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MUNDO

Catar: que país é esse?

País que sediará Copa do Mundo é alvo de denúncias

Henrique Canary, de São Paulo, SP

Há muito de inédito na Copa do Mundo do Catar. Pela primeira vez na história, o torneio será realizado em um país do Oriente Médio. Também pela primeira vez, os jogos ocorrerão no final do ano, de forma a evitar as temperaturas de até 50ºC que fazem nos meses de junho e julho, período tradicional da competição. Mas o que é inédito também é a quantidade de denúncias de todos os tipos que começam a envolver a realização do evento no país árabe: perseguição contra pessoas LGBTQIA+, mortes de operários durante a construção dos estádios, relações de trabalho análogas à escravidão, sequestro de imigrantes para servidão doméstica, inexistência de qualquer liberdade política no país e um longo etc. De maneira geral, se sabe muito pouco sobre o Catar. O país surgiu no cenário geopolpitico mundial há relativamente pouco tempo, e muito há que ser estudado. Nesta matéria, reunimos alguns dados e informações gerais.

Com capital em Doha, o Catar (ou Qatar, segundo algumas grafias) é um pequeno país localizado na Península Arábica. Aliás, ele mesmo é um península, envolvida pelo Golfo Pérsico em quase toda sua orla e ligada ao continente apenas pela parte sul, onde faz fronteira com a Arábia Saudita. Possui uma população muito variável ao longo do ano, estimada em cerca de 2 milhões e 800 mil pessoas e um PIB de US$ 358 bilhões, o que dá um valor per capita de cerca de US$ 138 mil dólares por ano, nada menos do que o 4º PIB per capita do mundo. Mas esses números enganam, já que apenas 313 mil pessoas são nativos catarianos e concentram a maior parte da renda nacional, sendo que todo o resto são trabalhadores imigrantes oriundos principalmente de outros países árabes e do sul da Ásia. Assim, apesar da enorme riqueza absoluta, o país ocupa apenas da 45ª posição no ranking mundial de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), que mede o bem estar geral da população.

Do ponto de vista político, o Catar é um emirado absolutista, ou seja, uma monarquia hereditária onde o poder do emir não é limitado pela Constituição. A atual dinastia da Casa Thani está no poder desde 1825.

O Catar tornou-se independente da Inglaterra há relativamente pouco tempo, em 1971. Desde então, despontou como um dos maiores produtores mundiais de petróleo e gás e tem aumentado sua importância no sistema mundial de Estados. Em sua pré-história, o Catar era um importante centro de criação de cavalos e camelos por tribos nômades. Mais tarde, tornou-se um entreposto no comércio de pérolas para toda a região do Golfo Pérsico. Chegou a pertencer por um curto período ao Reino de Portugal, mas passou para o domínio otomano no século 16. Com a queda do Império Otomano ao fim da Primeira Guerra Mundial, o Catar passou a ser um protetorado britânico e assim permaneceu até a independência completa do país.

O islamismo sunita é a religião oficial do Catar, sendo que aproximadamente 67% da população professa essa fé, enquanto o cristianismo é compartilhado por 13%, o hinduísmo também por 13% e o budismo por cerca de 3% dos habitantes.

No Catar os partidos políticos são proibidos e não há eleições parlamentares desde 1970. A Charia, ou seja, a lei religiosa islâmica, é a base de todo o direito e regula relações como família, herança, bebidas alcólicas, trabalho, crimes comuns e imigração. A poligamia é permitida aos homens, enquanto o adultério e o consumo de álcool são punidos com a flagelação por chibatadas ou apedrejamento. Alguns trabalhadores expatriados conseguem autorizações especiais para comprar álcool e carne de porco. A apostasia (renúncia à fé islâmica) é punida com a pena de morte, enquanto a blasfêmia acarreta em até 7 anos de prisão e o proselitismo de outra religião que não o islã pode resultar em 10 anos de cárcere. As turistas são “desaconselhadas” a usar calças leggings, minissaias, vestidos sem mangas e roupas curtas ou apertadas em público.

