Pular para o conteúdo
EDITORIAL

Nova e polêmica lei da coca, na Bolivia

Por Joana Benário, São Paulo/SP

No domingo 19 de março, o Presidente Evo Morales apresentou a nova lei da Coca a suas bases, o setor dos produtores de coca da região do Trópico de Cochabamba, em um ato muito concorrido de milhares de pessoas. O dirigente da Central sindical camponesa nacional (CSUTCB) aproveitou a oportunidade para apresentar Evo como o seu candidato presidencial para as próximas eleições presidenciais de 2019.

 Que propõe a nova lei?

A nova lei legaliza o cultivo de 22.000 hectares de coca no pais. Anteriormente, o limite era fixado em 12.000 Ha.  Esses hectares estão divididos entre as duas grandes regiões de cultivo, os Yungas de LaPaz e o Chapare de Cochabamba.

Zonas de produção  ANTES   (lei 1008) AGORA  (lei 906)
YUNGAS  8.800 Ha 14.300 Ha
CHAPARE  3.200 Ha   7.700 Ha
TOTAL 12.000 Ha 22.000  Ha

Além disso, a nova lei reconhece o uso tradicional da coca na Bolívia para mastigação da folha (accullicu) e mates, medicina tradicional e usos sagrados para rituais, assim como usos culinários e em alimentos processados, bolos, shampoos, etc… Depois de várias negociações internacionais, em 2013, a ONU despenalizou a coca para uso tradicional na Bolívia, mas a folha de coca ainda continua  sendo considerada, internacionalmente, como um narcótico e não pode ser exportada legalmente.

A principal  controvérsia em torno a essa nova lei é que legaliza mais cultivos de coca do que o consumo tradicional que a Bolívia precisa.  Apesar de não haver números exatos, estima-se que haja entre 20 e 35.000 hectares cultivados[i], segundo as fontes.  O governo boliviano reconhece o cultivo de 20.200 hectares  para uma produção de 32.500 toneladas de coca, segundo um informe da Oficina das Nações Unidas contra as Drogas e o Delito (UNODC) de 2015.

Outro estudo financiado pela União Europeia (2012) que demorou quatro anos, estima que um milhão de pessoas na Bolívia consome folhas de coca (10 % da população) , para o qual seriam justificados o cultivo de 14.300 ha. de coca.  Como vemos, os números são muito questionáveis, mas todos mostram a existência de um grande excedente na produção de coca, ou seja, que não é absorvido pelo consumo tradicional.  Este excedente, sem dúvida, vai para o tráfico de drogas, problema antigo para a Bolivia e outros paises produtores de coca, e vai se tornar mais agudo com a nova lei. As cifras revelam também que a velha política de erradicação dos cultivos de coca (imposta e financiada pelos EUA) é um  fracasso e nunca resolveu o problema nem da produção nem do tráfico.

Na Bolívia, o debate sobre a coca se limita à despenalização, sem entrar no enfoque da legalização geral das drogas, debate necessário e existente em outros países. A descriminalização nacional da coca, conseguida por meio da ONU, foi um passo importante. A legalização dos cultivos de coca que consta na nova lei, é uma reivindicação histórica do setor dos produtores, mas se não for acompanhada de outras medidas tais como controle estatal sobre toda a produção, preço fixo da folha de coca e a entrega ao Estado para sua comercialização oficial, acaba sendo uma medida insuficiente. Ao invés de avançar na solução do problema, colabora com a expansão da comercialização ilícita, devido ao aumento da oferta, porque a produção excedente entra no mercado do tráfico de drogas.

 Antecedentes: a poderosa Lei 1008

Um conjunto de lei substituíram a antiga lei 1008, imposta pelos EUA em 1988, conhecida como a lei anti-droga que criminalizou produtores de coca como principais responsáveis pela produção e tráfico de cocaína. Centenas deles ainda lotam as prisões da Bolívia, muitos deles sem julgamento… Essa lei 1008 foi baseada na política norte-americana de “guerra às drogas”, com o argumento que a existência do mercado ilegal de cocaína é responsabilidade dos produtores de folhas de coca, porque no mercado global a oferta de um produto leva à demanda… justificando assim a politica imperialista de intervenção, desenvolvida pelos EUA desde a década 80.

