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BRASIL

Da Carne Fraca à Soberania: por uma revolução no sistema alimentar

Por Anderson Santos

O recente escândalo envolvendo as principais empresas do setor frigorífico nacional (JBS, BRF e diversos frigoríficos de peso regional) vem esquentando o debate nas mídias acerca de temas que envolvem política, economia e saúde. São pelo menos duas as questões fundamentais que se revelam a partir deste episódio: 1) o papel do Estado brasileiro na manutenção de um nefasto esquema de fraudes que favorecem o aumento da taxa de lucros de empresas-chave do agronegócio e 2) a falência de um modelo de produção de alimentos que garanta soberania e segurança alimentar e nutricional para nosso país.

Caem as máscaras do agronegócio e seu mais fiel capacho, o Estado brasileiro

O agronegócio brasileiro constitui uma cadeia produtiva complexa e integrada que envolve atividades econômicas mais diversas: agricultura, pecuária, agroindústrias, insumos agrícolas (fertilizantes, herbicidas, inseticidas, biotecnologia), biocombustíveis, processamento de derivados e até bancos de crédito. Setor econômico que em sua ampla composição é responsável por quase 30% do PIB nacional, o agronegócio expande fronteiras: somente nos exemplos das duas maiores empresas de produtos proteicos vemos a JBS e a BRF como empresas transnacionais, com operações muito mais abrangentes do que o mercado brasileiro.

A JBS Internacional, com sede na Irlanda, controla operações que ultrapassam os US$ 35 bilhões de dólares no Brasil (JBS Brasil/Seara/Friboi), EUA (JBS USA/Pilgrim’s Pride/Moy Park), Canadá (XL Foods) e em várias outras extensões, se tornando a maior produtora de carnes do mundo, com mais de 80% do seu investimento proveniente do exterior.

A Brasil Foods (BRF), fruto da fusão entre Sadia e Perdigão, conta com uma composição societária que envolve desde mais de um terço de capital estrangeiro, bem como Fundos de Pensão e bancos estatais, e expande seus negócios para o mercado asiático, como ficou comprovado na compra da FFM Further Processing da Malásia.

Todo este império, hiperpatrocinado pelo Estado brasileiro através do BNDES, Caixa e Fundos de Pensão, impuseram nos últimos anos uma profunda reestruturação no setor buscando a competitividade no mercado internacional. O aumento da produtividade e do lucro médio das empresas se deu às custas da saúde dos trabalhadores com operações mais rápidas e extenuantes, e, como agora se vê, também dos consumidores, com a introdução de químicos cancerígenos e partes inapropriadas de animais no manejo de produtos alimentícios comercializados em todo o país.

Ou seja, não só as empresas, mas o próprio Estado brasileiro (especialmente nos governos FHC, Lula, Dilma e Temer) são os responsáveis pelo aumento da exploração do trabalho em toda a cadeia produtiva agropecuária, pelos impactos ambientais causados por este modelo (desmatamento, agrotóxicos, transgenia) e pela insegurança alimentar e nutricional de toda a população.

Portanto não se trata de defender a “indústria nacional” do agronegócio como fazem setores mais cínicos do reformismo ligados ao PT/PC do B (ao levantarem dúvidas quanto ao teor das denúncias apresentadas nas investigações da Polícia Federal), nem tampouco endossar o coro de que apenas a reintrodução de práticas seguras na produção (através de uma maior fiscalização por parte dos órgãos do Estado) sejam necessárias para reestabelecer a confiança no próprio agronegócio. Na verdade, o próprio sistema já é contaminado.

Agroecologia e soberania alimentar: dois remédios para um sistema alimentar que está na UTI

Um importante debate se abre diante da crise imposta: existe saída diante da internacionalização do capital que usurpou as culturas alimentares e impõe podridão e indignidade nas nossas mesas com a conivência do Estado? Seremos sempre reféns da sanha do capital, até mesmo quando se trata dos nossos gostos e corpos?

Uma das grandes apostas de setores ligados ao antigo governismo foi o “investimento” na agricultura familiar. Este modelo, ainda que muito importante para a composição alimentar e econômica de milhões de famílias no Brasil, mostra claros sinais de esgotamento. Sem terras, verbas e assistência técnica, possui pouca participação na lucratividade média do setor agrícola nacional, especialmente porque está associado apenas à produção primária com baixíssimo valor agregado em seus produtos.

Neste cenário dramático famílias cuja situação de vulnerabilidade social e de saúde são evidentes, heroicamente conseguem abastecer pequenos e médios circuitos de mercado, através de feiras e de algumas políticas públicas como a da alimentação escolar, sempre às custas de trabalho extenuante, com dificuldades em implantar práticas agrícolas ambientalmente sustentáveis e com produtos que são pouco atrativos nos centros urbanos, dada sua baixa praticidade culinária.

Muito longe de estabelecer modelos prontos de produção agrícola/pecuária, é sobre algumas premissas que devemos nos debruçar para pensar tarefas neste campo estratégico para o debate político em nosso país. É preciso mudar a lógica e garantir a soberania alimentar transferindo o investimento público em setores privados internacionalizados para setores ligados aos trabalhadores, em especial aqueles organizados em movimentos e associações produtivas compromissadas com o pleno abastecimento interno com diversidade, qualidade e responsabilidade ambiental. Se faz necessário repensar a prática agropecuária com a adoção de modelos agroecológicos que respeitem os nossos biomas e introduzam comida de verdade nas nossas mesas. O investimento público deve estar a serviço de tecnologias que garantam quantidade e qualidade de alimentos respeitando culturas, histórias e modos de vida para favorecer práticas menos medicalizadas quando se trata de comida. Para que isso se torne realidade não há outro caminho senão a nacionalização de toda cadeia produtiva como elemento garantidor da soberania alimentar.