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BRASIL

Trabalhadores e juventude não podem pagar pela crise das dívidas nos estados e municípios brasileiros

Por: Felipe Nunes, de Natal, RN

Nos últimos meses, virou rotina para os servidores do Rio Grande do Norte o atraso de salários. Os trabalhadores convivem com um horizonte de incertezas, sem saber em que dia terão seus salários pagos pelo governo do estado. Este tem justificado os atrasos constates aos impactos da crise econômica e o reflexo do colapso financeiro vivenciado pelas administrações estaduais. Mas, por que os estados chegaram a esta situação?

Como surge a dívida pública
A dívida pública acumulada pelos estados tem origem no somatório do débito que os órgãos do Estado possuem com o Governo Federal, estados, municípios, empresas estatais, bem como outros órgãos públicos e entidades privadas.

Em geral, o endividamento é contraído através do financiamento dos gastos públicos, como novas obras, educação, saúde, segurança, entre outros, com gastos com os juros sobre as dívidas contraídas, e também relacionados com a política monetária e cambial desenvolvida por cada um. A origem da dívida no Brasil remonta ao período da ditadura militar, período que se deu início a um processo de concentração tributária por parte da União em detrimento dos estados e municípios, levando-os mesmos a recorrerem ao endividamento para buscar recursos.

Na década de 90, em crise financeira devido ao ajuste fiscal neoliberal, os estados acabaram multiplicando suas dívidas. A União refinanciou as dívidas dos estados por meio da Lei 9.496/97 e dos municípios pela Medida Provisória nº1.811/99. Além disso, por orientação do Fundo Monetário Internacional (FMI) os estados deram início à privatização do patrimônio público. O setor financeiro se beneficiou nesse processo, por exemplo, na privatização dos bancos estaduais. Adquiriu a preços baratos imóveis, clientela, títulos a receber e dinheiro em caixa. Os passivos dos bancos foram incorporados, refinanciados pela União entre 1997 e 2000, respondendo por 55% das dívidas refinanciadas dos estados pela União. Segundo o relatório realizado pela Auditoria Cidadã da Dívida, esse processo “foi um impressionante esquema de transferência de renda para os bancos”.  Ainda, segundo o relatório, a dívida contraída possui uma série de irregularidades e ilegalidades verificadas ao longo do processo.

Diante deste quadro de crescente endividamento com a União, alguns estados buscaram realizar empréstimos com bancos privados internacionais e o Banco Mundial, o que, obviamente, agravou ainda mais a situação financeira, sobretudo com as constantes altas do dólar.  Em 2013, o Governo do Rio Grande do Norte tomou de empréstimo, junto ao Banco Mundial, 360 milhões de dólares, em seguida mais 180 milhões de dólares, totalizando 540 milhões de dólares, o equivalente à época a mais de R$ 1 bilhão. Neste ano, o governo da Paraíba solicitou empréstimos a instituições financeiras internacionais no valor de 600 milhões de dólares, aproximadamente R$ 2,2 bilhões. São 250 milhões de dólares com a Corporação Andina de Fomento (CAF), 50 milhões de dólares com o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), 125 milhões de dólares com o Banco Mundial e 125 milhões de dólares com o Banco Europeu.

O legado dos Megaeventos
Os Megaeventos, Copa e Olimpíadas, geraram dívidas bilionárias para a economia brasileira. A realização da Copa custou 27,8 bilhões, enquanto a Olímpiada custou R$ 38,7 bilhões. Esse valor tem sido contestado e pode ser maior. Resultado, um aumento brutal da dívida nos estados e um lucro astronômico para os grandes empresários. Com a Copa do Mundo, a FIFA lucrou cerca de R$ 8,3 bilhões. Exemplo disso foi a dívida contraída pelo governo do Rio Grande do Norte com a construção do estádio Arena das Dunas para a Copa de 2016, que gira em torno de R$ 1 bilhão a serem pagos pelos próximos 17 anos, equivalente ao preço de três estádios. Outro exemplo histórico deste terrível legado para as cidades é o caso dos jogos de Montreal no Canadá em 1976, que deixou uma dívida bilionária, quitada apenas em 2006, 30 anos depois. Para cobrir os prejuízos dos jogos o governo da cidade de Quebec aumentou os impostos.

O crescimento da dívida está diretamente vinculado aos gastos exorbitantes em obras, em muitos casos superfaturadas e voltadas ao interesse das oligarquias locais. São casos como os investigados com a operação Higia, em 2008. Recursos da saúde estadual do Rio Grande do Norte foram desviados, foi identificada construção dos estádios superfaturados da Copa do Mundo e o superfaturamento de obras, a exemplo da construção da Ponte Newton Navarro na cidade de Natal onde o relatório do Ministério Público apontou ‘sobrepreço’ de mais de R$ 20 milhões.