Essa politica da criminalização da coca foi o motor para o surgimento da organização e da luta do setor dos produtores de coca na Bolivia, com o seu líder Evo Morales, em duros enfrentamentos contra a politica imperialista. Naqueles anos, os eixos da luta dos produtores de coca, apoiados pelo movimento camponês no seu conjunto e também pela COB (Central Operária Boliviana), podiam se resumir nas suas palavras de ordem: ‘coca não é cocaína’,  ‘a coca é milenária e sagrada’  ‘Gringos, go Home’.

No início de seu primeiro mandato, em 2008, Evo assinou vários acordos com as organizações locais de produtores de coca que permitiam maior cultivo de coca no país, atingindo a quantidade de 20.000 Ha.  A lei atual legaliza esses acordos e ainda aumenta 2000 ha., depois de protestos dos cocaleros de Yungas de LaPaz, insatisfeitos com a distribuição entre as duas regiões.  Na região dos Yungas, considerada como região tradicional de produção de coca no pais, o rendimento médio é de uma tonelada de coca por hectare; na região do Chapare, o rendimento dobra. Com  7.700 ha. permitidos, os produtores do Chapare (base social de Evo) vão legalizar a mesma produção que a região dos Yungas que era a região tradicional,  “onde a coca é mais doce” segundo o refrão popular.

A União Europeia já mostrou sua preocupação quanto a esse aumento da produção da coca e anunciou que modificará sua cooperação com o pais. Do mesmo jeito, os Estados Unidos informaram que recriminavam a Bolívia no tema da luta contra o narcotráfico.  Retomando seus velhos discursos, Evo Morales ressaltou que a Comunidade Internacional deve entender que certas decisões são adotadas sem o consentimento dos Estados Unidos ou da Europa.

 Por trás da nova lei

Quando ele era o líder dos pequenos produtores de coca, Evo sempre afirmou que uma tarefa central de seu governo seria a de derrubar a lei 1008. Onze anos de governo se passaram, sem mudá-la. Hoje, considerando os crescentes protestos sociais contra seu governo e a acelerada queda da sua popularidade,  ele precisa reforçar sua base social,  assegurar que os cocaleiros do Chapare seguirão seu líder até o final.  Pode-se lembrar aqui que Evo continua sendo o máximo dirigente sindical das 6 Federações do Trópico de Cochabamba; nunca deixou outros assumirem o cargo.

No ano passado, 21 de fevereiro de 2016, o governo do Movimento ao Socialismo (MAS) organizou um referendum perguntando ao povo se estava de acordo com um quarto mandato de Evo (2020-2024), a fim de modificar a Constituição que limita a dois o número de mandatos. Apesar da grande publicidade, o governo perdeu; com 51,3% ganhou o NÃO.  Esse foi um sinal muito forte para Evo, que marcou o início do declínio de seu governo.  Este ano, naquela data, foram organizados pela oposição, atos nas principais cidades do pais, exigindo respeito àqueles resultados. Os atos do 21F foram multitudinários, juntando setores da direita e numerosos setores sociais insatisfeitos com a governo de Evo pela crescente crise econômica, a falta de emprego, a ineficiência do Estado em resolver os problemas do país e os escândalos de corrupção nas esferas do poder.  A promulgação da nova lei da coca chega no momento preciso para revalorizar a importância de manter Evo no poder ante a base do MAS.  A importância do debate sobre a legalização da coca e das drogas não pode desconsiderar os interesses políticos por trás desta nova lei.

[i]O Departamento de Estado norte americano deu a conhecer seu relatório 2016 sobre o controle de narcóticos, onde reitera o “fracasso manifesto” da Bolívia na luta contra as drogas, e indica entre 2013 e 2014 um aumento de 30% ocorreu nos cultivos de coca, que de acordo com o relatório chegaria a 35.000 hectares. http://cd1.eju.tv/wp-content/uploads/2016/03/REPORT-INCSR.pdf

[ii]ttps://www.unodc.org/bolivia/es/Los-cultivos-de-coca-en-Bolivia-se-estabilizaron-en-2015-reporta-el-Informe-de-Monitoreo-de-la-UNODC.html