Até pouco tempo atrás, quase todos os imigrantes do país eram oriundos dos países árabes. Mais tarde, o governo percebeu que essa população, por falar árabe e professar o islã, se integrava demasiado facilmente à população local e passou então a incentivar a imigração vinda de países do sul da Ásia, que não fala o árabe, o que facilita o isolamento e a exploração desse contingente de trabalhadores.

Os imigrantes trabalham em todos os tipos de emprego, mas principalmente na construção civil, indústria petrolífera e serviços domésticos. No caso dos serviços domésticos, por exemplo, as pessoas que chegam para trabalhar no Catar caem sob um regime chamado de “apadrinhamento”, o que equivale de fato à escravidão. Seus passaportes são retidos para evitar o deslocamento e a fuga, se submetem a castigos físicos, agressões sexuais, não têm direito a folga ou férias e podem ser remanejadas para trabalhos nas casas de vizinhos e parentes de seus “padrinhos”. Além disso, é muito comum que os “padrinhos” denunciem seus empregados à autoridade policial por todo tipo de delito imaginário, o que cria um sistema de horror entre os imigrantes. Mais uma vez, lembremos que não se trata de uma minoria insignificante ou os famosos “casos isolados”. Nada menos do que a maioria absoluta da população é de imigrantes e está submetida a níveis elevadíssimos de exploração do trabalho e à servidão involuntária. Nada é mais falso do que a bela imagem de um Catar como uma espécie de oásis de prosperidade em meio ao deserto.

Do ponto de vista internacional, o Catar é um forte aliado dos Estados Unidos e abriga em seu território a base aérea Al Udeid, um centro de operações conjuntas entre Estados Unidos e Inglaterra, usada sobretudo para operações militares no Iraque e Afeganistão. Tem relações tensas com a Arábia Saudita, apesar de compartilhar com esta um campo conjunto de petróleo e gás e possuir alguns acordos de defesa assinados. O Catar foi o segundo país, logo depois da França, a reconhecer o Conselho Nacional de Transição na Líbia, órgão responsável pela derrubada de Muammar Gaddafi em 2011.

Antes tarde do que nunca, alguns dirigentes da FIFA já começaram a reconhecer o erro que foi a escolha do país para sedir a Copa do Mundo deste ano. Na última terça-feira dia 08, o ex-presidente da entidade Joseph Blatter, em entrevista a um jornal suíço declarou que “Catar foi um erro”, referindo-se à complexa situação com os direitos humanos no país. A declaração de Blatter se deu na mesma semana em que o ex-jogador catariano Khalid Salman, escolhido embaixador da Copa pelo governo do Catar, disse em entrevista que a homossexualidade é “dano mental”, mas que o Catar vai “tolerar os homossexuais” durante os jogos, desde que, claro, estes não demonstrem sua afetividade em público. As declarações de Salman causaram mal-estar na imprensa internacional e a entrevista foi interrompida por um funcionário do governo catariano.

Mas as reações também existem. A seleção da Austrália já havia denunciado a situação dos imigrantes durante a construção dos estádios e a empresa Hummel, que fornece material esportivo para a seleção da Dinanmarca fez uma camiseta preta de luto, pela morte de trabalhadores imigrantes em solo catariano. Além disso, os capitães de algumas seleções europeias já combinaram de usar braçadeiras nas cores do arco-íris, para denunciar a perseguição contra a população LGBTQIA+ no país. O evento deste ano tende a ser o mais polêmico e o mais marcado por protestos e incidentes desagradáveis da história. Eis outro ineditismo ligado à Copa do Mundo do Catar.

Esse é, em grandes linhas, o país em que acontecerá a Copa do Mundo de Futebol 2022. Todo o caso demonstra que as decisões da FIFA já não têm nada a ver com o futebol. Trata-se simplesmente de uma empresa disfarçada de entidade pública, afundada em escândalos de corrupção e disposta a sacrificar o verdadeiro futebol, que é uma festa mundial do povo, em troca de dinheiro.

A Copa do Mundo pode até ser bela e trazer bons momentos, mas não deixará de ser, também, um espetáculo de morte, homofobia, misoginia, alienação e ataque aos direitos humanos.

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