos de acadêmicos munidos de vasta documentação.
Esquerda Online: Houve um brutal processo de repressão em 1917, com o uso de violência extrema. Policiais matavam manifestantes, com sabres e tiros, ação que ficou conhecida como noite de São Bartolomeu paulista. Apesar da violência e desaparecimentos nunca explicados, a greve é considerada vitoriosa por ter atingido conquistas como aumentos salariais, redução de jornadas de trabalho e limitação à exploração da força de trabalho de mulheres e crianças. Como o seu documentário aborda a repressão e as conquistas?
Carlos Pronzato: Certamente há muita nebulosa quanto ao número de mortos nos enfretamentos nas ruas de São Paulo em julho de 1917 durante a Greve Geral, além da morte do sapateiro espanhol anarquista de 21 anos, José Martinez – fato que deflagrou o acirramento da resposta popular e a conseguinte repressão indiscriminada das forças à serviço das elites paulistas – e os outros dos mortos posteriores. Há indícios de enterros clandestinos no cemitério de Araçá na calada da noite, mas não sabemos exatamente o número que, acredita-se, supera os dois mil. No documentário traçamos um paralelo, inclusive, com as valas clandestinas descobertas pós ditadura civil-militar, vindas a conhecimento público a partir das pesquisas dos persistentes movimentos de Direitos Humanos. Sem dúvida, a brutal repressão reflete o fato de aquela histórica greve colocar em xeque o sistema de exploração inumana da incipiente industrialização daqueles inícios do século XX.
O que não impediu que as conquistas sociais tenham sido de extrema importância para os trabalhadores que tiveram suas principais reivindicações atendidas, embora num momento posterior muitas delas foram desonradas pelos empresários milionários e o sistema capitalista que lhes deu – e lhes dá – amparo. No filme, resgatamos essas conquistas, o papel da mulher na linha de frente das revoltas e o papel que coube à imigração, maiormente italiana, que trazia experiências de luta na Europa, e exaltamos a maneira em que foram obtidas, com muita organização prévia do sindicalismo revolucionário através das Ligas de Bairro, notadamente a da Mooca, e a importância da pedagogia anarquista (Escolas Racionalistas, Teatro, Literatura, Imprensa) colocada em prática desde muito tempo antes, o que criou um substrato subjetivo que, aliado as condições objetivas da exploração, culminou todo esse processo de lutas iniciado, ao menos, uma década antes.
Esquerda Online: Cem anos depois da Greve de 1917, a proposta de reforma da Previdência propõe, entre ouros ataques, aumentar o tempo de contribuição e de idade para aposentadoria condenando os mais pobres a morrerem trabalhando. Cem anos depois, os trabalhadores tomaram as ruas do Brasil no último dia 28, numa Greve Geral, em defesa dos direitos trabalhistas. Podemos afirmar que a luta por condições de trabalho e vida menos exploratórias e mais humanas permanece a mesma? O que a história da primeira greve, levantada no seu filme, tem a nos ensinar em 2017?
Carlos Pronzato: É justamente neste atual período de alarmantes retrocessos sociais e políticos, em que nos toca viver, que o documentário pode chegar a ter um papel de grande transcendência para, ao colocar o foco naqueles pioneiros das conquistas trabalhistas que desfrutamos hoje, ou melhor, até hoje, que depois passaram por diversos processos de aprimoramento e também aspectos que desvirtuaram as propostas originais durante o período Vargas, desembocar num contundente alerta na defesa de uma carteira de trabalho a cada dia mais rasgada.
É sintomático que, em dias de greves gerais (28 de abril) este centenário da primeira greve geral se constitua também num pretexto para potencializar a resistência ao momento político atual. Podemos afirmar sim que, mudados os contextos, a luta por condições dignas de trabalho contra a exploração do capital continua a mesma, mas o que o filme tenta trazer aos dias atuais é que a resistência à desumanização do trabalhador por força do capital e a luta por novos horizontes de transformação social continuarão sempre enquanto exista a indignação e a coragem de não abandonar a luta diante de um inimigo completamente desproporcional. Pelo menos, é isso que o exemplo de aqueles grevistas, anarquistas e socialistas de 1917, inauguraram neste país.
Acesso
Os documentários de Pronzato estão disponíveis no site de busca de vídeos Youtube. O catálogo do documentarista pode ser conferido no endereço.
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