Os juros da dívida pública
Com a crise da dívida pública, que entre 1993 e 2002 cresceu sete vezes em termos reais, surge dentro dos orçamentos da União, estados e municípios os pesados juros da dívida pública.  Segundo dados do Relatório de Política Fiscal, divulgado mensalmente pelo Banco Central, o governo gastou cerca de 20 vezes mais com os juros nos últimos 19 anos do que economizou com a venda de empresas ao setor privado. De acordo com os dados mais recentes, o setor público pagou, de janeiro de 1991 a agosto deste ano, R$ 1,810 trilhão em juros da dívida pública. Em contrapartida, os ajustes de privatização somavam R$ 75,476 bilhões em agosto, 4,1% dos gastos com os juros em quase 20 anos. Esses dados desmentem a tese vinculada pelos neoliberais de que as privatizações eram necessárias para equilibrar as contas dos estados em crise.

Nos governos de Fernando Henrique, os juros da dívida giraram em torno de 8% do PIB, enquanto nos governos petistas giraram em torno de 10% a 12%. Isso significa que, em virtude das dificuldades dos estados honrarem em dia o pagamento da dívida, esta é levada a um crescimento constante. O município de São Paulo refinanciou uma dívida de R$ 11 bilhões no ano 2000. Em 2013, essa dívida alcançou o patamar de R$ 58 bilhões, apesar de o município ter pago R$ 28 bilhões para a União no período. Em 2014, o governo do Rio Grande do Norte destinou 13% de sua receita corrente líquida para o pagamento da dívida pública com a União, cerca de R$ 1,7 bilhão, sem contar o que foi contraído para as obras da Copa. Esse percentual é similar ao que o estado investiu na saúde.

O bônus para os banqueiros e o ônus para o povo
Este ano temos vivenciado mais um ápice dessa crise em diversos estados brasileiros. Muitos governadores têm alegado crise nas contas do Estado e atrasam salários, fracionam pagamentos dos servidores, congelam salários. A renegociação das dívidas teve início ainda sob o governo Dilma (PT) com o PL 257/2016. O Projeto de Lei propunha descontos e um prazo maior para o pagamento da dívida. Em troca, os estados e municípios deveriam criar tetos para gastos no orçamento, congelar os salários dos servidores e destruir a Previdência.

O governo ilegítimo de Temer (PMDB/PSDB) deu continuidade a esse plano de maldades. Em agosto, Temer envia novamente o projeto e este, é aprovado na Câmara, com algumas alterações. Os estados terão um alongamento, por 20 anos, do prazo para quitação das dívidas estaduais com a União. Também, a suspensão dos pagamentos até o fim deste ano, com retomada gradual de 2017 em diante e alongamento por dez anos, com quatro anos de carência, de cinco linhas de crédito do BNDES.

Por medo de reações negativas nas urnas deste ano, os deputados acabaram por aprovar apenas uma contrapartida, a de que os estados estarão incluídos na regra que institui um teto para os gastos públicos, ou seja, não poderão ter aumento de despesas acima da inflação (medida pelo IPCA), mas somente por dois anos. A medida não diminui o ataque, já que verbas sociais, como saúde e educação terão seus investimentos congelados.

PEC 241: o desmonte social
Seguindo o seu plano de ataques, o governo colocou para votação a Proposta de Emenda Constitucional 241, que propõe durante os próximos 20 anos que as despesas públicas serão corrigidas no máximo pela inflação do ano anterior, ou seja, não terão crescimento real (acima da inflação). Significa um brutal ataque aos serviços públicos e à vida da população brasileira. O objetivo da proposta é transferir toda a conta da crise para os trabalhadores e garantir o pagamento dos juros da dívida aos banqueiros internacionais. Um exemplo deste brutal ataque, o Conselho Nacional de Saúde calculou as perdas para a saúde nos próximos 20 anos em R$ 424 bilhões. Isto significaria a morte do SUS, com precarização ainda maior dos já defasados hospitais e escolas públicas, um completo desmonte dos direitos sociais. O Sistema Único de Saúde atende a 75% da população brasileira, cerca de 150 milhões de pessoas.

A PEC 241 representa o corte de gastos sociais e restrição de direitos, enquanto se mantém intacto o pagamento da dívida pública e o pagamento dos juros extorsivos ao mercado financeiro.

É preciso resistir aos ataques e impulsionar as lutas
Novamente, a elite dominante brasileira tenta impor um brutal ajuste sobre os ombros da classe trabalhadora, utilizando-se da falácia da dívida pública.  Como vimos, essa dívida foi contraída ao longo da história sob inúmeras irregularidades, e tem servido como mecanismo de espoliação de riquezas dos países para pagamento aos banqueiros.

Segundo José Menezes Gomes, coordenador do núcleo alagoano da auditoria cidadã da dívida, em dados da dívida do Rio Grande do Norte, por exemplo, em muitos dos empréstimos não consta o nome do banco que emprestou. Os trabalhadores e a juventude precisam se envolver e enfrentar o sistema da dívida através da suspensão imediata do pagamento e a realização de uma auditoria, e exigir medidas que retirem dos ricos o ônus da crise, tais como a taxação das grandes riquezas, a cobrança das dívidas dos grandes empresários com os estados e municípios, e a devolução imediata do dinheiro obtido em obras superfaturadas. A mobilização das categorias é fundamental para combater o desmonte dos serviços públicos e a perda de direitos para os trabalhadores. Somente a unificação das lutas com greves, paralisações e ocupações podem reverter esta situação.